Mas o ofício de marinheiro se resumia a partir. Ele sabia, ela sabia e ele sabia também.
Juntava-se ali na praça do cais, como de costume aos domingos, uma calorosa multidão. Os homens do mar - em seus trajes festivos e vozes tão roucas quanto os primeiros difíceis dias de agosto - aglomeravam-se em pequenas rodas de conversa-e-rum, para relembrar aquele tempo em que a espuma do oceano era mais espessa e as sereias-moças costumavam visitar o continente com mais frequência.
-De fato, eu nunca quis ser um marinheiro, meus amigos - Disparou um deles, interrompendo as gargalhadas dos companheiros - Vejam vocês, a minha vida é o mar. Isso eu nunca neguei. Quando deito, é para ele que as minhas orações se voltam. Mas fico pensando na reponsabilidade de usar aquele uniforme e viver para servir a nação. Não acho que seja coisa que eu conseguiria fazer de bom grado.
-O trabalho dignifica o homem, seu Osório. Assim como o dever com a nação - interpelou o sujeito mais baixo que dentre aqueles aparentava ser também o mais jovem - Sempre foi para mim motivo de muita desonra não ter sido convocado a servir, como aconteceu com boa parte dos homens de minha família.
-Não seja bobo, meu filho - Osório havia levantado a voz mais uma vez - Todos por essas bandas conhecem sua família. Todos sabem da grandeza de seu pai, um bom marinheiro, mas comentam também da ausência dele como chefe de casa, cuidando de você e da sua mãe.
O homem mais jovem engoliu em seco. Afinal, o velho Osório, tão categórico, tinha razão.
-Considero esse o grande mal da profissão - Continuou outro que até então, entre uma dose e outra, assistia a conversa - Quando se é marinheiro não se pode criar raiz. Nunca se sabe quando será chamado. Nós, pescadores, homens do mar, somos acostumados a viver com o balanço das ondas, mas também gostamos de poder estar na terra com nossas mulheres e filhos sem obrigação de adeus.
Todos pareceram concordar.
-Sim, meus companheiros, porém não devemos nos esquecer de que o dia de hoje não deixa de ser especial. Temos que celebrar a honra desses jovens que partem daqui a pouco para o mar pela primeira vez depois de um longo período de preparação - Osório propôs o brinde.
O entorno da praça fervia em cores, sol e música. Das muitas embarcações ancoradas no porto, o altivo navio da marinha mostrava-se mais belo e agitado. Caixas e rapazes subiam para o convés em um fluxo contínuo. No alabastro, um forte homem de meia idade orquestrava ordens de capitão e bigodes igualmente ordenados, monitorando o movimento de subida dos novos tripulantes, entusiasmando-os com boas vindas e saudações marítimas.
Disparava o relógio na praça. Pouco menos de meia hora até o navio compartir os lábios do atlântico. Comprimiam-se ainda mais, naquela altura, os corações daqueles que ficariam. O de Angelina, de tão apertado, não pulsava desde a semana anterior quando cresceu na voz de Martin a jura que aguardou uma vida inteira:
-Case-se comigo, Angelina.
Deus sabe o quanto ela enrubesceu ao ouvir as palavras que vieram de forma inesperada no cair daquele Julho. Lembrou-se então do alvorecer do sentimento, quando, na altura de seus primeiros anos de adolescente, despertou para a existência do tal par de olhos brutalmente castanhos cujo dono tornar-se-ia sua primeira paixão. Dentre tantos outros rapazes de mesma idade, Martin era o mais belo e eufórico. Envolto em vitalidade e promessas de um futuro bastante promissor, o único filho do oficial Guedes cresceu com a responsabilidade de assumir o lugar do pai quando o tempo cobrasse descanso.
Assim seria. Passou-se, então, o tempo tão ligeiro quanto poderia e o dia de partir com o mar chegara junto a aflição de sua amante que na semana anterior aceitara de todo coração o seu pedido:
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Coração de Marinheiro
Short StoryO navio que partia com o oceano naquela manhã deixava duas saudades: a primeira chorava de coração partido, a segunda preparava cocadas, ansiando o regresso.