a ausência

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Já era novembro quando faltou espuma no mar. As ondas iam se acostumando a quebrar nas pedras tão brancas quanto brandas. Quem nasce perto da praia aprende desde cedo a compreender a língua das águas, mesmo quando elas são puro silêncio em maré mansa. Naqueles dias, o oceano falava, bem sabia aquela moça, sobre saudades e vazios profundos, mas ela permanecia firme em estado de espera e contemplação de horizontes.

Angelina imaginou a linha fina que delimita o infinito do mar, desejando que o seu vestido aparentasse a mesma sutileza de costura, o mesmo traço tênue entre o atlântico e o contínuo de suas profundezas. Sentia as mãos de Dona Noêmia fazerem curva ao redor de sua cintura mais uma vez. Em duas semanas, aquela era a quarta visita ao ateliê. Foram meses pesquisando o modelo adequado e, sobretudo, escolhendo os tecidos a serem trabalhados. A cada medição a forma de seu vestido tornava-se mais clara sobretudo agora quando os últimos ajustes eram finalizados.

D. Noêmia, ou Nonô, como também era conhecida por aquela região, fora responsável por centenas de vestidos de noiva, mas nunca vira tamanha ansiedade em moça prestes a se casar.

–Dona Noêmia, acho que o busto pode ser mais ajustado nessa altura e a barra pode ficar menor. O que a senhora acha? Tenho medo de não ficar pronto em tempo.

–Vai ficar, minha filha. Se acalme!

A bem da verdade, Noêmia também andava preocupada. O casamento daqueles jovens provocara grande excitação desde que fora anunciado. As duas famílias ostentavam ambas muito prestígio, sendo os sobrenomes Guedes e Paranhos os mais tradicionais da pequena cidade. Os comentários sobre a cerimônia eram, dessa forma, o grande motivo de conversa seja nas rodas de pescadores, entre as lavadeiras de ganho ou mesmo no grupo das beatas pudicas que entre uma e outra oração adoravam a Deus e à vida alheia.

Nonô esforçava-se para atingir a perfeição do vestido pretendido pela noiva. Conhecia muito bem a mãe da menina Angelina. A Srª Paranhos não conhecia humildade e vivendo da aparência que bem construiu em torno de sua imagem não aceitaria imprecisões em torno do matrimônio de sua filha. Acima de tudo, pois sabia que aquela união representava mais do que um gesto amoroso de amor juvenil. A troca de alianças seria também o elo perfeito de junção entre os núcleos familiares, uma estratégia política cuja ambição dizia respeito ao cargo de prefeito pretendido pelo pai da noiva.

A Srª Paranhos observava a filha envolta no vestido. Angelina era mesmo muito bonita, herdara o tom de seus cabelos castanhos e o encaracolar dos seus longos fios. A maciez da pele, o formato das maçãs do rosto, tudo na menina lembrava-lhe a sua própria juventude. Exceto, talvez, aquela candura pueril. A ideia romantizada que a filha fazia da própria vida fora motivo de muito desentendimento. Por sorte do destino, os bons ventos sopraram o tolo coração de Angelina em direção certeira, fazendo-o ancorar em porto abonado. Martin, o filho do general Guedes, era, sem dúvida, o futuro mais promissor da região.

De olhos fechados, Angelina sentia a maciez do pano acariciar a sua pele. Gostaria de guardar aquela sensação até o dia esperado. Concluía agora, satisfeita, que a escolha por aquele material fora mesmo acertada. O tecido trazia-lhe o frescor do mar e as lembranças de sua infância, tão bem aproveitada à beira praia, junto de Martin e outras crianças. Gostava de pensar que fora ali que surgiu tamanho sentimento por ele, construindo castelos de areia e descobrindo o som das conchas. O toque daquela renda lembrava-lhe também a rigidez das mãos de seu marujo, o perfume de ressaca da maré e o olhar que lhe ancorava paz.

Naqueles dias de Novembro, a maré alta enchia de saudades o coração de Angelina.

...

–Chegou! Chegou! O navio chegou – Gritava a moça enquanto corria em disparada para avisar às outras meninas que o lucro do mês estava garantido. Felizmente.

Coração de MarinheiroWhere stories live. Discover now