Nina olhou a paisagem tempestuosa além das janelas de sua carruagem e dali já sentia que nada de bom poderia acontecer em sua vida, no momento em que descesse daquele maldito veículo e encarasse o seu destino. Chovia como se o universo se ressentisse profundamente daquela união.
Trovões e relâmpagos estouravam nos céus negros quando ela finalmente decidiu sair da carruagem. Suspirou e abriu a porta, antes mesmo que o cocheiro pudesse fazê-lo por ela e seguiu seu caminho até a entrada da grandiosa casa, sentindo as barras de seu vestido umedecerem ao resvalarem nas poças de água.
As portas se abriram a sua frente da mesma maneira que imaginava que os portões do Éden se abririam para os puros de coração e seu corpo foi envolvido pelo calor das velas que flamejavam no interior da casa. Sentiu o frio em seus ossos derreter e mesmo que sequer tivesse percebido, os seus músculos relaxaram.
Ainda era jovem o bastante para ter uma fagulha de esperança em um casamento por amor, quem sabe. Obviamente não era uma fagulha muito grande, mas ela estava lá, escondida em algum lugar ainda nos seus últimos suspiros. Crescera em um orfanato em Moscou até ser adotada por uma família pacífica e viver alguns anos com eles, antes que seus novos pais lhe contassem sobre como a tinha vendido ao Herege Negro.
Ela passou pela entrada e pelos servos ao lado de cada porta com o mesmo vestido com que havia recebido aquela notícia e o algodão negro saudou a pouca luz da capela, enquanto ela atravessava o corredor, trazendo nada mais que uma mala de madeira simples, que ela gentilmente escorou em um dos bancos.
Seus saltos batiam contra o piso da antessala e sua boa acústica permitia que cada pequeno resvalo repercutisse muitas vezes mais alto. Puxou o ar para dentro dos pulmões sentindo as restrições de seu espartilho e olhou para o padre a sua frente, que indicava com os olhos que não gostava nem um pouco de sua postura.
Aquele era o dia do seu casamento, formalizado por um contrato com seus pais, com um seguidor apaixonado de uma ordem que apesar de discreta, dizia guardar os segredos do próprio Rasputin. O seu futuro esposo era convidado por tempo indeterminado do Tsar e por convidado, ela certamente entendia prisioneiro.
No fundo dos seus pensamentos, tudo o que imaginou era que, se a Igreja não tinha mostrado nenhuma misericórdia pelas mulheres que foram forçadas a se casar pelo bem da política, da pátria e do dinheiro, ela então não se sentiria na obrigação de agir como se sentisse agradecida por tanta insensibilidade.
Virou-se para o homem a sua frente e encontrou seu noivo. Ele era um homem mais alto que ela, mesmo em seus saltos, com ombros largos e pele clara, em profundo contraste com seus cabelos negros, que o faziam parecer com o antigo demônio de Fausto ou com seu mestre, o Monge Negro.
Tudo nele era escuro como o título, a não ser pelos poucos centímetros da gola da camisa branca que ela podia ver, todo o resto do seu vestuário era negro, desde a longuíssima túnica, a sobrecasaca de couro e o lenço amarrado a sua cintura à moda turca.
Ele lhe ofereceu a mão e Nina prendeu o ar em seus pulmões: havia desenhos em cada um dos tendões, símbolos alquímicos dos elementos nos tendões superiores da mão direita, as fases da lua nos tendões inferiores. Na mão esquerda, estavam divididos em duas fileiras os símbolos dos planetas.
Além disso ele usava uma verdadeira coleção de anéis prateados com grandiosas pedras negras. Entre as variações, estava um anel de obsidiana e prata em formato de escorpião que contornava seu dedo com o próprio corpo.
— Não sei onde poderei colocar a aliança — ela sussurrou suavemente quando aceitou sua mão. Quando deixou seus olhos caírem sobre a expressão dele, não gostou do que viu.
Mesmo ali, ele a avaliava, tentando verificar se havia feito um bom negócio ou não. Comprimiu os lábios a fim de inibir a vontade de lhe dizer que tinha feito um negócio realmente péssimo e que o troféu que ele estava levando para casa não era o que ele esperava.
O discípulo alcançou uma coroa de lírios brancos e sussurrou algo em sua língua natal para o noivo e deslizou os dedos envelhecidos pela testa pálida do outro, ungindo-o, para logo após deitar a coroa sobre sua cabeça. A coloração dos lírios parecia quase enjeitada, alienígena, em meio ao negro afótico das madeixas selvagens.
O discípulo se inclinou em direção a Nina repetindo o mesmo ritual, mas não havia as palavras exóticas, em vez delas, ele sussurrou:
— Que o senhor esteja sempre convosco, cuidando para que vosso amor seja saudável e duradouro, mesmo diante de adversidades.
O homem velho retornou para sua posição original, de olhos selados para o mundo e uma expressão concentrada pairando sobre sua face.
— Sendo assim, concedo que por fim, beije a noiva.
Houve hesitação, ela sentiu seu próprio corpo enrijecer quando ele a enlaçou pela cintura e castamente roçou seus lábios contra os dela. Antes de se afastar ele abriu os olhos e olhou diretamente para ela, ou talvez até mesmo através.
Quando ele se afastou Nina franziu as sobrancelhas e apertou os lábios, movendo as mãos para a frente do seu corpo e as apertando juntas, tentando evitar que o tremor em seus dedos atingisse outras partes de seu corpo.
Ele estava há alguns centímetros dela, seu olhar de esmeralda voltado para a janela mais alta da capela e obviamente não estava mais tão curioso a respeito dela como estivera há poucos momentos. Deixou seus ombros caírem em relaxamento e o ar suspenso em sua garganta se libertou.
À frente da construção medieval que agora mergulhava novamente no silêncio simples que a circundava, fechou as portas grossas de madeira às suas costas e Nina segurou seu chapéu quando uma carruagem se aproximou de onde eles estavam.
Em posse da carruagem, estava um homem de cabelos castanhos claros e um sorriso infantil, tão esperançoso que pode encher a sua alma com alguma gota de felicidade, roubada aleatoriamente dos risos que lhe saudavam.
— Destino? — Inquiriu o cocheiro prestativo.
— Vamos para casa. — Disse o noivo roucamente, se sentando na ponta oposta à da sua nova esposa e com tantos motivos para conversar quanto ele, ela se deixou encostar no couro macio e por um pequeno momento, esquecer o que a aguardava.
Quando não conseguiu, ela virou seu rosto para ele.
— Me chamo Nina — ela disse após um momento de ponderação — sei que nossos nomes estavam no contrato, mas acho amigável nos apresentarmos — ela esperou educadamente que ele fizesse sua vez, mas ele apenas a encarou ao invés de lhe dar seu nome.
Ela ergueu uma das sobrancelhas e torceu as mãos sobre o colo, sentindo um arrepio de temor intenso atravessar seu corpo com a perspectiva de como seria uma convivência com ele.
— Para onde vamos? — Ela sussurrou, sem saber ao certo se queria que aquela pergunta fosse respondida.
Sevastian moveu os olhos para a paisagem e franziu as sobrancelhas negras.
— Vamos para onde eu possa ficar a sós com você.
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Valsa Sombria
RomanceNina é uma órfã vendida pelos pais adotivos, para um seguidor apaixonado de Rasputin, que se intitula o Herege Negro. Crescida em um lar católico, logo ela nota que sua vida nunca mais será a mesma, quando tudo o que a cerca é o erotismo intoxicant...