lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma
comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem
para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que
queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a
mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da
província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e
veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo,
e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como
meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia
as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca
fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela
vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer
mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.
Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no
berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a
mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos
dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou
especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma
irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele
aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos
livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e
jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até
aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam
muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as
atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então
que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho.
Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A
velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada,
fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas
que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente,
foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e
pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,
remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e
VOCÊ ESTÁ LENDO
A CARTOMANTE - Autor: Machado de Assis (COMPLETO)
RomanceA Cartomante é um conto do escritor brasileiro Machado de Assis, que foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1884.