I. Em um ato perecível de rotina, lançou-se o espetáculo teatral e seu roteiro esboçado ao término, não somente por motivos outros, mas, ainda mais agora, com o fito de se estender para além das vidas que sobressaltavam-se de gozo. Na vastidão dourada que segue-se perante os dias, a lua, porém, de uma perspectiva desmedida e sem pretensão de ser habitada, descansara como testemunha ocular do acaso ausente. E desse recorte de tempo, enxergava-se, entre muitos dos que dedicaram-se às suas casas como estágio final àquelas horas noturnas, aquele cuja existência era obscurecida e cansada, mas que, como convém a sua natureza íntima, exasperara-se contra a sua própria figura à ocorrência de um auto sabotamento. E, de súbito, em meio ao cigarro e ao firme laçar de mãos, surgiu a efêmera e melancólica sensação de espanto a subir-lhe pelo corpo: uma vaga lembrança de que tivera sua sanidade provada saltou-lhe aos olhos como chama de esperança.
Reconheceu-se ao avistar-se no reflexo dos olhos dela, embora os traços atormentadores da insanidade persistissem duramente. Que caminhos eram os que percorria por dentro de si aquilo a que se chama ansiedade? Exatamente nos cafés de cada esquina, nos parques, em frente às vitrines haviam sido feitas incompletas e distorcidas, inconcebíveis e desgastadas premissas de amor. Aquelas sob atos de inverdades... Ou até mesmo as prazerosas e as solícitas, as ternas e as ditas sob o manto da constância e da consciência.
Porém, uma incerteza pronunciou-se e houvera a quebra do decoro e das convenções pelo mantimento do feminino no local, embora era verdade o fato de que aquela que lhe acompanhava partira há muito.
A escolha dele parecia ter sido redentora, gloriosa, um ato de quem fitou escrupulosamente tais olhos. Porém, não correspondia a nenhum tipo de apontamento, simplesmente, ocorreu-lhe, como se um pedido de desculpas lhe tivesse sido enviado por tanto tempo lhe querer tomar a morte com suas investidas confusas e íntimas.II. Encontravamo-nos num imenso salão onde eram expostos quadros havia uma semana. A admiração cincundava-lhes, e os olhos pareciam experimentar a virtude de gozo aprazível. Ela, que a sensação de uma tarde fria de inverno provocava-me, olhou-me, terna:
- Ocorreu-lhe, por ventura, imaginar em deixar essa jornada e não ser lembrado? Cair em esquecimento plena e subitamente sob um período que se esvai?
Aquelas palavras haviam mais de mim do que qualquer um ser vivente imaginara. Fitei-a cautelosa, porém firmemente.
- Sim. Mais de uma vez.
Irrequieta, não permitiu, porém, que findasse ali o pensamento.
- E isso, de algum modo, o incomoda?
- Bastante. - Repondi-lhe.
Percebi que suas palavras despertaram-lhe sentimentos pouco gentis, sofrera ardilosamente com o pensamento que divagava sempiternamente entre os corredores comunais da mente.
Segurei-lhe as mãos, e, encarando-lhe no profundo dos olhos, disse:
- Querida, é bem verdade que um universo de possibilidades nos foi reservado, embora não se sinta sempre segura a respeito de cada uma delas. Há de nosso eu mais puro afirmar-nos o caminho a seguir. Não se preocupe com ser esquecida. Eu assumiria todo o anonimato que adormece sobre o seio deste mundo para você permanecer viva em minhas concomitantes lembranças.
Não havia palavra de doce essência como fora o olhar dela e sua solicitude a me ofertar o que eu nunca tivera junto ao peito.
III. - Mestre, gostaria eu de, por um dia, um único dia que fosse, tornar-me o porto onde pessoas escolham pôr seus sentimentos a repousar e, assim, não fundearem devido às âncoras que projetaram a si mesmas. Como devo proceder em relação a essa lacuna?
- As pessoas hão de caminhar sobre a linha tênue que aparta a confiança da hesitação, meu caro. A juventude, por consequência, resume-se à suntuosa moça a esperar, no salão da festa, pelo par, que tardará a aparecer. Quando chega, porém, o momento, a esperada dança é no-la concedida e transmuta-se num significado muito mais fortemente do que o primeiro, apenas pelo fato da expectativa que criou-se. Embora a espera machuque-a ao promover instantes de dúvida, o amor reside no segredo revelado à confiança que depositara no rapaz e na sua fatídica promessa de vinda. As horas se passam, as paisagens alteram-se, porém, e as pessoas tornam-se amargas no castelo sob o qual residem. De tudo desconfiam, mesmo dos amores sinceros e benevolentes que apresentam-se-lhes. A hesitação faz-se pertinaz adjacentemente. Os adultos redijem, assim, seus capítulos de histórias de um ponto desconhecido dessa linha. Eis a esplêndida missão: encontrá-los e, ao fazê-lo, destapar o baú que surgirá em virtude do encontro. À folha amarelada e velha que for revelada, deve-se escrever levemente as intenções. Não rasgue-a com o findar das palavras ditas, mas conserve-a junta a si. Os adultos temem falhar à memória alheia e serem extraídos como quem nunca houvera existido. Este é o nosso maior erro: não ser visto como cousa eterna, afinal.
IV. E assim que da fronte do sol retiramo-nos sob o imenso ponto azulmente iluminado, há em mim o evento da noite a se materializar. Sentado ao cais, observo, insone, o ir e vir de águas noturnas e independentes a interromperem-me o respirar. A terra nua e crua se deleita numa vastidão de eloquência, montes se transportam como que por acidente de rotina e mesmo os mares confundem-se, e a mim, devido ao protesto etéreo de nuvens e estrelas, também.
Deleita-se ao meu ouvido um impasse sinfônico. Uma mulher eis que surge encantadoramente serena a declamar um verso melódico ao encostado do ouvido.
E nas paredes de meu quarto, em momentos posteriores, uma extensão das avenidas fortemente movimentam-se e a pressa descompassada dos milhares de carros reflete o pensamento soturno dos corpos à vista das luzes, à possibilidade de não permitir escapar um pouco de si mesmo ao apogeu da melancolia. É de meu canto que imagino, calado, todo o cataclismo a projetar-se, insolente e subcutâneo. Conduzem-se a diferentes lugares e são somente histórias ensaiadas, porém não contadas, afinal. Uma quantidade absurda de mentes perdidas, um movimento surreal de substâncias circunspectas de amor se fazem presentes nesse cenário que observo às horas de um período em que me desconheço completamente.
É sepulcral o silêncio que me habita e, à bagunça que desalinha o meu quarto, constranjo-me sob pensamentos de querer me atirar em um ato solícito de amor.
V. Adormece precisamente sobre teu travesseiro céu-azul mesmo esta noite e, ao acordares, depositas outro desenho sobre a tua pele. Desenhas as rosas a declararem-te poesias. A bem da verdade, melhor te não será contar, e, ao não te preocupares com quantidade, deixe-me, por fim, observar o teu corpo despido em que se deita o jardim a balançar à brisa deste céu negro. O teu corpo é poesia, Helena. Teu corpo, permita-me lê-lo. Tua alma é a boa melodia aos ouvidos meus a arrepiar. Virão ao teu encontro os pássaros, beberão do orvalho que de tua boca emana e juntar-se-ão às borboletas que descansam às paredes do estômago. Elas ainda vivem. E se recusam a deixar-te. Reduze o comprimento de teus cabelos negros, assim como disseras-mo. Pleitearão teu nome, do modo como te portas ao passares pela avenida movimentada. Rirão de ti, e não somente uma vez. Mas, vê: não és de te abateres diante a inconstância dos tolos. Retribui-lhes, porém, à face, o verdadeiro deboche, como tu o sabes: o sorriso a revelar-se a si e aos mistérios mais remotos do interior. Teu sorriso, Helena, é-lhes cortesia desmerecida. Prazos de validade, eles os têm em demasia; tu, não.
Renova o compromisso de te manter viva. Ouve tu tuas próprias melancolias, deleita-te sobre tuas músicas prediletas, recupera os perfumes deixados ao caminhar. Sente tu a brisa agredir-te o rosto como animal enraivecido. Ao amado, diga que o ama. Valoriza quem te acolhe no peito, não te percas em meio aos que não te merecem. Tu nasceste do raiar do sol, advieste do amarelo que se finca à pele do girassol.
Tu és bonita, Helena, não pelo que mostras no externo, e no cantar e encantar da tua liberdade melodiosa te revelas.
És o amor por quem me valho.
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Devaneios Incolores
RandomEscritos temporários de uma mente repleta de pequenas, mas condecoradas lembranças. Às horas exaustivas sob guerras pessoais, pinto o cenário de meu peito de uma aquarela incolor. Deleite-se!