Um (2000)

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   Lexi Baill estudou um mapa do estado de Washington até que as minúsculo as marcações geográficas vermelhas oscilassem diante de seus olhos cansados. Os nomes dos lugares tinham um quê de magia e sugeriam uma paisagem que ela mal podia imaginar: montanhas cobertas de neve e divisadas pela água, árvores altas e retas como campanários de igrejas, um céu azul límpido e sem fim. Vizualizou águias pousadas em postes telefônicos e estrelas que pareciam tão próximas que daria para alcançá-las. Era provável que houvesse ursos vagando a noite pelas regiões ermas, à procura dos locais que até pouco tempo atrás tinham sido o seu território.
   Aquele seria seu novo lar.
   Queria pensar que teria uma vida diferente ali mas como poderia acreditar nisso de verdade?
   Tinha 14 anos e podia não saber muito, mas de uma coisa ela tinha certeza as crianças do Cadastro Nacional de adoção eram retornáveis, como garrafas de refrigerante usadas.
No dia anterior, sua assistente social acordar cedo para avisá-la de que deveria fazer a mala. Mais uma vez.
   -Tenho uma boa notícia - dissera a senhora Watters.
   -Mesmo semiacordada, Lexi sabia o que isso significava.
   Outra família... Ótimo. Obrigada, Sra. Watters.
   Não é apenas uma família. É a sua família.
   - Está certo, claro. A minha nova família. Vai ser ótimo.
   A Sra. Watters emitiu aquele som de desilusão, quando soltava suavemente a respiração, quase como um suspiro.
   - Você tem sido forte, Lexi. Durante todo esse tempo...
   Lexi tentou sorrir.
   - Não se sinta mal, Sra. W. Eu sei como é difícil encontrar casas para crianças mais velhas. E a família Rexler foi muito legal. Se a minha mãe não tivesse voltado, acho que teria dado certo.
   - Você sabe que nada daquilo foi culpa sua.
   - Sei, sim - confirmou Lexi.
   Nos dias bons, ela se deixava convencer de que as pessoas a devolviam tinham os próprios problemas a resolver. Nos dias ruins, que ultimamente eram mais frequentes, perguntava-se o que havia de errado com ela, por que era alguém tão fácil de descartar.
   - Você tem parentes,Lexi. Localizei a sua tia-avó. O nome dela é Eva Lange.
   Tem 66 anos e mora em Port George, em Washington.
   Lexi se sentou, alerta.
   - O quê? Minha mãe disse que eu não tinha parentes.
   - Sua mãe... se enganou. Você tem família, sim.
   Lexi passara a vida esperando ouvir essas palavras preciosas. Seu mundo sempre fora perigoso e incerto. Ela se sentia como um navio que, perdido em águas rasas, estivesse prestes a encalhar. Fora quase sempre uma menina sozinha, e assim crescera, cercada por estranhos, lutando por restos de comida e atenção, sem nunca receber o suficiente de nenhum dos dois - a criança selvagem dos tempos modernos. Apagara da memória a maioria dessas experiências, mas, quando tentava resgatá-las - quando um dos psicólogos da rede pública de saúde a obrigava a fazer isso-, ela se lembrava de estar com fome, molhada, e de tentar alcançar uma mãe bêbada demais para ouvi-la ou drogada demais para se importar com o que quer que fosse. Lembrava-se de passar dias em um cercadinho sujo, chorando e esperando que alguém se desse conta de sua existência.
Agora ela olhava pela janela suja do ônibus interestadual enquanto suas assistente social, que estava sentada ao seu lado, lia um romance.
   Depois de mais de vinte e seis horas na estrada, finalmente seu destino estava próximo. Lá fora, um céu cinza- escuro e carregado parecia engolir o tipo das árvores. A chuva fazia rabiscos na janela, turvando a paisagem. Washington era como outro planeta: nada nas colinas do Sul da Califórnia, que tinham cor de casca de pão e eram banhadas pelo sol, nem do quadriculado cinzento das autoestradas engarrafada. As árvores eram imensas - com o se estivessem tomado esteróides- e as montanhas, também. Tudo parecia colossal e selvagem.
   O ônibus entrou em um terminal de concreto de teto baixo e freou, chiando e sacudindo. Uma nuvem de fumaça preta passou pela janela e escureceu a plataforma por um instante, para em seguida ser carregada pela chuva. As portas do ônibus se abriram deslizando e sibilando.
   -Lexi?
   Quando ouviu a voz da Sra. Waters, ela pensou Ande, Lexi, mas não conseguiu sair do lugar. Olhou para a mulher que fora a única presença constante em sua vida nos últimos seis anos . Todas as vezes em que uma família adotiva temporária desistira dela e a devolver a, aguardando- a com um sorriso tristonho. Talvez não fosse muito, mas era tudo o que ela conhecia, e de repente sentiu medo de perder até mesmo essa pequena familiaridade.
   - E se ela não vier? - perguntou Lexi.
   A Sra. Whatters estendeu ao céu a mão de dedos finos e longos, rugosos e com nós largos ao dizer:
   - Ela virá.
   Lexi respirou fundo. Ela iria conseguir. É claro que sim. Nos últimos cincos anos, já tinha passado por sete famílias e frequentado seis escolas. Ela daria conta de mais isto.
Pegou a a mão da Sra. Whatters e saíram em fila pelo corredor estreito do ônibus, esbarrando nos bancos acolchoados de ambos os lados.
   Fora do ônibus, Lexi apanhou a mala vermelha e surrada, que era quase pesada demais para ela, abarrotada com as únicas coisas, que realmente lhe importavam: livros. Ela a arrastou até a extremidade da calçada e ficou ali, junto ao meio-fio. Aquela mínima elevação de concreto parecia um despenhadeiro perigoso. Um passo errado e ela poderia quebrar algum osso ou ser atirada de cabeça contra os carros.
   A Sra. Watters parou ao seu lado e abriu num guarda-chuva. Os pingos ressoavam no náilon esticado.
   Um a um, os outros passageiros desembarcaram do ônibus e desapareceram.
   Lexi olhou para o terminal vazio e sentiu vontade de chorar. Quantas vezes já não estivera na mesma situação? Sempre que sua mãe se desintoxicava,  depois de um tratamento, voltava para buscá-la.  Me dê outra chance, filhinha . Diga a este simpático juiz que você me ama. Desta vez vai ser melhor... Não vou mais esquecer você. E, invarialvemente, Lexi tinha esperança.
   - Talvez ela tinha mudado de ideia.
   - Osso não vai acontecer, Lexi.
   - Mais é uma possibilidade.
   - Você tem família, Lexi.
   Quando a Sra. Watters repetiu essa palavras aterrorizantes, Lexi se descuidou e deixou que uma pontinha de esperança entrasse sorrateira.
   - Família.
   Ela usou experimentar essa palavra estranha, que se derreteu na língua como uma bala, deixando um sabor adocicado.
   Um Ford fairlane Azul, bastante velho, freou diante das duas e estacionou. Tinha marcas de ferrugem e o paralama estava amassado. Uma fita adesiva fora passada transversalmente na janela rachada, para vendá-la.
   A porta do motorista se abriu o vagarosamente em uma mulher saiu do carro. Era baixa, tinha cabelo grisalho, olhos de um castanho pálido e aquele tipo de pele vincada de quem fuma muito. Parecia incrível, mas ela tinha um ar familiar, como uma versão mais velha e enrugada da mãe de Lexi. E Então aquela palavra impossível estava de volta, agora preenchida com significado. Família.
   - Alexa? - disse a mulher, e sua voz soou rouca.
Lexi não conseguia responder. Ela queria que a mulher sorrisse ou talvez até a abraçasse, mas Eva Lange ficou ali parada, e o seu rosto de uva passa estava profundamente fechado.
   - Sou sua tia avó. Irmã da sua avó.
   - Não Conheci a minha vó disse Lexi, e foi tudo em que conseguiu pensar.
   - Todo este tempo pensei que você morasse com a família de seu pai.
   - Não Tenho pai. Quero dizer, não sei quem ele é. A minha mãe não sabia.
A Tia Eva suspirou.
   - Agora Eu sei disso, graças a senhora Watters. Esta é a sua bagagem?
Lexi Sentiu a vergonha chegar como uma onda.
A Senhora Watters pegou a mala de Lexi com cuidado e pôs no banco de trás do carro.
   - Vá, Lexi entre no carro. Sua tia quer que você vá morar com ela.
É, por enquanto.
A Senhora Watters puxou Lexi e a envolveu com um forte abraço, enquanto sussurrava o seu ouvido:
   - Não Tenha medo.
   Lexi quase se deixou ficar nesse neste abraço tempo demais. No último segundo, antes de a situação se tornar constrangedora, ela soltou os braços e se libertou. Caminhou até o carro velho e avariado e precisou fazer força para abrir a porta, que tremeu, rangeu e se escancarou.
   Lá Dentro, os bancos eram inteiriços e de vinil marrom. Suas costuras ressecadas deixavam escapar um enchimento cinza. O cheiro era uma mistura de hortelã com tabaco, como se alguém tivesse fumado um milhão de cigarros de menta ali.
   Lexie se sentou o mais perto que pode da janela através do vidro rachado, acenou para a senhora e
Watters, observando- a desaparecer na neblina à medida que o Carro se afastava. Deixou as pontas dos dedos deslizarem pelo vidro frio, como se esse breve toque pudesse ligar lá a mulher que já não podia mais ver.
  - Lamentei muito saber do falecimento de sua mãe, mas agora ela está em um lugar melhor. Saber disso deve reconfortar você - disse a tia Eva após um longo e incômodo silêncio.
   Lexie nunca soube Como responder a esse tipo de observação. Pobre Lexi, filha de uma viciada morta. Mas ninguém fazia ideia do que realmente tinha sido a vida de sua mãe - os homens, a heroína, os vômitos, a dor. Nem de como o fim fora terrível. So Lexi sabia disso tudo.
   Pela Janela, ela observou seu novo lar. Era imponente, verde escuro, mesmo em plena luz do dia. Passados alguns quilômetros, uma placa lhes deu as boas-vindas à reserva de Port e George, símbolos nativos estavam por toda parte. Na frente das lojas havia esculturas de baleias orcas nos terrenos mal cuidados, as casas eram pré-fabricadas e no quintal de Muitas delas era possível ver máquinas e carros enferrujados com suportes para fogos de artifícios vazios sinalizavam, nesta tarde de fim de agosto, a festividade de poucos dias atrás, em um chamativo Cassino estava sendo construído em uma Colina, com vista para o estuário de puget.
   As placas indicam o caminho para o parque de trailers chef Sealth. Tia Eva atravessou o parque e parou o carro na frente de um trailer amarelo e branco, Largo e espaçoso. Sob a chuva fina ele parecia um pouco fora de foco, arredondado e frustrado. Vasos cinza, de plástico, que abrigavam longas Petúnias moribundas, guardavam uma porta, que fora pintada com tom azul bebê. De cada lado da janela da frente, as cortinas de tecido xadrez eram como duas ampulhetas de pano, fingidas no meio por fios de uma lã amarela felpuda.
   - Não é muito-disse a tia Eva, parecendo envergonhada. - A tribo aluga o trailer.
     Lexi não sabia o que dizer. Se sua tia tivesse visto alguns dos lugares em que ela já havia morado, não se desculparia por este trailer tão bonitinho que era sua casa.
   - É Legal.
   - Venha - chamou tia Eva, desligando o motor do Ford.
   Lexie A seguiu pela trilha de Cascalho até a porta da frente. Dentro, a casa móvel era Impecável. Uma cozinha pequena, em L, emendava com uma copa na qual havia uma mesa cromada com tampo revestido de fórmica amarela e quatro cadeiras. Na sala, um pequeno sofá xadrez de dois lugares e duas poltronas de vinil Azul ficavam em frente a uma tv posta sobre um suporte metálico. Na mesa de canto Havia duas fotografias, uma de uma senhora idosa que usava óculos com armação de chifre e outra do Elvis. No ar, cheiro de fumaça de cigarro e de flores de plásticos na cozinha havia desodorizantes de ar roxos pendurados em quase todos os puxadores.
   Desculpe-me Pelo cheiro. Parei de fumar na semana passada, quando soube de você - disse a tia Eva, voltando-se para olhar para Lexi. - Crianças e fumaça de cigarro não combinam. Não é?
   Uma Sensação curiosa tomou conta de Lexi. Era como um leve bater das asas de um passarinho, Uma emoção tão estranha que ela não reconheceu de imediato.
   Esperança.
   Esta Estranha, esta tia, largar o cigarro por ela. E a acolhera, mesmo estando com o dinheiro curto e, o que Era óbvio ali. Olhou para a mulher com vontade de dizer alguma coisa, mas não conseguiu pensar em nada. Temia que uma palavra errada fizesse tudo desandar.
   - Estou me sentindo um tanto perdida, lexie - disse tia eva por fim.
   - Eu e o Oscar, meu marido, nunca tivemos filhos. Tentamos, mas não vieram. Então, não sei como é ser mãe. Se você ficar...
   - Eu vou me comportar, juro. - Não mude de ideia , por favor. - Se a senhora ficar comigo,comigo não vai se arrepender.
   - Se Eu ficar com você? -  Tia Eva contraiu os lábios finos e franziu um pouco as sobrancelhas. - Sua mãe aprontou mesmo com você, não foi? Mas não posso dizer que esteja surpresa. Ela também fez a minha irmã sofrer muito.
   - Ela era boa em magoar as pessoas irem falou lexie, baixinho.
   - Nós Somos uma família - disse Eva.
   - Nem Sei o que isso significa.
   Tia Eva sorriu, mas foi um sorriso triste, que doeu em lexie fazendo a se lembrar da própria ferida. A vida com a mãe tinha deixado suas cicatrizes.
   - Significa Que você vai ficar aqui comigo - respondeu tia Eva. - E Acho melhor começar a me chamar de "EVA", porque essa história de tia logo vai cansar.
   Depois De dizer isso, ela já estava se virando, quando lexie agarrou seu pulso fino, sentindo a pele aveludada se enrugar na Palma de sua mão. Ela não pretendia fazer isso - e não deveria ter feito -, mas agora era tarde demais.
   - Que Foi lexi?
   Lexi precisou lutar para formar aquela palavrinha, que até parecia uma pedra presa na garganta. Mas tinha que falar. Tinha.
   - Obrigada - E, seus olhos ardiam.-  Não vou causar problemas.
Prometo.
   - Provavelmente Vai, sim - respondeu Eva, e finalmente sorriu.- Você é adolescente, não é? Mas tudo bem, Lexi. Tudo bem. Estou sozinha há muito tempo. E me sinto feliz de ter você por aqui.
   A Única coisa que lexie conseguiu fazer foi assistir com a cabeça. Também estava sozinha havia muito tempo.

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⏰ Última atualização: Jan 16, 2019 ⏰

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O CAMINHO PARA CASA(EM BREVE COMPLETA)Onde histórias criam vida. Descubra agora