III

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Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me pareceu que uma claridade trêmula, como a de uma tocha fumegante, penetrava na tenda, e através dela uma voz me chamava, lamentosa e dolente:
-Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!
Arrojei a manta, assustado; e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela, bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso:
-A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer
devemos chegar às portas de Jerusalém!Arredando os cabelos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado doutor:
-Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforjes, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus óculos de ouro que resplandeciam com uma desusada, irresistível intelectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em pregas graves e puras de toga latina; e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com lábios que pareciam clássicos e de mármore:
-D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de 15 do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram da Babilônia, nem haverá, até que Tito venha pôr o último cerco ao templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Páscoa à casa de Gamaliel, que é um amigo de Hilel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanedrim. Foi ele que disse: "para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma autoridade". Portanto, a pé, D. Raposo!
Assim murmurou o meu amigo, ereto e lento. E eu, submissamente, como perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silêncio as minhas grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, ele empurrou-me com impaciência para fora da tenda, sem mesmo me deixar recolher o relógio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso, eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e vermelha...
Devia ser meia-noite. Dous cães ladravam ao longe, surdamente, como entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de vergel e à flor da laranjeira. O céu de Israel faiscava com desacostumado esplendor; e em cima do Monte Nebo, um belo astro mais branco, de uma refulgência divina, olhava para mim, palpitando ansiosamente, como se procurasse, cativo na sua mudez, dizer um segredo à minha alma!
As éguas esperavam, imóveis sob as longas crinas. Montei. E então, enquanto Topsius arranjava laboriosamente os loros, avistei, para os lados da fonte do Eliseu, uma forma maravilhosa que me arrepiou de terror transcendente.
Era, ao clarão diamantino das estrelas da Síria, como a branca muralha de uma cidade nova! Frontões de templos alvejavam palidamente, entre a espessura de bosques sagrados; para as colinas distantes, fugiam esbatidos os arcos ligeiros de um aqueduto. Uma chama fumegava no alto de uma torre; mais baixo, movendo-se, faiscavam pontas de lanças; um som longo de buzina morria na sombra... E abrigada junto aos bastiões, uma aldeia dormia entre palmeiras.
Topsius, na sela, pronto a marchar, embrulhara a mão nas crinas da égua.
-Aquilo, branco, além? - murmurei, sufocado. Ele disse simplesmente:
-Jericó.
Rompeu, galopando. Não sei quanto tempo segui, emudecido, o nobre historiador dos Herodes; era por uma estrada direita, feita de lajes negras de basalto. Ah! que diferente do áspero caminho por onde tínhamos descido a Canaã, faiscante e cor de cal, através de colinas onde o tojo escasso semelhava, na irradiação da luz, um bolor de velhice e de abandono! E tudo em redor me parecia diferente também: a forma das rochas, o cheiro da terra quente, até a palpitação das estrelas... Que mudança se fizera em mim, que mudança se fizera no Universo? Por vezes uma faísca dura saltava das ferraduras das éguas. E sem descontinuar, Topsius galopava, agarrado às crinas, com as duas bandas da capa branca batendo como os dous panos de uma bandeira...
 Mas subitamente parou. Era junto de uma casa quadrada, entre árvores, toda apagada e muda, tendo no topo uma haste sobre que pousava estranhamente, como recortada numa lâmina de ferro, a figura de uma cegonha. À entrada esmorecia uma fogueira; remexi as achas; e à curta chama que ressaltou, compreendi que era uma antiga estalagem à beira de uma antiga estrada.
Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e eriçada de pregos, brilhava em negro, numa lápide branca, a tabuleta latina - Ad Gruem Majorem; e ao lado, enchendo parte da fachada, desenrolava-se uma inscrição rudemente entalhada na pedra, que eu decifrei a custo, e em que Apolo prometia a saúde ao hóspede, e Septimano, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho reparador, vinho forte da Campânia, frescos palhetes de Engada, e "todas as comodidades à maneira de Roma".
Murmurei, desconfiado:
-À maneira de Roma!
Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens, dessemelhantes de mim, no falar e no traje, bebiam ali, sobre a proteção de outros deuses, o vinho em ânforas do tempo de Horácio?...
Mas de novo Topsius marchou, esguio e vago, na noite. Agora findara a estrada de basalto sonoro; e subíamos a passo um brusco caminho, cavado entre rochas, onde grossos pedregulhos ressoavam, rolavam sobre as patas das éguas, como no leito de uma torrente que um lento agosto secou. O erudito doutor, sacudido na sela, praguejava roucamente contra o Sanedrim, contra a hirta lei judaica, oposta indobravelmente a toda a obra culta que quer fazer o procônsul... Sempre o fariseu via com rancor o aqueduto romano que lhe trazia a água, a estrada romana que o levava às cidades, a romana que lhe curava as pústulas...
-Maldito seja o fariseu!
Sonolento, rememorando velhas imprecações do Evangelho, eu rosnava, encolhido no meu albornoz:
-Fariseu, sepulcro caiado... Maldito seja!
Era a hora calada em que os lobos dos montes vão beber. Cerrei os olhos; as estrelas desmaiavam.
Breves faz o Senhor as noites macias do mês de Nizam, quando se come em Jerusalém o anho branco de Páscoa; e bem cedo o céu se vestiu de alvo do lado do país de Moabe.
Despertei. Já os gados balavam nos cerros. O ar fresco cheirava a rosmaninho.
E então avistei, errando por cima dos penedos sobranceiros ao caminho, um homem estranho, bravio, coberto com uma pele de carneiro, que me recordou Elias e todas as cóleras da Escritura; o peito, as pernas pareciam de granito vermelho; por entre a grenha e a barba, rudes, emaranhadas, fazendo-lhe como uma juba feroz, os olhos refulgiam-lhe desvairadamente...
Descobriu-nos; e logo, estendendo os braços como quem arremessa pedras, despediu sobre nós todas as maldições do Senhor! Chamou-nos "pagãos", chamou-nos "cães"; gritava: "malditas sejam as vossas mães, secos sejam os peitos que vos criaram"! Cruéis e cheios de presságios caíam os seus brados do alto das rochas; e, retardado pelos passos lentos da égua, Topsius encolhia-se na capa, como sob uma saraiva inclemente. Até que me enfureci; voltei-me na anca da cavalgadura, chamei-lhe bêbedo, atirei-lhe obscenidades; e via no entanto, sob a chama selvagem dos seus olhos, a boca clamorosa e negra torcer-se-lhe, babar-se de furor devoto...
Mas, desembocando da ravina, encontramos, larga e lajeada, a estrada romana que vai a Siquém; e trotando por ela, sentimos o alívio de penetrar enfim numa região culta, piedosa, humana e legal. A água abundava; sobre as colinas erguiam-se fortalezas novas; pedras sagradas delimitavam os campos. Nas eiras brancas, os bois enfeitados de anêmonas pisavam o trigo da colheita de Páscoa; e em vergéis, onde a figueira já tinha enfolhado, o servo na sua torre caiada, cantando com uma vara na mão, afugentava os pombos bravos. Por vezes, avistávamos um homem, de pé, junto da sua vinha, ou à beira dos canais de rega, direito, com a ponta do manto atirada por cima da cabeça, e os olhos baixos, dizendo a santa oração do Esquema. Um oleiro, que espicaçava o seu burro, carregado de cântaros de barro amarelo, gritou-nos: "Benditas sejam as vossas mães! Boa vos seja a Páscoa!" E um leproso, que descansava à sombra, nos olivedos, perguntou-nos, gemendo e mostrando as chagas, qual era em Jerusalém o Rabi que curava, e aonde se apanhava a raiz do baraz.
Já nos aproximávamos de Betânia. Para dar de beber às éguas, paramos numa linda fonte que um cedro assombreava. E o douto Topsius, arranjando um loro, admirava-se de não termos encontrado a caravana, que vem de Galiléia celebrar a Páscoa a Jerusalém - quando soou, adiante, na estrada, um rumor lento de armas em marcha... E eu vi, assombrado, aparecerem soldados romanos, desses que tantas vezes amaldiçoara em estampas da Paixão!
Barbudos, tostados pelo sol da Síria, marchavam solidamente, em cadência, com um passo bovino, fazendo ressoar sobre as lajes as sandálias ferradas; todos traziam às costas os escudos envoltos em sacos de lona; e cada um erguia ao ombro uma alta forquilha, de onde pendiam trouxas encordeladas, pratos de bronze, ferramentas e cachos de tâmaras. Algumas filas, descobertas, seguravam o capacete como um balde; outras, nas mãos cabeludas, balançavam um dardo curto. O decurião, gordo e louro, seguido de uma gazela familiar, enfeitada com corais, dormitava, ao passo miúdo da égua, embrulhado num manto escarlate. E atrás, ao lado das mulas carregadas de sacos de trigo e molhos de lenha, os arrieiros cantavam ao som de uma flauta de barro, tocada por um negro quase nu, que linha no peito, em traços vermelhos, o número da legião.
Eu recuara para o escuro do cedro. Mas Topsius, logo, como um germano servil, desmontara, ajoelhando quase no pó, ante as armas de Roma; e não se conteve; berrou, agitando os braços e a capa:
-Longa vida a Caio Tibério, três vezes cônsul, ilírico, panônico, germânico, imperador, pacificador e augusto!...
Alguns legionários riram, crassamente. E passaram, cerrados, com um rumor de ferro - enquanto um pegureiro, ao longe, arrebanhando as cabras aos brados, fugia para o cimo dos cerros.
De novo galopamos. A estrada de basalto findou; e penetramos entre arvoredos, num aroma de pomares, através de abundância e frescura.
Oh, que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes, em torno à Cidade Santa, dessecadas por um vento de abstração, e brancas, da cor das ossadas...
Agora tudo era verde, regado, murmuroso, e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida, com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém; as folhas dos ramos de abril desabrochavam num azul, moço, tenro, cheio de esperança como elas. E a cada instante se me iam os olhos longamente nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres, e mais esplêndidos que o Rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!
Enlevado e cantarolando, eu trotava ao comprido de uma sebe toda entrelaçada de rosas. Mas Topsius deteve-me; mostrou-me no alto de um outeiro, sobre um fundo sombrio de ciprestes e cedros, uma casa abrindo, para o lado do Oriente e da luz, o seu pórtico branco. Pertencia, disse ele, a um romano, parente de Valério Grato, antigo Legado Imperial da Síria; e tudo ali parecia penetrado de paz amável e de graça latina. Um tapete viçoso, de relva bem lisa, estendia-se em declive até uma álea de alfazema, tendo ao meio, sobre o verde, desenhadas com linhas de flores escarlates, as iniciais de Valério Grato; em redor, entre canteiros de rosas, de açucenas, orladas
de mirto, resplandeciam nobres vasos de mármore coríntico, onde se enrolavam folhas de acanto; um servo, de capuz cinzento, talhava um teixo em forma de urna, ao lado de um buxo alto já talhado sabiamente em feitio da lira; aves domésticas picavam o chão, coberto de areia escarlate, numa rua de plátanos onde os braços de hera faziam, de tronco a tronco, festões como os que ornam um templo; a rama dos loureiros velava de sombras a nudez das estátuas. E sob um caramanchão de vinha, ao rumor da água lenta cantando numa bacia de bronze, um velho de toga, sereno, risonho, ditoso, lia junto a uma imagem de Esculápio um longo rolo de papiro, enquanto uma rapariga, com uma flecha de ouro nas tranças, toda vestida de linho alvo, fazia uma grinalda com as flores que lhe enchiam o regaço... Ao passo dos nossos cavalos, ela ergueu os olhos claros. Topsius gritou: Oh, salve, pulquerríma! Eu gritei - Viva la gracia! Os melros cantavam nas romãzeiras em flor.
Mais adiante o facundo Topsius deteve-me ainda, apontando-me outra vivenda de campo, escura e severa entre ciprestes; e disse-me baixo que era de Osânias, um rico saduceu de Jerusalém, da família pontifical de Boetos, e membro do Sanedrim. Nenhum ornato pagão lhe profanava os muros. Quadrada, fechada, hirta, ela reproduzia a austeridade da lei. Mas os largos celeiros, cobertos de colmo, os lagares, os vinhedos, diziam as riquezas feitas de duros tributos; no pátio dez escravos não bastavam a guardar os sacos de trigo, odres, carneiros marcados de vermelho, recolhidos em pagamento do dízimo nesse dia de Páscoa. Junto à estrada, com uma piedade ostentosa, caiada de fresco, reluzia, ao sol, entre roseiras, a sepultura doméstica.
Assim caminhando chegamos aos palmares onde se aninha Betfagé. E por um atalho virente que Topsius conhecia, começamos a subir o Monte das Oliveiras, até o lagar da Moabita - que é uma paragem de caravanas nessa infinita, vetusta via real que vem do Egito, seguindo até Damasco, a bem regada.
E foi como um deslumbramento, ao encontrarmos sobre todo o monte, por entre os olivedos da encosta até ao Cédron, por entre os pomares do vale até Siloé, em meio dos túmulos novos dos sacrificadores, e mesmo para os lados onde se empoeira a estrada de Hébron, o despertar rumoroso de todo um povo acampado! Tendas negras do deserto, feitas de peles de carneiro e rodeadas de pedras; barracas de lona, da gente da Iduméia, alvejando ao sol entre as verduras; cabanas armadas com ramos, onde se abrigam os pastores de Ascalon; toldos de tapetes que os peregrinos de Neftali suspendem em varas de cedro; era toda a Judéia, às portas de Jerusalém, a celebrar a Páscoa sagrada! E havia ainda, em volta ao casal onde velava um posto de legionários, os mercadores gregos da Decápola, tecelões fenícios de Tiberíade, e a gente pagã que, através de Samaria, vem dos lados de Cesaréia e do mar.
Fomos marchando, lentos e cautelosos. A sombra das oliveiras os camelos descarregados ruminavam placidamente; e as éguas da Pérea, com as patas entravadas, pendiam a cabeça sob a espessura das longas crinas. Junto às tendas, cujos panos meio levantados nos deixavam entrever brilhos de armas penduradas, ou o esmalte de um grande prato, raparigas, com os braços reluzindo de braceletes, pisavam entre duas pedras o grão do centeio; outras mungiam as cabras; por toda a parte se acendiam fogos claros; e com os filhos pela mão, o cântaro esguio ao ombro, uma fila de mulheres descia cantando para a fonte de Siloé.
As patas dos nossos cavalos prendiam-se nas cordas retesadas das barracas dos idumeus. Depois estávamos diante de tapetes alastrados, onde um mercador de Cesaréia, com um manto a cartaginesa, vistoso e bordado de flores, expunha peças de linho do Egito, estendia sedas de Cós, fazia reluzir armas marchetadas; ou com um frasco na palma de cada mão, celebrava as perfeições do nardo da Assíria e dos óleos doces da Pártia... Os homens em redor, arredando-se, demoravam em nós os seus olhos lânguidos e altivos; por vezes murmuravam uma injúria surda; ou por causa dos óculos do douto Topsius, um riso de escárnio mostrava dentes agudos de fera, entre rudes barbas negras.
Sobre as árvores, encostados aos muros, filas de mendigos ganiam, mostrando o caco com que rapavam as chagas. Diante de uma cabana feita de ramos de loureiro, um velho obeso, rubro como um sileno, apregoava o vinho fresco de Siquém, as favas novas de abril. Os homens fuscos do deserto apinhavam-se em torno dos gigos de fruta. Um pastor de Áscalon, em andas, no meio de um rebanho de cordeiros brancos, tocava buzina, chamando os devotos a comprar o anho puro da Páscoa. E por entre a multidão onde constantemente se erguiam paus, em lixas bruscas, soldados romanos rondavam aos pares, com um ramo de oliveira no capacete, benignos e paternais.
Assim chegamos junto de dous altos, frondosos cedros, tão cobertos de pombas brancas voando, que eram como duas grandes macieiras, na primavera, que um vento estivesse destoucando das flores. Subitamente, Topsius parara, abria os braços; eu também; e com o coração suspenso ali ficamos imóveis, deslumbrados, vendo lá embaixo, na luz, resplandecer Jerusalém.
O sol banhava-a, suntuosamente! Uma severa altiva muralha, guarnecida de torres novas, com portas onde as cantarias se entremeavam de lavores de ouro, erguia-se sobre a ribanceira escarpada do Cédron, já seco pelos calores de Nizam, e ia correndo, cingindo Sião, para o lado de Hínon e até aos cerros de Garebe. E, dentro, em face aos cedros que nos assombreavam, o templo, sobre os seus alicerces eternos, parecia dominar toda a Judéia, soberbo em esplendor, murado de granitos polidos, armado de bastiões de mármore, como a refulgente cidadela de um deus!...
Debruçado sobre as crinas, o sapiente Topsius apontava-me o adro primordial, chamado o Pátio dos Gentílicos, vasto bastante para receber todas as multidões de Israel, todas as da terra pagã; o chão liso rebrilhava como a água límpida de uma piscina; e as colunas de mármore de Paros que o ladeavam, formando os pórticos de Salomão, profundos e cheios de frescura, eram mais bastas que os troncos nos cerrados palmares de Jericó. Em meio desta área, cheia de ar e de luz, elevava-se, em escadarias lustrosas como se fossem de alabastro, com portas chapeadas de prata, arcarias, torreões de onde voavam pombas, um nobre terraço só acessível aos fiéis da lei, ao povo eleito de Deus, o orgulhoso Adro de Israel. Daí erguia-se ainda, com outras claras escadarias, outro branco terraço, o Átrio dos Sacerdotes; no brilho difuso que o enchia, negrejava um enorme altar de pedras brutas, enristando a cada ângulo um sombrio como de bronze; aos lados dous longos fumos direitos, subiam devagar, mergulhavam no azul com a serenidade de uma prece perenal. E, ao fundo, mais alto, ofuscante, com os seus recamos de ouro sobre a alvura dos mármores, níveo e fulvo, como feito de ouro puro e neve pura, refulgia maravilhosamente, lançando o seu clarão aos montes em redor, o Híeron, o santuário dos santuários, a morada de Jeová; sobre a porta pendia o véu místico, tecido em Babilônia, cor do fogo e cor dos mares; pelas paredes trepava a folhagem de uma vinha de esmeralda, com cachos de outras pedrarias; da cúpula irradiavam longas lanças de ouro, que o aureolavam de raios como um sol; e assim, resplandecente, triunfante, augusto, precioso, ele elevava-se para aquele céu de festa pascal, ofertando-se todo, como o dom mais belo, o dom mais raro da terra!
Mas ao lado do templo, mais alto que ele, dominando-o com a severidade de um amo orgulhoso, Topsius mostrou-me a Torre Antônia, negra, maciça, impenetrável, cidadela de forças romanas... Na plataforma, entre as ameias, movia-se gente armada; sobre um bastião, uma figura forte, envolta num manto vermelho de centurião, estendia o braço; e toques lentos de buzina pareciam falar, dar ordens, para outras torres que ao longe se azulavam no ar límpido, algemando a Cidade Santa. César pareceu-me mais forte que Jeová!
E mostrou-me ainda, para além da Antônia, o velho burgo de Davi. Era um tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como um rebanho de cabras brancas para um vale ainda em sombra, onde uma praça monumental se abria entre arcarias; depois trepava, fendido em ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a colina fronteira de Acra, rica, com palácios, e cisternas redondas que luziam à luz semelhantes a broquéis de aço. Mais longe ainda, para além de velhos muros derrocadas, era o bairro novo de Bezeta, em construção; o circo de Herodes arredondava aí as suas arcarias; e os jardins de Antipas estiravam-se por um último outeiro, até junto ao túmulo de Helena, assoalhados, frescos, regados pelas águas doces de Enrogel.
-Ah Topsius, que cidade! - murmurei maravilhado.
-Rabi Eliézer diz que não viu jamais cidade bela, quem não viu Jerusalém!
Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo para os lados da verde estrada que sobe de Betânia; e um velho que puxava à pressa a arreata do seu burro, carregado de molhos de palmas, gritou-nos que se avistara e vinha chegando a caravana da Galiléia! Então, curiosos, trotamos até um cômoro, junto a uma sebe de cactos, onde já se apinhavam mulheres com os filhos ao colo, sacudindo véus claros, soltando palavras de bênção e de boa acolhida; e logo vimos, numa poeirada lenta que o sol dourava, a densa fila dos peregrinos que são os derradeiros a chegar a Jerusalém, vindos de longe, da alta Galiléia, desde Gescala e dos montes. Um rumor de cânticos enchia a estrada festiva; em torno a um estandarte verde agitavam-se palmas e ramos floridos de amendoeira; e os grandes fardos, carregando o dorso dos camelos, balanceavam em cadência por entre os turbantes brancos cerrados e movendo-se em marcha.
Seis cavaleiros da guarda babilônica de Antipas Herodes, tetrarca de Galiléia, escoltavam a caravana desde Tiberíade; traziam mitras de felpo, as longas barbas separadas em tranças, as pernas ligadas em tiras de couro amarelo; e caracolavam à frente, fazendo estalar numa das mãos açoites de corda, com a outra atirando ao ar e aparando alfanjes que faiscavam. Logo atrás era uma colegiada de levitas, em coro, a passos largos, apoiados a bordões enfeitados de flores, com os rolos da lei apertados sobre o peito, salmodiando rijo os louvores de Sião. E em tomo moços robustos, com as faces infladas e rubras, sopravam para o céu furiosamente em trompas recurvas de bronze.
Mas, dentre a gente apertada à beira da estrada, rompeu uma aclamação. Era um velho, sem turbante, de cabelos soltos, recuando e dançando freneticamente; das mãos cabeludas que ele agitava no ar saía um repique de castanholas; ora arremessava uma perna, ora outra; e toda a sua face barbuda de rei Davi ardia com um fulgor inspirado. Atrás dele, raparigas, pulando compassadamente sobre a ponta ligeira das sandálias, feriam com dolência harpas leves; outras, rodando sobre si, batiam do alto os tamborins - e as suas manilhas de prata brilhavam no pó que os seus pés levantavam, sob a roda das túnicas enfunadas... Então, arrebatada, a turba entoou o velho canto das jornadas rituais e os salmos de peregrinação.
Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalém! Tu és perfeita! Quem te ama conhece a abundância!
E eu bradava também, transportado:
-Tu és o palácio do Senhor, ó Jerusalém, e o repouso do meu coração!
Lenta e rumorosa a caravana passava. As mulheres dos levitas, em burros, veladas e rebuçadas, semelhavam grandes sacos moles; as mais pobres, a pé, traziam nas pontas dobradas do manto frutas e o grão da aveia. Os previdentes, já com a sua oferenda ao Senhor, arrastavam preso do cinto um cordeiro branco; os mais fortes seguravam às costas, presos pelos braços, os doentes, cujos olhos dilatados, nas faces maceradas, procuravam ansiosamente as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se cura.
Entre os peregrinos e a alegre multidão que os acolhia, as bênçãos cruzavam-se, ruidosas e ardentes; alguns perguntavam pelos vizinhos, pelas searas ou pelos avós que tinham ficado na aldeia à sombra da sua vinha; e ouvindo que lhe fora roubada a pedra do seu moinho, um velho, ao meu lado, com as barbas de um Abraão, arremessou-se a terra a arrepelar-se e a esfarrapar a túnica. Mas já, fechando a marcha, passavam as mulas com guizos carregadas de lenha e de odres de azeite; e atrás uma turba de fanáticos que nos arredores, em Betfagé e em Refraim, se tinham juntado à caravana, apareceu, atirando para os lados cabaças de vinho já vazias, brandindo facas, pedindo a morte dos samaritanos e ameaçando a gente pagã...
Então seguindo Topsius, trotei de novo através do monte, para junto dos cedros cobertos do vôo alvo das pombas; e nesse instante também os peregrinos, emergindo da estrada, avistavam enfim Jerusalém, que resplandecia lá embaixo formosa, toda branca na luz... Então foi um santo, tumultuoso, inflamado delírio! Prostrada, a turba batia as faces na terra dura; um clamor de orações subia ao céu puro, por entre o estridor das tubas; as mulheres erguiam os filhos nos braços, ofertando-os arrebatadamente ao Senhor! Alguns permaneciam imóveis, como assombrados, ante os esplendores de Sião; e quentes lágrimas de fé, de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. Os velhos mostravam com o dedo os terraços do templo, as ruas antigas, os sacros lugares da história de Israel: "ali é a porta de Efraim, acolá era a torre das Fornalhas; aquelas pedras brancas, além, são do túmulo de Raquel..." E os que escutavam em redor, apinhados, batiam as mãos, gritavam "Bendita sejas, Sião!" Outros, estonteados, com o cinto desapertado, corriam tropeçando nas cordas das tendas, nos gigos de fruta, a trocar a moeda romana, a comprar o anho da oferta. Por vezes, dentre as árvores, um canto subia, claro, fino, cândido, e que ficava tremendo no ar; a terra um momento parecia escutar, como o céu; serenamente, Sião rebrilhava; do templo os dous fumos lentos ascendiam, com uma continuidade de prece eterna... Depois o canto morria; de novo as bênçãos rompiam, clamorosas; a alma inteira de Judá abismava-se no resplendor do santuário; e braços magros erguiam-se freneticamente para estreitar Jeová.
De repente Topsius colheu-me as rédeas da égua; e quase ao meu lado um homem, com uma túnica cor de açafrão, surgindo esgazeado detrás de uma oliveira e brandindo uma espada, saltou para cima de uma pedra e gritou desesperadamente:
-Homens de Galiléia, acudi, e vós, homens de Neftali!
Peregrinos correram, erguendo os bastões; e as mulheres saiam das tendas, pálidas, apertando os filhos ao colo. O homem fazia tremer a espada no ar; todo ele tremia também; e outra vez bradou, desoladamente:
-Homens de Galiléia, Rabi Jeschoua foi preso! Rabi Jeschoua foi levado a casa de Hanão, homens de Neftali!
-D. Raposo - disse Topsius então, com os olhos faiscantes - o Homem foi preso, e compareceu já diante do Sanedrim!... Depressa, depressa, amigo, a Jerusalém, à casa de Gamaliel!
E à hora em que no templo se fazia a oferta do perfume, quando o sol já ia alto sobre o Hébron, Topsius e eu penetramos, pela porta do Pescado, a passo, numa rua da antiga Jerusalém. Era íngreme, tortuosa, poeirenta, com casas baixas e pobres de tijolo; sobre as portas, fechadas por uma correia, sobre as janelas esguias como fendas gradeadas, havia verduras e palmas entretecidas, fazendo ornatos de páscoa. Nos terraços, rodeados de balaustradas, mulheres diligentes sacudiam os tapetes, joeiravam o trigo; outras, chalrando, penduravam lâmpadas de barro em festões para as iluminações rituais.
Ao nosso lado ia marchando fatigado um harpista egípcio, com uma pluma escarlate presa na peruca frisada, um pano branco envolvendo-lhe a cinta fina, os braços pesados de braceletes, e a harpa às costas, recurva como uma foice e lavrada em flores de lótus. Topsius perguntou-lhe se ele vinha de Alexandria. E ainda se cantavam, nas tabernas do Eunotos, as cantigas da batalha de Ácio? O homem, logo mostrando num riso triste os dentes longos, pousou a harpa, ia ferir os bordões... Picamos as éguas; e assustamos duas mulheres cobertas de véus amarelos, com casais de pombas enroladas na ponta do manto, que se apressavam decerto para o templo, airosas, ligeiras, fazendo retinir os guizos das suas sandálias.
Aqui e além um lume caseiro ardia no meio da rua, com trempes, caçarolas, de onde saía um cheiro acre de alho; crianças de ventre enorme que rolavam nuas pela poeira, roendo vorazmente cascas de abóbora crua, ficavam pasmadas para nós, com grandes olhos ramelosos onde fervilhavam moscas. Diante de uma forja, um bando hirsuto de pastores de Moabe esperavam, enquanto dentro, martelando num nimbo de chispas, os ferreiros lhes batiam ferros novos para as lanças. Um negro, com um pente em forma de sol toucando-lhe a carapinha, apregoava, num grito lúgubre, bolos de centeio de feitios obscenos.
Calados, atravessamos uma praça, clara e lajeada, que andava em obras. Ao fundo uma casa de banhos, moderna, uma terma romana, estendia com ar de luxo e de ociosidade a longa arcada do seu pórtico de granito; no pátio interior, por entre os plátanos que o refrescavam, cujos ramos suspendiam velários de linho alvo, corriam escravos nus, reluzentes de suor, levando vasos de essências e braçadas de flores; das aberturas gradeadas, ao rés das lajes, saía um bafo mole de estufa que cheirava a rosa. E sob uma das colunas vestibulares, onde uma lápide de ônix indicava a entrada das mulheres, estava de pé, imóvel, ofertando-se aos votos como um ídolo, uma criatura maravilhosa; sobre a sua face redonda, de uma brancura de lua cheia, com lábios grossos, rubros de sangue, erguia-se a mitra amarela das prostitutas da Babilônia; dos ombros fortes, por cima da túmida rijeza dos seios direitos, caía, em pregas duras de brocado, uma dalmática negra radiantemente recamada de ramagens cor de ouro. Na mão tinha uma flor de cacto; e as suas pálpebras pesadas, as pestanas densas, abriam-se e fechavam-se em ritmo, ao mover onduloso de um leque que uma escrava preta, agachada a seus pés balançava cantando.
Quando os seus olhos se cerravam, tudo em redor parecia escurecer; e quando se levantava a negra cortina das suas pestanas, vinha dessa larga pupila um clarão, uma influência, como a do sol do meio-dia no deserto, que abrasa e vagamente entristece. E assim se ofertava, magnífica, com os seus grandes membros de mármore, a sua mitra fulva, lembrando os ritos de Astarté e de Adônis, lasciva e pontifical...
Toquei no braço de Topsius, murmurei, pálido:
-Caramba! Vou aos banhos!
Seco, empertigado na sua capa branca, ele volveu asperamente:
-Espera-nos Gamaliel, filho de e Simeão. E a sabedoria dos rabis lá disse que a mulher é o caminho da iniquidade!
E bruscamente penetrou numa lobrega viela, toda abobadada; as patas das éguas, ferindo as lajes, acirraram contra nós uivos de cães, maldições de mendigos, amontoados juntos no escuro. Depois saltamos por uma brecha da antiga muralha de Ezequiá, passamos uma velha cisterna seca onde os lagartos dormiam; e trotando pela poeira solta de uma longa rua, entre muros caiados que reluziam e portas besuntadas de alcatrão, paramos no alto diante de uma entrada mais nobre, em arco, com uma grande baixa de arame que a defendia dos escorpiões. Era a casa de Gamaliel.
No meio de um vasto pátio ladrilhado, escaldando ao sol, um limoeiro toldava a água clara de um tanque. Em volta, sobre pilastras de mármore verde, corria uma varanda, silenciosa e fresca, de onde pendia, aqui e além, um tapete da Assíria com flores bordadas. Um puro azul brilhava no alto; - e ao canto, sob um alpendre, um negro, atrelado por cordas como uma alimária a uma barra de pau, calçado de ferraduras, vincado de cicatrizes, ia fazendo gemer e girar, lentamente, a grande mó de pedra do moinho doméstico.
No escuro de uma porta apareceu um homem obeso, sem barba, quase tão amarelo como a túnica lassa que o envolvia todo; tinha na mão uma vara de marfim e mal podia erguer as pálpebras moles.
-Teu amo? - gritou-lhe Topsius, desmontando.
Entra - disse o homem numa voz fugidia e fina como silvo de cobra.
Por uma escadaria rica de granito negro chegamos a um patamar, onde pousavam dous candelabros, espigados como os arbustos de que reproduziam, em bronze, o tronco sem folhas; e entre eles estava de pé, diante de nós, Gamaliel, filho de Simeão. Era muito alto, muito magro; e a barba solta, lustrosa, perfumada, enchia-lhe o peito, onde brilhava um sinete de coral pendurado de uma fita escarlate. O seu turbante branco, entremeado de fios de pérolas, descobria uma tira de pergaminho colada sobre a testa e cheia de textos sagrados; sob aquela alvura, os seus olhos encovados tinham um fulgor frio e duro. Uma longa túnica azul cobria-o até às sandálias, orlada de compridas franjas que arrastavam; e cozidas às mangas, enroladas nos pulsos, tinha ainda outras tiras de pergaminho, onde negrejavam outras escrituras rituais.
Topsius saudou-o à moda do Egito, deixando cair lentamente a mão até à joalheira da sua calça de lustrina. Gamaliel alargou os braços e murmurou, como salmodiando:
-Entrai, sede bem-vindos, comei e regozijai-vos...
E atrás de Gamaliel, pisando um chão sonoro de mosaico, penetramos numa sala onde se achavam três homens. Um, que se afastou da janela para nos acolher, era magnificamente belo, com longos cabelos castanhos, pendendo em anéis doces em torno de um pescoço forte, macio e branco como um mármore corintio; na faixa negra que lhe apertava a túnica brilhava, com pedrarias, o punho de ouro de uma espada curta. O outro, calvo, gordo, com uma face balofa sem sobrancelhas, e tão lívida que parecia coberta de farinha, ficara encruzado, embrulhado no seu manto cor de vinho, sobre um divã feito de correias, tendo uma almofada de púrpura debaixo de cada braço; e o seu gesto de acolhida foi mais distraído e desdenhoso, do que a esmola que se atira ao estrangeiro. Mas Topsius quase se prostrara, a beijar os seus sapatos redondos de couro amarelo, atados por fios de ouro, porque aquele era o venerando Osânias, da família pontifical de Beotos, ainda do sangue real de Aristóbolo! O outro homem não o saudamos, nem ele também nos viu; estava agachado a um canto, com a face sumida no capuz de uma túnica de linho mais alvo que a neve fresca, como mergulhado numa oração; e só de vez em quando se movia, para limpar as mãos lentamente a uma toalha da fina brancura da túnica, que lhe pendia de uma corda, apertada à cintura, grossa e cheia de nós, como as que cingem os monges.
No entanto, descalçando as luvas, eu examinava o teto da sala, todo de cedro, com lavores retocados de escarlate. O azul liso e lustroso das paredes era como a continuação daquele céu do Oriente, quente e puro, que resplandecia através da janela, onde se destacava, pendido do muro, na plena luz, um ramo solitário de madressilva. Sobre uma tripeça, incrustada de nácar, num incensador de bronze, fumegava uma resina aromática.
Mas Gamaliel aproximara-se, e depois de ter olhado duramente as minhas botas de montar, disse com lentidão:
-A jornada do Jordão é longa, deveis vir esfomeados...
Murmurei polidamente uma recusa... E ele, grave como se recitasse um texto:
-A hora do meio-dia é a mais grata ao Senhor. José disse a Benjamim: "tu comerás comigo ao meio-dia". Mas a alegria do hóspede é também doce ao muito alto, ao muito forte... Estais fracos, ides comer, para que a vossa alma me abençoe.
Bateu as palmas; um servo, com os cabelos apertados num diadema de metal, entrou trazendo um jarro cheio de água tépida que cheirava a rosa, onde eu purifiquei as mãos; outro ofereceu bolos de mel sobre viçosas folhas de parra; outro verteu, em taças de louça brilhante, um vinho forte e negro de Emaús. E para que o hóspede não comesse só, Gamaliel partiu um gomo de romã, e com as pálpebras cerradas levou à beira dos lábios uma malga, onde boiavam pedaços de gelo entre flores de laranjeira.
-Pois agora - disse eu lambendo os dedos - tenho lastro até ao meio-dia...
-Que a tua alma se regozije!
Acendi um cigarro, debrucei-me na janela. A casa de Gamaliel ficava num alto, decerto por trás do templo, sobre a colina de Orfel; ali o ar era tão doce e macio, que só o sentir a sua carícia enchia de paz o coração. Por baixo corria a muralha nova erguida por Herodes, o Grande; e para além floriam jardins e pomares, dando sombra ao Vale da Fonte, e subindo até à colina, em que branquejava, calada e fresca, a aldeia de Siloé. Por uma fenda, entre o Monte do Escândalo e a Colina dos Túmulos, eu via resplandecer o Mar Morto como uma chapa de prata; as montanhas de Moabe ondulavam depois, suaves, de um azul apenas mais denso que o do céu; e uma forma branca, que parecia tremer na vibração da luz, devia ser a cidadela de Maqueros sobre o seu rochedo, nos confins da Iduméia. No terraço relvoso de uma casa, ao pé das muralhas, uma figura imóvel, abrigada sob um alto guarda-sol franjado de guizos, olhava como eu para esses longes da Arábia; e ao lado uma rapariga, ligeira e delgada, com os braços nus e erguidos, chamava um bando de pombas que esvoaçavam em redor. A túnica aberta descobria- lhe o seiozinho cheio de seiva; e era tão linda, morena e dourada pelo sol, que eu ia, no silêncio do ar, atirar-lhe um beijo... Mas recolhi, ouvindo Gamaliel que dizia, como o homem do manto cor de açafrão no Monte das Oliveiras: "Sim esta noite, em Betânia, Rabi Jeschoua foi preso..."
Depois ajuntou, lento, com os olhos semicerrados, erguendo por entre os dedos os longos fios da barba:
-Mas Pôncio teve um escrúpulo... Não quis julgar um homem de Galiléia, que é súdito de Antipas Herodes... E como o tetrarca veio à Páscoa a Jerusalém, Pôncio mandou o Rabi à sua morada, a Bezeta...
Osdoutos óculos de Topsius rebrilharam de espanto.
-Cousa estranha! - exclamou, abrindo os braços magros. - Pôncio escrupuloso, Pôncio formalista! E desde quando respeita Pôncio a judicatura do tetrarca? Quantos pobres galileus não fez ele matar sem licença do tetrarca, quando foi da revolta do aqueduto, quando espadas romanas, por ordem de Pôncio, misturaram, nos pátios do templo, o sangue dos homens de Neftali ao sangue dos bois do sacrifício!
Gamaliel murmurou sombriamente:
-O romano é cruel, mas escravo da legalidade.
Então Osânias, filho de Beotos, disse com um sorriso mole e sem dentes, agitando de leve, sobre a púrpura das almofadas, as mãos resplandecentes de anéis:
-Ou talvez seja que a mulher de Pôncio proteja o Rabi.
Gamaliel, surdamente, amaldiçoou o impudor da romana. E como os óculos de Topsius interrogavam o venerando Osânias, ele admirou-se que o doutor ignorasse cousas tão conversadas no templo, até pelos pastores que vêm da Iduméia vender os cordeiros da oferenda. Sempre que o Rabi pregava no Pórtico de Salomão, do lado da Porta Susa, Cláudia vinha vê-lo do alto do terraço da Torre Antônia, só, envolta num véu negro... Menahem, que guardava no mês de Tebete a escadaria dos Gentis, vira a mulher de Pôncio acenar com o véu ao Rabi. E talvez Cláudia, saciada de Cápreas, de todos os cocheiros do circo, de todos os histriões de Suburra, e dos brinquedos de Atalanta que fizeram perder a voz ao cantor Ácio, quisesse provar, vindo à Síria, a que sabiam os beijos de um profeta de Galiléia...
O homem vestido de linho alvo ergueu bruscamente a face, sacudindo o capuz de sobre os cabelos revoltos; o seu largo olhar azul fulgurou por toda a sala, num relâmpago, e apagou-se logo, sob a humildade grave das pestanas que se baixaram... Depois murmurou, lento e severo:
-Osânias, o Rabi é casto!
O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabi! E então essa galiléia de Magdala, que vivera no bairro de Bezeta, e nas festas do Prurim se misturava com as prostitutas gregas às portas do teatro de Herodes?... E Joana, a mulher de Cosna, um dos cozinheiros de Antipas? E outra de Efraim, Susana, que uma noite, a um gesto do Rabi, a um aceno do seu desejo, deixara o tear, deixara os filhos, e com o pecúlio doméstico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesaréia?...
-Oh Osânias! - gritou, batendo palmas folgazãs, o homem formoso que tinha uma espada com pedrarias. - Oh filho de Beotos, como tu conheces, uma a uma, as incontinências de um Rabi galileu, filho das ervas do chão e mais miserável que elas!
Nem que se tratasse de Élio Lama, nosso legado imperial, que o Senhor cubra de males!
Os olhos de Osânias, miudinhos como duas contas de vidro negro, reluziram de agudeza e malícia.
-Oh Manassés! E para que vós outros, os patriotas, os puros herdeiros de Judas de Galaunítida, não nos acuseis sempre, a nós saduceus, de saber só o que se passa no átrio dos sacerdotes e nos eirados da casa de Hanão...
Uma tosse rouca reteve-o um espaço, sufocando, sob a ponta do manto em que vivamente se embuçara. Depois, mais quebrado, com laivos roxos na face farinhenta:
-Que em verdade foi justamente na casa de Hanão que ouvimos isto a Menahem, passeando todos debaixo da vinha... E mesmo nos contou ele que esse Rabi de Galiléia chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagás, e outras mais impuras que o porco... Um levita viu-o, na estrada de Siquém, erguer-se afogueado, detrás da borda de um poço, com uma mulher de Samaria!
O homem coberto de alvo linho ergueu-se de um salto, todo direito e trêmulo; e no grito que lhe escapou, havia o horror de quem surpreendeu a profanação de um altar!
Mas Gamaliel, com uma seca autoridade, cravou nele os olhos duros:
-Oh Gade, aos trinta anos o Rabi não é casado! Qual é o seu trabalho? Onde está o campo que lavra? Alguém jamais conheceu a sua vinha? Vagabundeia pelos caminhos e vive do que lhe ofertam essas mulheres dissolutas! E que outra cousa fazem esses moços sem barba de Sibáris e de Lesbos, que passeiam todo o dia na Via Judiciária, e que vós outros, essênios, abominais de tal sorte, que correis a lavar as vestes numa cisterna, se um deles roça por vós?... Tu ouviste Osânias, filho de Beotos... Só Jeová é grande! E em verdade te digo que, quando Rabi Jeschoua, desprezando a lei, dá à mulher adúltera um perdão que tanto cativa os simples, cede à frouxidão da sua moral e não à abundância da sua misericórdia!
Com a face abrasada, e atirando os braços ao ar, Gade bradou:
-Mas o Rabi faz milagres!
E foi o famoso Manassés, com um sereno desdém, que respondeu ao essênio:
-Sossega, Gade, outros têm feito milagres! Simão de Samaria fez milagres. Fê-los Apolônio, e fê-los Gabieno... E que são os prodígios do teu galileu comparados aos das filhas do Grão-Sacerdote Ánio, e aos do sábio Rabi Quequiná?
E Osânias escarnecia a simpleza de Gade:
-Em verdade, que aprendeis vós outros, essênios, no vosso oásis de Engada? Milagres! Milagres até os pagãos os fazem! Vai a Alexandria, ao porto do Eunotos, para a direita, onde estão as fábricas de papiros, e vês lá magos fazendo milagres por uma dracma, que é o preço de um dia de trabalho. Se o milagre prova a divindade, então é divino o peixe Oanes, que tem barbatanas de nácar e prega nas margens do Eufrates, em noites de lua cheia!
Gade sorria com altivez e doçura. A sua indignação expirara sob a imensidão do seu desdém. Deu um passo vagaroso, depois outro, e considerando, apiedadamente, aqueles homens enfatuados, endurecidos e cheios de irrisão:
-Vós dizeis, vós dizeis, vãos à maneira de moscardos que zumbem! Vós dizeis, e vós não o ouvistes! Em Galiléia, que é bem fértil, bem verde, quando ele falava era como se corresse uma fonte de leite em terra de fome e secura: até a luz parecia um bem maior! As águas, no Lago de Tiberíade, amansavam para o escutar; e aos olhos das crianças que o rodeavam, subia a gravidade de uma fé já madura... Ele falava; e como pombas que desdobram as asas e voam da porta de um santuário, nós víamos desprender-se dos seus lábios, irem voar por sobre as nações do mundo, toda a sorte de cousas nobres e santas, a caridade, a fraternidade, a justiça, a misericórdia, e as formas novas, belas, divinamente belas, do amor!
A sua face resplandecia, enlevada para os céus, como seguindo o vôo dessas novas divinas. Mas já do lado, Gamaliel, doutor da lei, o rebatia com uma dura autoridade:
Que há de original e de individual em todas essas idéias, homem? Pensas que o rabi as tirou da abundância do seu coração? Está cheia delas a nossa doutrina!... Queres ouvir falar de amor, de caridade, de igualdade? Lê o livro de Jesus, filho de Sidrá... Tudo isso o pregou Hilel; tudo isso o disse Esquemaia! Cousas tão justas se encontram nos livros pagãos que são, ao pé dos nossos, como o lodo ao pé da água pura de Siloé!... Vós mesmos, os essênios, tendes preceitos melhores!... Os rabis de Babilônia, de Alexandria, ensinaram sempre leis puras de justiça e de igualdade! E ensinou-as o teu amigo Iocanã, a quem chamais o Batista, que lá acabou tão miseravelmente num ergástulo de Maqueros.
-Iocanã! - exclamou Gade, estremecendo, como rudemente acordado da suavidade de um
sonho.
Os seus olhos brilhantes umedeceram. Três vezes, curvado para o chão, com os braços
abertos, repetiu o nome de Iocanã, como chamando alguém dentre os mortos. Depois, com duas lágrimas rolando pela barba, murmurou muito baixo, numa confidência que o enchia de terror e de fé:
-Fui eu que subi a Maqueros a buscar a cabeça do Batista! E quando descia o caminho, com ela embrulhada no meu manto, ainda a outra, Herodíade, estirada por sobre a muralha como a fêmea lasciva do tigre, rugia e me gritava injúrias!... Três dias e três noites segui pelas estradas de Galiléia, levando a cabeça do justo pendurada pelos cabelos... Às vezes, detrás de um rochedo, um anjo surgia todo coberto de negro, abria as asas e punha-se a caminhar ao meu lado...
De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos ressoaram nas lajes; e ficou prostrado, orando ansiosamente, com os braços estendidos em cruz.
Então Gamaliel adiantou-se para o sábio Topsius; e, mais direito que uma coluna do templo, com os cotovelos colados à cinta, as mãos magras espalmadas para fora:
-Nós temos uma lei; a nossa lei é clara. Ela é a palavra do Senhor; e o Senhor disse: "Eu sou Jeová, o eterno, o primeiro e o último; o que não transmite a outros nem o seu nome, nem a sua glória; antes de mim não houve deus algum, não existe deus algum ao meu lado, não haverá deus algum depois de mim..." Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda: "Se pois entre vós aparecer um profeta, um visionário que faça milagres e queira introduzir outro deus e chame os simples ao culto desse deus, esse profeta e visionário morrerá!" Esta é a lei, esta é a voz do Senhor. Ora, o Rabi de Nazaré proclamou-se deus em Galiléia, nas sinagogas, nas ruas de Jerusalém, nos pátios santos do templo... O Rabi deve morrer.
Mas o famoso Manassés, cujo lânguido olhar entenebrecia como um céu onde vai trovejar, interpôs-se entre o doutor da Lei e o historiador dos Herodes. E nobremente repeliu a letra cruel da doutrina:
Não, não! Que importa que a lâmpada de um sepulcro diga que é o sol? Que importa que um homem abra os braços e grite que é um deus? As nossas leis são suaves; por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil a Garebe...
Eu, caridoso, ia louvar Manassés. Mas já ele bradava, com violência e fervor.
-Todavia, esse Rabi de Galiléia deve decerto morrer, porque é um mau cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o tributo a César? O Rabi estende a mão a Roma; o romano não é o seu inimigo. Há três anos que prega, e ninguém jamais lhe ouviu proclamar a necessidade santa de expulsar o estrangeiro. Nós esperamos um messias que traga uma espada e liberte Israel, e este, néscio e verboso, declara que traz só o pão da verdade!
Quando há um pretor romano em Jerusalém; quando são lanças romanas que velam às portas do nosso Deus, a que vem esse visionário falar do pão do céu e do vinho da verdade? A única verdade útil é que não deve haver romanos em Jerusalém!...
Osânias, inquieto, olhou a janela cheia de luz, por onde as ameaças de Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o discípulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão:
-Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céu, é fazer-lhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta terra de Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O Rabi é traidor à Pátria! O Rabi deve morrer!
Trêmulo, agarrara a espada; e o seu olhar alargava-se, com uma fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a glória dos suplícios.
Então Osânias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava numa pinha de ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuviar a sua velhice leviana. E começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do entusiasmo e da doutrina aponta o mandato iniludível da necessidade:
-Decerto, decerto, pouco importa que um visionário se diga messias e filho de Deus; ameace destruir a lei e destruir o templo. O Templo e a Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar o carrasco a Garebe, porque um Rabi de Galiléia, que se lembra dos filhos de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudência e malícia nas relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos; mas podes tu, com elas, desviar a corrente do Jordão, da terra de Canaã para a terra da Tracaunítida? Não. Nem podes também impedir que as legiões de César, que cobriram as cidades da Grécia, venham cobrir o país de Judá! Sábio e forte era Judas Macabeu, e fez amizade com Roma... Porque Roma é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando ele vem, o insensato oferece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente recolhe à sua morgada e está quieto. Indomável era a Galácia; Filipe e Perseu tinham exércitos na planície; Antíoco, o Grande comandava cento e vinte elefantes e carros de guerra inumeráveis... Roma passou; deles que resta? Escravos, pagando tributos...
Curvara-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre nós os olhos miúdos que dardejavam um brilho inexorável e frio, prosseguiu, sempre de manso e sutil:
-Mas em verdade vos digo, que esse Rabi de Galiléia deve morrer! Porque é o dever do homem que tem bens na terra e searas, apagar depressa com a sandália, sobre as lajes da eira, a fagulha que ameaça inflamar-lhe a meda... Com o romano em Jerusalém, todo aquele que venha e se proclame Messias, como o de Galiléia, é nocivo e perigoso para Israel. O romano não compreende o reino do céu que ele promete; mas vê que essas prédicas, essas exaltações divinas, agitam sombriamente o povo dentro dos pórticos do templo... E então diz: "na verdade este templo, com o seu ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a autoridade de César na Judéia..." E logo, lentamente, anula a força do templo diminuindo a riqueza, os privilégios do seu sacerdócio. Já para nossa humilhação, as vestes pontificais são guardadas no erário da Torre Antônia; amanhã será o candelabro de ouro! Já o pretor usou, para nos empobrecer, o dinheiro do Corbã! Amanhã os dízimos da colheita, o dos gados, o dinheiro da oferenda, o óbolo das trombetas, os tributos rituais, todos os haveres do sacerdócio, até as viandas dos sacrifícios, nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para irmos mendigar nas estradas de Samaria, à espera dos mercadores ricos da Decápola... Em verdade vos digo, se quisermos conservar as e os tesouros, que são nossos pela antiga lei, e que fazem o esplendor de Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um templo quieto, policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabi deve morrer!
Assim diante de mim falou Osânias, filho de Beotos, e membro de Sanedrim.
Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverência as mãos sobre o peito, saudou três vezes aqueles homens facundos. Gade, imóvel, orava. No azul da janela uma abelha cor de ouro zumbia, em tomo da flor de madressilva. E Topsius dizia com pompa:
-Homens que me haveis acolhido! A verdade abunda nos vossos espíritos, como a uva abunda nas videiras! Vós sois três torres que guardais Israel entre as nações; uma defende a unidade da religião; outra mantém o entusiasmo da pátria; e a terceira, que és tu, venerando filho de Beotos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma cousa mais preciosa, que é a ordem!... Vós sois três torres; e contra cada uma o Rabi de Galiléia ergue o braço e lança a primeira pedrada! Mas vós guardais Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o judaísmo nunca poderiam viver juntos.
E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara frágil, disse, mostrando os dentes brancos:
-Por isso o crucificamos!
Foi como uma faca acerada que, lampejando e salvando, se viesse cravar no meu peito!
Arrebatei, sufocado, a manga do douto historiador:
-Topsius! Topsius! Quem é esse Rabi que pregava em Galiléia e faz milagres e vai ser crucificado?
O sábio doutor arregalou os olhos com tanto pasmo, como se eu lhe perguntasse qual era o astro que, dalém d9s montes, traz a luz da manhã. Depois, secamente:
-Rabi Jeschoua bar Joseph, que veio de Nazaré em Galiléia, a quem alguns chamam Jesus e outros também chamam o Cristo.
-O nosso! - gritei, vacilando, como um homem atordoado. E os meus joelhos católicos quase bateram as lajes, num impulso de ficar ali caído, enrodilhado no meu pavor, rezando desesperadamente e para sempre. Mas logo como uma labareda chamejou por todo o meu ser o desejo de correr ao seu encontro e pôr os meus olhos mortais no corpo do meu Senhor, no seu corpo humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam os caminhos humanos!... E ao mesmo tempo, mais do que treme a folha num áspero vento, tremia a minha alma num terror sombrio, o terror do servo negligente diante do amo justo! Estava eu bastante purificado, com jejuns e terços, para afrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga deficiência da minha devoção! Eu não beijara jamais, com suficiente amor, o seu pé dorido e roxo na sua Igreja da Graça! Ai de mim! Quantos domingos, nesses tempos carnais em que a Adélia, sol da minha vida, me esperava na Travessa dos Caídas, fumando e em camisa, não maldissera eu a lentidão das missas e a monotonia dos septenários! E sendo assim, do crânio à sola dos pés uma crosta de pecado, como poderia meu corpo não tombar, já réprobo, já tisnado, quando os dous globos dos olhos do Senhor, como duas metades do céu, se voltassem vagarosamente para mim?
Mas ver Jesus! Ver como eram os seus cabelos, que pregas fazia a sua túnica, e o que acontecia na terra quando os seus lábios se abriam!... Para além desses eirados onde as mulheres atiravam grãos às pombas; numa dessas ruas de onde me chegava claro e cantado o pregão dos vendedores de pães ázimos, ia passando talvez, nesse temeroso instante, entre barbudos, graves soldados romanos, Jesus, meu Salvador, com uma corda amarrada nas mãos. A lenta aragem que balançava na janela o ramo de madressilva, e lhe avivava o aroma, acabava talvez de roçar a fronte do meu Deus, já ensangüentada de espinhos! Era só empurrar aquela porta de cedro, atravessar o pátio onde gemia a mó do moinho doméstico, e logo, na rua, eu poderia ver, presente e corpóreo, o meu Senhor Jesus tão realmente e tão bem como o viram São João e São Mateus. Seguiria a sua sacra sombra no muro branco - onde cairia também a minha sombra. Na mesma poeira que as minhas solas pisassem - beijaria a pegada ainda quente dos seus pés! E abafando com ambas as mãos o barulho do meu coração, eu poderia surpreender, saído da sua boca inefável, um ai, um soluço, um queixume, uma promessa! Eu saberia então uma palavra nova do Cristo, não escrita no Evangelho; e só eu teria o direito pontifical de a repelir às multidões prostradas. A minha autoridade surgia, na Igreja, como a de um testamento novíssimo. Eu era uma testemunha inédita da paixão. Tomava-me S. Teodorico Evangelista!
Então, com uma desesperada ansiedade, que espantou aqueles orientais de maneiras mesuradas, eu gritei:
-Onde o posso ver? Onde está Jesus de Nazaré, meu Senhor?
Nesse momento um escravo, correndo na ponta leve das sandálias, veio cair de bruços nas lajes, diante de Gamaliel; beijava-lhe as franjas da túnica; as suas costelas magras arquejavam; por fim murmurou, exausto:
-Amo, o Rabi está no Pretório!
Gade emergiu da sua oração com um salto de fera, apertou em torno dos rins a corda de nós, e correu arrebatadamente, com o capuz solto, espalhando em redor o sulco louro dos seus cabelos revoltos. Topsius traçara a sua capa branca, com essas pregas de toga latina que lhe davam a solenidade de um mármore; e tendo comparado a hospitalidade de Gamaliel à de Abraão, bradou-me triunfantemente:
-Ao Pretório!
Muito tempo segui Topsius através da antiga Jerusalém, numa caminhada ofegante, todo perdido no tumulto dos meus pensamentos. Passamos junto a um jardim de rosas, do tempo dos profetas, esplêndido e silencioso que dous levitas guardavam com lanças douradas. Depois foi uma rua fresca, toda aromatizada pelas lojas dos perfumistas, ornadas de tabuletas em forma de flores e de almofarizes; um toldo de esteiras finas assombreava as portas; o chão estava regado e juncado de erva-doce e de folhas de anêmonas; e pela sombra preguiçavam moços lânguidos, de cabelos frisados em cachos, de olheiras pintadas, mal podendo erguer, nas mãos pesadas de anéis, as sedas roçagantes das túnicas cor de cereja e cor de ouro. Além dessa rua indolente abria-se uma praça, que escaldava ao sol, com uma poeira grossa e branca, onde os pés se enterravam; solitária, no meio, uma vetusta palmeira arqueava o seu penacho, imóvel e como de bronze; e ao fundo, negrejavam na luz as colunatas de granito do velho palácio de Herodes. Aí era o Pretório.
Defronte do arco de entrada, onde rondavam, com plumas pretas no elmo reluzente, dous legionários da Síria - um bando de raparigas, tendo detrás da orelha, uma rosa e no regaço coifas de esparto, apregoavam os pães ázimos. Sob um enorme guarda-sol de penas, cravado no chão, homens de mitra de feltro, com tábuas sobre os joelhos e balanças, trocavam a moeda romana. E os vendedores de água, com os seus odres felpudos, lançavam um grito trêmulo. Entramos: e logo um terror me envolveu.
Era um claro pátio, aberto sob o azul, lajeado de mármore, tendo de cada lado uma arcada, elevada em terraço, com parapeito, fresca e sonora como um claustro de mosteiro. Da arcaria ao fundo, encimada pela frontaria austera do palácio, estendia-se um velário, de um estofo escarlate franjado de ouro, fazendo uma sombra quadrada e dura; dous mastros de pau de sicômoro sustentavam-no, rematados por uma flor de lótus.
Aí apertava-se um magote de gente - onde se confundiam as túnicas dos fariseus orladas de azul, o rude saião de estamenha dos obreiros apertado com um cinto de couro, os vastos albornozes listrados de cinzento e branco dos homens de Galiléia, e a capa carmesim de grande capuz dos mercadores de Tiberíade; algumas mulheres, já fora do abrigo do velário, alçavam-se na ponta das chinelas amarelas, estendendo por cima do rosto contra o sol uma dobra do manto ligeiro; e daquela multidão saía um cheiro morno de suor e de mirra. Para além, por cima dos turbantes alvos apinhados, brilhavam pontas de lança. E ao fundo, sobre um sólio, um homem, um magistrado, envolto nas pregas nobres de uma toga pretexta, e mais imóvel que um mármore, apoiava sobre o punho forte a barba densa e grisalha; os seus olhos encovados pareciam indolentemente adormecidos; uma fita escarlate prendia-lhe os cabelos; e por trás, sobre um pedestal que fazia espaldar à sua cadeira curul, a figura de bronze da loba romana abria de través a goela voraz. Perguntei a Topsius quem era aquele magistrado melancólico.
-Um certo Pôncio, chamado Pilatos, que foi prefeito em Batávia.
Lentamente caminhei pelo pátio, procurando, como num templo, fazer mais sutil e respeitoso o ruído das minhas solas. Um grave silêncio caía do céu rutilante; só, por vezes, rompia do lado dos jardins, áspero e triste, o gritar dos pavões. Estendidos no chão, junto à balaustrada do claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma velha contava moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de fruta. Em andaimes, postos contra uma coluna, havia trabalhadores compondo o telhado. E crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam de leve nas lajes.
Subitamente, alguém familiar tocou no ombro do historiador dos Herodes. Era o formoso Manassés; e com ele vinha um velho magnífico, de uma nobreza de pontífice, a quem Topsius beijou filialmente a manga da samarra branca, bordada de verdes folhas de parra. Uma barba de neve, lustrosa de óleo, caía-lhe até à faixa que o cingia; e os ombros largos desapareciam sob a esparsa abundância dos cabelos alvos, saindo do turbante como uma pura romeira de arminhos reais. Uma das mãos, cheia de anéis, apoiava-se a um forte bastão de marfim; e a outra conduzia uma criança pálida, que tinha os olhos mais belos que estrelas, e semelhava, junto ao ancião, um lírio à sombra de um cedro.
-Subi à galeria - disse-nos Manassés. - Tereis lá repouso e frescura...
Seguimos o patriota; e eu perguntei cautelosamente a Topsius quem era o outro tão velho, tão augusto.
-Rabi Robã - murmurou com veneração o meu douto amigo. - Uma luz do Sanedrim, facundo e sutil entre todos, e confidente de Caifás...
Reverente, saudei três vezes Rabi Robã - que se sentara num banco de mármore, pensativo, aconchegando, sobre o seu vasto peito ancestral, a cabeça da criança mais loura que os milhos de Jopé. Depois continuamos devagar pela galeria sonora e clara na sua extremidade brilhava uma porta suntuosa de cedro com chapas de prata lavradas; um pretoriano de Cesaréia guardava-a, sonolento, encostado ao seu alto escudo de vime. Aí, comovido, caminhei para o parapeito; e logo os meus olhos mortais encontraram lá embaixo a forma encarnada do meu Deus!
 Mas, oh rara surpresa da alma variável; não senti êxtase nem terror! Era como se de repente me tivessem fugido da memória longos, laboriosos séculos de história e de religião. Nem pensei que aquele homem seco e moreno fosse o remidor da humanidade... Achei-me inexplicavelmente anterior nos tempos. Eu já não era Teodorico Raposo, cristão e bacharel; a minha individualidade como que a perdera, à maneira de um manto que escorrega, nessa carreira ansiosa desde a casa de Gamaliel. Toda a antigüidade das cousas ambientes me penetrara, me refizera um ser; eu era também um antigo. Era Teodoricus, um lusitano, que viera numa galera das praias ressoantes do Promontório Magno, e viajava, sendo Tibério imperador, em terras tributárias de Roma. E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias - mas apenas um moço de Galiléia que, cheio de um grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um céu e encontra a uma esquina um netenim do templo que o amarra e o traz ao pretor, numa manhã de audiência, entre um ladrão que roubara na estrada de Siquém e outro que atirara facadas numa rixa em Emá!
Num espaço ladrilhado de mosaico, em face do sólio onde se erguia o assento curul do pretor, sob a loba romana - Jesus estava de pé, com as mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azuis, cobria-o até aos pés, calçados de sandálias já gastas pelos caminhos do deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa coroa inumana de espinhos, de que eu lera nos Evangelhos; tinha um turbante branco, feito de uma longa faixa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os ombros; um cordel amarrava-lho por baixo da barba encaracolada e aguda. Os cabelos secos, passados por trás das orelhas, caíam-lhe em anéis pelas costas; e no rosto magro, requeimado, sobre sobrancelhas densas, unidas num só traço, negrejava com uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia, forte e sereno diante do pretor. Só algum estremecimento das mãos presas, traía o tumulto do seu coração; e às vezes respirava longamente, como se o seu peito, acostumado aos livres e claros ares dos montes e dos lagos de Galiléia, sufocasse entre aqueles mármores, sob o pesado velório romano, na estreiteza formalista da lei.
A um lado, Sareias, o vogal do Sanedrim, tendo deposto no chão o seu manto e o seu báculo dourado, ia desenrolando e lendo uma tira escura de pergaminho, num murmúrio cantado e dormente. Sentado num escabelo, o assessor romano, sufocado pelo calor já áspero do mês de Nizam, refrescava com um leque de folhas de heras secas, a face rapada e branca como um gesso; um escriba, velho e nédio, numa mesa de pedra cheia de tabulários e de regras de chumbo, aguçava miudamente os seus cálamos; e entre ambos o intérprete, um fenício imberbe, sorria com a face no ar, com as mãos na cinta, arqueando o peito onde trazia pintado, sobre a jaqueta de linho, um papagaio vermelho. Em torno ao velário, constantemente voavam pombas. E foi assim que eu vi Jesus de Galiléia preso, diante do Pretor de Roma...
No entanto Sareias, tendo enrolado em torno à haste de ferro o pergaminho escuro, saudou Pilatos, beijou um sinete sobre o dedo, para marcar nos seus lábios o selo da verdade, e imediatamente encetou uma arenga em grego, com textos, verbosa e aduladora. Falava do tetrarca de Galiléia, o nobre Antipas; louvava a sua prudência; celebrava seu pai Herodes, o Grande, restaurador do templo... A glória de Herodes enchia a terra; fora terrível, sempre fiel aos césares; seu filho Antipas era engenhoso e forte!... Mas reconhecendo a sua sabedoria, ele estranhava que o tetrarca se recusasse a confirmar a sentença do Sanedrim, que condenava Jesus à morte... Não fora essa sentença fundada nas leis que dera o Senhor? O justo Hanão interrogara o Rabi, que emudecera, num silêncio ultrajante. Era essa a maneira de responder ao sábio, ao puro, ao piedoso Hanão? Por isso um zeloso, sem se conter, atirara a mão violenta à face do Rabi... Onde estava o respeito dos antigos tempos, e a veneração do pontificado?
 A sua voz cava e larga, rolava infindavelmente. Eu, cansado, bocejava. Por baixo de nós, dous homens encruzados nas lajes comiam tâmaras de Betabara, que traziam no saião, bebendo de uma cabaça. Pilatos, com o punho sob a barba, olhava sonolentamente os seus borzeguins escarlates, picados de estrelas de ouro.
E Sareias agora proclamava os direitos do templo. Ele era o orgulho da nação, a morada eleita do Senhor! César Augusto ofertara-lhe escudos e vasos de ouro... E esse templo, como o respeitara o Rabi? Ameaçando destruí-lo! “Eu derrocarei o templo de Jeová e edificá-lo-ei em três dias!” Testemunhas puras, ouvindo esta rude impiedade, tinham coberto a cabeça de cinza, para afastar a cólera do Senhor... Ora, a blasfêmia atirada ao santuário, ressaltava até ao seio de Deus!...
Sob o velário, os fariseus, os escribas, os netenins do templo, escravos sórdidos, sussurravam como arbustos agrestes que um vento começa a agitar. E Jesus permanecia imóvel, abstraidamente indiferente, com os olhos cerrados, como para isolar melhor o seu sonho contínuo e formoso, longe das cousas duras e vás que o maculavam. Então o assessor romano ergueu-se, depôs no escabelo o seu leque de folhas, traçou com arte o manto forense, orlado de azul, saudou três vezes o Pretor, e a sua mão delicada começou a ondear no ar, fazendo cintilar uma jóia.
-Que diz ele?...
-Cousas infinitamente hábeis - murmurou Topsius. - E um pedante, mas tem razão. Diz que o Pretor não é um judeu; que nada sabe de Jeová, nem lhe importam os profetas que se erguem contra Jeová; e que a espada de César não vinga deuses que não protegem César!... O romano é engenhoso!
Ofegando, o assessor recaiu languidamente no escabelo. E logo Sareias volveu a arengar, sacudindo os braços para a multidão dos fariseus, como a evocar os seus protestos, e refugiando- se na sua força. Agora, mais retumbante, acusava Jesus, não da sua revolta contra Jeová e o templo, mas das suas pretensões como príncipe da casa de Davi! Toda a gente em Jerusalém o tinha visto, havia quatro dias, entrar pela Porta de Ouro, num falso triunfo, entre palmas verdes, cercado de uma multidão de galileus, que gritavam -"Hosana ao filho de Davi, hosana ao rei de Israel!..."
-Ele é o filho de Davi, que vem para nos tornar melhores! gritou ao longe a voz de Gade, cheia de persuasão e de amor.
Mas de repente Sareias colou ao corpo as mangas franjadas, mudo e mais teso que um conto de lança; o escriba romano, de pé, com os punhos fincados na mesa, vergava o cachaço reverente e nédio; o assessor sorria, atento. Era o Pretor que ia interrogar o Rabi; e eu, tremendo, vi um legionário empurrar Jesus, que ergueu a face...
Debruçado de leve para o Rabi, com as mãos abertas que pareciam soltar, deixar cair todo o interesse por esse pleito ritual de sectários arguciosos, Pôncio murmurou, enfastiado e incerto:
-És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!... Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?
O intérprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de mármore, repetiu muito alto estas cousas na antiga língua hebraica dos livros santos; e, como o Rabi permanecia silencioso, gritou- as na fala caldaica que se usa em Galiléia.
Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura, dominadora e serena:
-O meu reino não é daqui! Se por vontade de meu pai eu fosse Rei de Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu reino não é deste mundo!
Um grito estrugiu, desesperado:
-Tirai-o então deste mundo!
 E logo, como lenha preparada que uma faísca inflama, o furor dos fariseus e dos serventes do templo irrompeu, crepitando, em clamores impacientes:
-Crucificai-o! Crucificai-o!
Pomposamente o intérprete redizia em grego ao Pretor os brados tumultuosos, lançados na língua siríaca que fala o povo em Judéia... Pôncio bateu o borzeguim sobre o mármore. Os dous lictores ergueram ao ar as varas rematadas numa figura de águia; o escriba gritou o nome de Caio Tibério; e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um terror diante da majestade do povo romano.
De novo Pôncio falou, lento e vago:
-Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?
Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandália pousou fortemente sobre as lajes, como se tomasse posse suprema da terra. E o que saiu dos seus lábios trêmulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor que dos seus olhos negros saiu.
-Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade, quem quiser pertencer à verdade tem de escutar a minha voz!
Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois, encolhendo os ombros:
-Mas, homem, o que é a verdade?
Jesus de Nazaré emudeceu, e no Pretório espalhou-se um silêncio, como se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...
Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro degraus de bronze; e precedido dos lictores, seguido do assessor, penetrou no palácio, por entre o rumor de armas dos legionários que o saudavam, batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.
Imediatamente elevou-se por todo o pátio um áspero e ardente sussurro, como de abelhas irritadas. Sareias perorava, brandindo o báculo, entre os fariseus que apertavam as mãos num terror. Outros, afastados, cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que esvoaçava, corria numa ânsia o Pretório, por entre os que dormiam ao sol, por entre os vendedores de pães ázimos, gritando: "Israel está perdido!" E eu vi levitas fanáticos arrancarem as borlas das túnicas, como numa calamidade pública.
Gade surgiu diante de nós, erguendo os braços triunfantes:
-O Pretor é justo e liberta o Rabi!...
E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O Rabi, apenas solto, deixaria Jerusalém - onde as pedras eram menos duras que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Betânia; e partiriam ao romper da lua para o oásis de Engada! Lá estavam aqueles que o amavam. Não era Jesus o irmão dos essênios? Como eles o Rabi pregava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres, a incomparável beleza do reino de Deus...
Eu, crédulo, regozijava-me - quando um tumulto invadiu a galeria, que um escravo viera regar. Era o bando escuro dos fariseus, em marcha para o banco de pedra, onde Rabi Robã con- versava com Manassés, enrolando docemente nos dedos os cabelos da criança, mais louros que os milhos. Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sareias, no meio, curvado, mas com a firmeza de quem intima, dizia:
-Rabi Robã, é necessário que vás falar ao Pretor e salvar a nossa lei! E logo, de todos os lados, foi um suplicar ansioso:
-Rabi, fala ao Pretor! Rabi, salva Israel!
Lentamente o velho erguia-se, majestoso como um grande Moisés. E diante dele um levita, muito pálido, vergava os joelhos, murmurava a tremer:
-Rabi, tu és justo, sábio, perfeito e forte diante do Senhor!
 Rabi Robã levantou as duas mãos abertas para o céu; e todos se curvaram como se o espírito de Jeová, obedecendo à muda invocação, tivesse descido para encher aquele coração justo. Depois, com a mão da criança na sua, pôs-se a caminhar em silêncio atrás a turba fazia um rumor de sandálias lassas, sobre as lajes de mármore.
Paramos, amontoados, diante da porta de cedro, onde o pretoriano cruzara a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos rangeram; um tribuno do palácio acudiu, tendo na mão um longo galho de vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se palidamente uma estátua de Augusto, com o pedestal juncado de coroas de louro e de ramos votivos; dous grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos, na sombra.
Nenhum dos judeus entrou - porque pisar em dia pascal um solo pagão, era cousa impura diante do Senhor. Sareias anunciou altivamente ao tribuno que "alguns da nação de Israel, à porta do palácio de seus pais, estavam esperando o Pretor". Depois pesou um silêncio, cheio de ansiedade...
Mas dous lictores avançaram; e logo atrás, caminhando a passos largos, com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos apareceu.
Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judéia. Ele parara junto à estátua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da figura de mármore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e disse:
-Que a paz seja convosco e com as vossas palavras... Falai!
Sareias, vogal do Sanedrim, adiantando-se, declarou que os seus corações vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o Pretório, sem confirmar nem anular a sentença do Sanedrim, que condenava Jesus-ben-José - eles se achavam como o homem que vê a uva na vinha, suspensa, sem secar e sem amadurecer!
Pôncio pareceu-me penetrado de eqüidade e demência.
-Eu interroguei o vosso preso - disse ele; e não lhe achei culpa que deva punir o Procurador da Judéia... Antipas Herodes, que é prudente e forte, que pratica a vossa lei e ora no vosso templo, interrogou-o também e nenhuma culpa nele encontrou... Esse homem diz apenas cousas incoerentes, como os que falam em sonhos... Mas as suas mãos estão puras de sangue; nem ouvi que ele escalasse o muro do seu vizinho... César não é um amo inexorável... Esse homem é apenas um visionário.
Então, com um sombrio murmúrio, todos recuaram, deixando Rabi Robã só no limiar da sala romana. Um brilho de jóia tremia na ponta da sua tiara; as suas cãs caindo sobre os vastos ombros, coroavam-no de majestade como a neve faz aos montes; as franjas azuis do seu manto solto rojavam nas lajes, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a lei aos seus discípulos, ergueu a mão e disse:
-Oficial de César, Pôncio, muito justo e muito sábio! O homem que tu chamas visionário, há anos que ofende todas as nossas leis e blasfema o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando te trouxemos nós? Somente quando o vimos entrar em triunfo pela Porta de Ouro, aclamado como Rei da Judéia. Porque a Judéia não tem outro rei senão Tibério; e apenas um sedicioso se proclama em revolta contra César, apressamo-nos a castigá-lo. Assim fazemos nós, que não temos mandado de César, nem cobramos do seu erário; e tu, oficial de César, não queres que seja castigado o rebelde a teu amo?
A face larga de Pôncio, que uma sonolência amolecia, relampeou, raiada vivamente de sangue. Aquela tortuosidade de judeus que, execrando Roma, apregoavam agora um zelo ruidoso por César para poderem, em nome da sua autoridade, saciar um ódio sacerdotal - revoltou a retidão do romano; e a audaciosa admoestação foi intolerável ao seu orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia:
-Cessai! Os procuradores de César não vêm aprender, a uma colônia bárbara da Ásia, os seus deveres para com César!
Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabi prosseguiu, mais indiferente à ira de Pôncio do que ao balar de um anho que arrastasse às aras:
-Que faria o procurador de César, em Alexandria, se um visionário descesse de Bubastes, proclamando-se Rei do Egito? O que tu não queres fazer nesta terra bárbara da Ásia! Teu amo
dá-te a guardar uma vinha, e tu deixas que entrem nela e que a vindimem? Para que estás então na Judéia? Para que está a sexta legião na Torre Antônia? Mas o nosso espírito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Pôncio, para que César a ouça!...
Pôncio deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes, cravados naqueles judeus que, astutamente, o iam enlaçando na trama sutil dos seus rancores religiosos:
-Eu não receio as vossas intrigas! - murmurou surdamente. Elio Lama é meu amigo!... E César conhece-me bem!
-Tu vês o que não está nos nossos corações! - disse Rabi Robã, calmo como se conversasse à sombra do seu vergel. - Mas nós vemos bem o que está no teu, Pôncio! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo de Galiléia?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja divindade não respeitas, como podes querer salvar um profeta cujas profecias não crês?... A tua malícia é outra, romano! Tu queres a destruição de Judá!
Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os fariseus; alguns palpavam o seio da túnica, como procurando uma arma. E Rabi Robã continuava denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão:
-Tu queres deixar impune o homem que pregou a insurreição, declarando-se rei numa província de César, para tentar, pela impunidade, outras ambições mais fortes e levar, outro Judas de Gamala, a atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da Judéia. Tu queres uma revolta para afogares em sangue, e apresentar-te depois a César como soldado vitorioso, administrador sábio, digno de um proconsulado ou de um governo na Itália! E a isso que chamais a fé romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé púnica... Não nos suponhas, porém, tão simples como um pastor de Iduméia! Nós estamos em paz com César, e cumprimos o nosso dever, condenando o homem que se revoltou contra César... Tu não queres cumprir o teu, confirmando essa condenação? Bem! Mandaremos emissários a Roma, levando a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante César a nossa responsabilidade, mostraremos a César como procede na Judéia aquele que representa a lei do Império!... E agora, Pretor, podes voltar ao Pretório.
-E lembra-te dos escudos votivos - gritou Sareias. - Talvez novamente vejas a quem César dá razão!
Pôncio baixara a face, perturbado. Decerto imaginava já ver além, num claro terraço junto ao Mar de Cáprea, Sejano, Cesônio, todos os seus inimigos, falando ao ouvido de Tibério e mostrando-lhe os emissários do templo... César, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um pacto dele com esse "Rei dos Judeus", para sublevarem uma rica provinda imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter podiam custar-lhe o proconsulado da Judéia! Orgulho e justiça foram então, na sua alma frouxa, como ondas um momento altas que uma sobre outra se abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os braços, como trazido por um impulso magnânimo de conciliação - e começou a dizer, mais branco que a sua toga:
-Há sete anos que governo a Judéia. Encontrastes-me jamais injusto, ou infiel às promessas juradas?... Decerto, as vossas ameaças não me movem... César conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de César, não deve haver desacordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum outro procurador, desde Copônio, tenho respeitado as vossas leis... Quando vieram os dous homens de Samaria poluir o vosso templo, não os fiz eu supliciar? Entre nós não deve haver dissensões, nem palavras amargas...
Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e sacudindo-as, como molhadas numa água impura:
-Quereis a vida desse visionário? Que me importa? Tomai-a... Não vos basta a flagelação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que derramo esse sangue!
O levita macilento bradou com paixão:
-Somos nós, e que esse sangue caia sobre as nossas cabeças!
E alguns estremeceram - crentes de que todas as palavras têm um poder sobrenatural e tornam vivas as cousas pensadas.
Pôncio deixara a sala; o decurião, saudando, cerrou a porta de cedro. Então Rabi Robã voltou-se, sereno, resplandecente como um justo; e adiantando-se por entre os fariseus, que se baixavam a beijar-lhe as franjas da túnica - murmurava com uma grave doçura:
-Antes sofra um só homem, do que sofra um povo inteiro!
Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagara a testa, caí, trêmulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente distinguia no Pretório dous legionários, de cinturão desapertado, bebendo numa grande malga de ferro, que um negro ia enchendo com o odre suspenso aos ombros; adiante uma mulher bela e forte, sentada ao sol, com os filhos pendurados dos dous peitos nus; mais longe um pegureiro envolto em peles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixara na tenda, ardendo junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um sono ligeiro...
Quando despertei, a cadeira curul permanecia vazia - com a almofada de púrpura em frente, sobre o mármore, gasta, cavada pelos pés do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, num longo rumor de arraial, o velho átrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas de estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as lajes de uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e as mulheres que os seguiam, sórdidas e macilentas, atiravam de longe, com o braço fremente, maldições ao Rabi. Outras, no entanto, caminhando na ponta das sandálias, apregoavam baixo cousas ínfimas e ricas, metidas no seio entre as dobras dos saiões - grãos de aveia torrada, potes de ungüentos, corais, braceletes de filigrana de Sídron. Interroguei Topsius; e o meu douto amigo, limpando os óculos, explicou-me que eram decerto os mercadores contra quem Jesus, na véspera de Páscoa, erguendo um bastão, reclamara a estreita aplicação da lei que interdiz tráficos profanos no templo, fora dos pórticos de Salomão...
-Outra imprudência do Rabi, D. Raposo! - murmurou com ironia o fino historiador.
Entretanto, como caíra a sexta hora judaica e findara o trabalho, vinham entrando obreiros das tinturarias vizinhas, enodoados de escarlate ou azul; escribas das sinagogas, apertando debaixo dos braços os seus tabulários; jardineiros com a fouce a tiracolo, o ramo de murta no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da orelha... Tocadores fenícios a um canto afinavam as harpas, tiravam suspiros das flautas de barro; e diante de nós rondavam duas prostitutas gregas de Tiberíade, com perucas amarelas, mostrando a ponta da língua e sacudindo a roda da túnica, de onde voava um cheiro de mangerona. Os legionários, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma cercadura de ferro em torno de Jesus; e eu, agora, mal podia distinguir o Rabi através dessa multidão sussurrante, em que as consoantes ásperas de Moabe e do deserto se chocavam por sobre a moleza grave da fala caldaica...
Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão que oferecia num cabaz de esparto, acamados sobre folhas de parra, figos rachados de Betfagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe, debruçado no parapeito, o preço daquele mimo dos vergéis que os evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços, como se encontrasse o esperado do seu coração:
-Entre mim e ti, ó criatura da abundância que vens dalém do mar, que são estes poucos figos? Jeová manda que os irmãos troquem presentes e bênçãos! Estes frutos colhi-os no horto, um a um, à hora em que o dia nasce no Hébron; são suculentos e consoladores; poderiam ser postos na mesa de Hanão!... Mas que valem vãs palavras entre mim e ti, se os nossos peitos se entendem? Toma estes figos, os melhores da Síria, e que o Senhor cubra de bens aquela que te criou!
Eu sabia que esta oferta era uma cortesia consagrada, em compras e vendas, desde o tempo dos patriarcas. Cumpri também o cerimonial; declarei que Jeová, o muito forte, me ordenava que, com o dinheiro cunhado pelos príncipes, eu pagasse os frutos da terra... Então o hortelão abaixou a cabeça, cedeu ao mandamento divino; e pousando o cesto nas lajes, tomando um figo em cada uma das mãos negras e cheias de terra:
-Em verdade - exclamou - Jeová é o mais forte! Se ele o manda, eu devo pôr um preço a estes frutos da sua bondade, mais doces que os lábios da esposa! Justo é, pois, ó homem abundante, que por estes dous que me enchem as palmas, tão perfumados e frescos, tu me dês um bom traphik.
Oh Deus magnífico de Judá! O facundo hebreu reclamava por cada figo um tostão da moeda real da minha pátria! Bradei-lhe: -"Irra, ladrão!" Depois, guloso e tentado, ofereci-lhe uma dracma por todos os figos que coubessem no forro largo de um turbante. O homem levou as mãos ao seio da túnica, para a despedaçar na imensidade da sua humilhação. E ia invocar Jeová, Elias, todos os profetas seus patronos quando o sapiente Topsius, enojado, interveio secamente, mostrando-lhe uma miúda rodela de ferro que tinha por cunho um lírio aberto:
-Na verdade Jeová é grande! E tu és ruidoso e vazio como o odre cheio de vento! Pois pelos figos do cesto inteiro te dou eu este meah. E se não queres, conheço o caminho dos hortos tão bem como o do templo, e sei onde as águas doces de Enrogel banham os melhores pomares... Vai-te!
O homem logo, trepando ansiosamente até ao parapeito de mármore, atulhou de figos a ponta do albornoz que eu lhe estendera, carrancudo e digno. Depois, descobrindo os dentes brancos, murmurou risonhamente que nós éramos mais benéficos que o orvalho do Carmelo!
Saborosa e rara me parecia aquela merenda de figos de Betfagé no palácio de Herodes. Mas apenas nos acomodáramos com a fruta no regaço, reparei embaixo num velhito magro, que cravava em nós humildemente uns olhos enevoados, queixosos, cheios de cansaço. Compadecido ia arremessar-lhe figos e uma moeda de prata dos Ptolomeus - quando ele, mergulhando a mão trêmula nos farrapos que mal lhe velavam o peito cabeludo, estendeu-me, com um sorriso macerado, uma pedra que reluzia. Era uma placa oval de alabastro, tendo gravada uma imagem do templo. E enquanto Topsius doutamente a examinava, o velho foi tirando do seio outras pedras de mármore, de ônix, de jaspe, com representações do tabernáculo no deserto, os nomes das tribos entalhados, e figuras confusas em relevo, simulando as batalhas dos macabeus...
Depois ficou com os braços cruzados; e no seu nobre rosto, escavado pelos cuidados, luzia uma ansiedade, como se de nós somente esperasse misericórdia e descanso.
Topsius deduziu que ele era um desses guebros, adoradores do fogo e hábeis nas artes, que vão descalços até ao Egito, com fachos acesos, salpicar sobre a esfinge o sangue de um galo negro. Mas o velho negou, horrorizado - e tristemente murmurou a sua história. Era um pedreiro de Naim, que trabalhara no templo e nas construções que Antipas Herodes erguia em Bezeta. O açoute dos intendentes rasgara-lhe a carne; depois a doença levara-lhe a força, como a geada seca a macieira. E agora, sem trabalho, com os filhos de sua filha a alimentar, procurava pedras raras nos montes - e gravava nelas nomes santos, sítios santos, para as vender no templo aos fiéis. Em véspera de Páscoa, porém, viera um Rabi de Galiléia cheio de cólera que lhe arrancava o seu pão!...
-Aquele! - balbuciou sufocado, sacudindo a mão para o lado de Jesus.
Eu protestei. Como lhe poderia ter vindo a injustiça e a dor desse Rabi, de coração divino, que era o melhor amigo dos pobres?
-Então vendias no templo? - perguntou o terso historiador dos Herodes.
-Sim - suspirou o velho, - era lá, pelas festas, que eu ganhava o pão do longo ano! Nesses dias subia ao templo, ofertava a minha prece ao Senhor, e junto à porta de Susa, diante do pórtico do rei, estendia a minha esteira e dispunha as minhas pedras que brilhavam ao sol... Decerto, eu não tinha direito de pôr ali tenda; mas como poderia eu pagar ao templo o aluguer de um côvado de lajedo, para vender o trabalho das minhas mãos! Todos os que apregoam à sombra, debaixo do pórtico, sobre tabuleiros de cedro, são mercadores ricos que podem satisfazer a licença; alguns pagam um ciclo de ouro. Eu não podia, com crianças em casa sem pão... Por isso ficava a um canto, fora do pórtico, no pior sítio. Ali estava bem encolhido, bem calado; nem mesmo me queixava quando homens duros me empurravam, ou me davam com os bastões na cabeça. E ao pé de mim havia outros, pobres como eu: Eboim, de Jopé, que oferecia um óleo para fazer crescer os cabelos, e Oséias, de Ramá, que vendia flautas de barro... Os soldados da Torre Antônia que fazem a ronda, passavam por nós e desviavam os olhos. Até Menahem, que estava quase sempre de guarda pela Páscoa, nos dizia: - "está bem, ficai, contanto que não apregoeis alto". Porque todos sabiam que éramos pobres, não podíamos pagar o côvado de laje, e tínhamos nas nossas moradas crianças com fome... Na Páscoa e nos tabernáculos, vêm da terra distante peregrinos a Jerusalém; e todos me compravam uma imagem do templo para mostrar na sua aldeia, ou uma das pedras da lua que afugentam o demônio... As vezes, ao fim do dia, tinha feito três dracmas; enchia o saião de lentilha e descia ao meu casebre, alegre, cantando os louvores do Senhor!...
Eu, de enternecido, esquecera a merenda. E o velho desafogava o seu longo queixume:
-Mas eis que há dias esse Rabi de Galiléia aparece no templo, cheio de palavras de cólera, ergue o bastão e arremessa-se sobre nós, bradando que aquela "era a casa de seu pai, e que nós a poluíamos!..." E dispersou todas as minhas pedras, que nunca mais vi, que eram o meu pão! Quebrou nas lajes os vasos de óleo de Eboim, de Jopé, que nem gritava, espantado.
Acudiram os guardas do templo. Menahem acudiu também; até, indignado, disse ao Rabi: - "És bem duro com os pobres. Que autoridade tens tu?" E o Rabi falou "de seu pai", e reclamou contra nós a lei severa do templo. Menahem baixou a cabeça... E nós tivemos de fugir, apupados pelos mercadores ricos, que bem encruzados nos seus tapetes de Babilônia, e com o seu lajedo bem pago, batiam palmas ao Rabi... Ah! contra esses o Rabi nada podia dizer; eram ricos, tinham pago!... E agora aqui ando! Minha filha, viúva e doente, não pode trabalhar, embrulhada a um canto nos seus trapos; e os filhos de minha filha, pequeninos, têm fome, olham para mim, vêem- me tão triste e nem choram. E que fiz eu? Sempre fui humilde, cumpro o sabá, vou à sinagoga de Naim que é a minha, e as raras migalhas, que sobravam do meu pão, juntava-as para aqueles que nem migalhas têm na terra... Que mal fazia eu vendendo? Em que ofendia o Senhor? Sempre, antes de estender a esteira, beijava as lajes do templo; cada pedra era purificada pelas águas lustrais... Em verdade Jeová é grande, e sabe... Mas eu fui expulso pelo Rabi, somente porque sou pobre!
Calou-se - e as suas mãos magras, tatuadas de linhas mágicas, tremiam, limpando as
 longas lágrimas que o alagavama ati no peito, desesperado. E a minha angústia toda era por Jesus ignorar esta desgraça, que, na violência do seu espiritualismo, suas mãos misericordiosas tinham involuntariamente criado, como a chuva benéfica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flor isolada. Então para que não houvesse nada imperfeito na sua vida, nem dela ficasse uma queixa na terra - paguei a divida de Jesus (assim seu pai perdoe a minha!), atirando para o saião do velho moedas consideráveis, dracmas, crisos gregos de Filipe, áureos romanos de Augusto, até uma grossa peça da Cirenaica, que eu estimava por ter uma cabeça de Zeus Amon, que parecia a minha imagem. Topsius juntou a este tesouro um lepta de cobre - que tem em Judéia o valor de um grão de milho...
O velho pedreiro de Naim empalidecia, sufocado. Depois, com o dinheiro numa dobra do saião, bem apertado contra o peito, murmurou tímida e religiosamente, erguendo os olhos ainda molhados para as alturas:
-Pai, que estás nos céus, lembra-te da face deste homem, que me deu o pão de longos
dias!...
E soluçando, sumiu-se entre a turba - que, agora, de todo o átrio rumorosamente afluía, se
apinhava em torno aos mastros altos do velário. O escriba aparecera, mais vermelho e limpando os beiços. Ao lado do Rabi e dos guardas do templo, Sareias viera perfilar-se encostado ao seu báculo. Depois, entre um brilho de armas, surgiram as varas brancas dos lictores; e novamente Pôncio, pálido e pesado, na sua vasta toga, subiu os degraus de bronze, retomou o assento curul.
Um silêncio caiu, tão atento, que se ouviam as buzinas tocando ao longe na Torre Mariana. Sareias desenrolou o seu escuro pergaminho, estendeu-o sobre a mesa de pedra entre os tabulários; e eu vi as mãos gordas e morosas do escriba traçarem uma rubrica, estamparem um selo sob as linhas vermelhas que condenavam à morte Jesus de Galiléia, meu Senhor... Depois Pôncio Pilatos, com uma dignidade indolente, erguendo apenas de leve o braço nu, confirmou em nome de César a "sentença do Sanedrim, que julga em Jerusalém..."
Imediatamente Sareias atirou sobre o turbante uma ponta do manto, ficou orando, com as mãos abertas para o céu. E os fariseus triunfavam; junto a nós, dous muito velhos beijavam-se em silêncio nas barbas brancas; outros sacudiam no ar os bastões, ou lançavam sarcasticamente a aclamação forense dos romanos: "Bene et belle! Non potest melius!"
Mas de súbito o intérprete apareceu em cima de um escabelo, alteando sobre o peito o seu papagaio flamante. A turba emudecera, surpreendida. E o fenício, depois de ter consultado com o escriba, sorriu, gritou em caldaico alargando os braços cercados de manilhas de coral:
Escutai! Nesta vossa festa de Páscoa, o Pretor de Jerusalém costuma, desde que Valério Grato assim o determinou, e com assenso de César, perdoar a um criminoso... O Pretor propõe- vos o perdão deste... Escutai ainda! Vós tendes também o direito de escolher, vós mesmos, entre os condenados... O Pretor tem em seu poder, nos ergástulos de Herodes, outro sentenciado à morte...
Hesitou, e debruçado do escabelo, interrogava de novo o escriba, que remexia numa atarantação os papiros e os tabulários. Sareias, sacudindo a ponta do manto que escondia a sua oração, ficara assombrado para o Pretor, com as mãos abertas no ar. Mas já o intérprete bradava, erguendo mais a face risonha:
-Um dos condenados é Rabi Jeschoua, que aí tendes, e que se disse filho de Davi... É esse que propõe o Pretor. O outro, endurecido no mal, foi preso por ter morto um legionário traiçoeiramente, numa rixa, ao pé do Xisto. O seu nome é Barrabás... Escolhei!
Um grito brusco e roufenho partiu dentre os fariseus:
-Barrabás!
 Aqui e além, pelo átrio, confusamente ressoou o nome de Barrabás. E um escravo do templo, de saião amarelo, pulando até aos degraus do sólio, rompeu a berrar, em face de Pôncio, com palmadas furiosas nas coxas:
-Barrabás! Ouve bem! Barrabás! O povo só quer Barrabás!
A haste de um legionário fê-lo rolar nas lajes. Mas já toda a multidão, mais leve e fácil de inflamar do que a palha na meda, clamava por Barrabás; uns com furor, batendo as sandálias e os cajados ferrados como para aluir o Pretório; outros de longe, encruzados ao sol, indolentes e erguendo um dedo. Os vendilhões do templo, rancorosos, sacudindo as balanças de ferro e repicando sinetas, berravam, por entre maldições ao Rabi: "Barrabás é o melhor! E até as prostitutas de Tiberíade, pintadas de vermelhão como ídolos, feriam o ar de gritos silvantes:
-Barrabás! Barrabás!
Raros ali conheciam Barrabás; muitos, decerto, não odiavam o Rabi - mas todos engrossavam o tumulto prontamente, sentindo, nessa reclamação do preso que atacara legionários, um ultraje ao Pretor romano, togado e augusto no seu tribunal. Pôncio, no entanto, indiferente, traçava letras numa vasta lauda de pergaminho pousada sobre os joelhos. E em torno os clamores disciplinados retumbavam em cadência, como malhos numa eira:
-Barrabás! Barrabás! Barrabás!
Então Jesus, vagarosamente, voltou-se para aquele mundo duro e revoltoso que o condenava; e nos seus refulgentes olhos umedecidos, no fugitivo tremor dos seus lábios, só transpareceu nesse instante uma mágoa misericordiosa pela opaca inconsciência dos homens, que assim empurravam para a morte o melhor amigo dos homens... Com os pulsos presos, limpou uma gota de suor; depois ficou diante do Pretor, tão imperturbado e quedo, como se já não pertencesse a terra.
O escriba, batendo com uma régua de ferro na pedra da mesa, três vezes bradara o nome de César. O tumulto ardente esmorecia. Pôncio ergueu-se; e grave, sem trair impaciência ou cólera, lançou, sacudindo a mão, o mandado final:
-Ide e crucificai-o!
Desceu o estrado; a turba batia ferozmente as palmas.
Oito soldados da coorte siríaca apareceram, apetrechados em marcha, com os escudos revestidos de lona, as ferramentas entrouxadas, e o largo cantil da posca. Sareias, vogal do Sanedrim, tocando no ombro de Jesus, entregou-o ao decurião; um soldado desapertou-lhe as cordas, outro tirou-lhe o albornoz de lá; e eu vi o doce Rabi de Galiléia dar o seu primeiro passo para a morte.
Apressados, enrolando o cigarro, deixamos logo o palácio de Herodes, por uma passagem que o douto Topsius conhecia, lôbrega e úmida, com fendas gradeadas de onde vinha um canto triste de escravos encarcerados... Saímos a um terreiro, abrigado pelo muro de um jardim todo plantado de ciprestes. Dous dromedários deitados no pó ruminavam, junto de um montão de ervas cortadas. E o alto historiador tomava já o caminho do templo, quando, sob as ruínas de um arco que a hera cobria, vimos povo apinhado em torno de um essênio, cujas mangas de alvo linho batiam o ar como as asas de um pássaro irritado.
Era Gade, rouco de indignação, clamando contra um homem esgrouviado, de barba rala e ruiva, com grossas argolas de ouro nas orelhas, que tremia e balbuciava:
-Não fui eu, não fui eu...
-Foste tu! - bradava o essênio, estampando a sandália na terra. - Conheço-te bem. Tua mãe é cardadeira em Cafarnaum, e maldita seja pelo leite que te deu!...
O homem recuava, baixando a cabeça, como um animal encurralado à força:
-Não fui eu! Eu sou Refraim, falho de Eliézer, de Ramá! Sempre todos me conheceram são e forte como a palmeira nova!
-Torto e inútil eras tu como um sarmento velho de vide, cão e filho de um cão! - gritou Gade. - Vi-te bem... Foi em Cafarnaum, na viela onde está a fonte, ao pé da sinagoga, que tu apareceste a Jesus, Rabi de Nazaré! Beijavas-lhe as sandálias, dizias: "Rabi, cura-me! Rabi, vê esta mão que não pode trabalhar!" E mostravas-lhe a mão, essa, a direita, seca, mirrada e negra, como o ramo que definhou sobre o tronco! Era no sabá; estavam os três chefes da sinagoga, e Elzéar, e Simeão. E todos olhavam Jesus para ver se ele ousaria curar no dia do Senhor... Tu choravas, de rojo no chão. E por acaso o Rabi repeliu-te? Mandou-te procurar a raiz do ba…Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me pareceu que uma claridade trêmula, como a de uma tocha fumegante, penetrava na tenda, e através dela uma voz me chamava, lamentosa e dolente:
-Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!
Arrojei a manta, assustado; e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela, bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso:
-A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer
devemos chegar às portas de Jerusalém!Arredando os cabelos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado doutor:
-Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforjes, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus óculos de ouro que resplandeciam com uma desusada, irresistível intelectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em pregas graves e puras de toga latina; e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com lábios que pareciam clássicos e de mármore:
-D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de 15 do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram da Babilônia, nem haverá, até que Tito venha pôr o último cerco ao templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Páscoa à casa de Gamaliel, que é um amigo de Hilel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanedrim. Foi ele que disse: "para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma autoridade". Portanto, a pé, D. Raposo!
Assim murmurou o meu amigo, ereto e lento. E eu, submissamente, como perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silêncio as minhas grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, ele empurrou-me com impaciência para fora da tenda, sem mesmo me deixar recolher o relógio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso, eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e vermelha...
Devia ser meia-noite. Dous cães ladravam ao longe, surdamente, como entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de vergel e à flor da laranjeira. O céu de Israel faiscava com desacostumado esplendor; e em cima do Monte Nebo, um belo astro mais branco, de uma refulgência divina, olhava para mim, palpitando ansiosamente, como se procurasse, cativo na sua mudez, dizer um segredo à minha alma!
As éguas esperavam, imóveis sob as longas crinas. Montei. E então, enquanto Topsius arranjava laboriosamente os loros, avistei, para os lados da fonte do Eliseu, uma forma maravilhosa que me arrepiou de terror transcendente.
Era, ao clarão diamantino das estrelas da Síria, como a branca muralha de uma cidade nova! Frontões de templos alvejavam palidamente, entre a espessura de bosques sagrados; para as colinas distantes, fugiam esbatidos os arcos ligeiros de um aqueduto. Uma chama fumegava no alto de uma torre; mais baixo, movendo-se, faiscavam pontas de lanças; um som longo de buzina morria na sombra... E abrigada junto aos bastiões, uma aldeia dormia entre palmeiras.
Topsius, na sela, pronto a marchar, embrulhara a mão nas crinas da égua.
-Aquilo, branco, além? - murmurei, sufocado. Ele disse simplesmente:
-Jericó.
Rompeu, galopando. Não sei quanto tempo segui, emudecido, o nobre historiador dos Herodes; era por uma estrada direita, feita de lajes negras de basalto. Ah! que diferente do áspero caminho por onde tínhamos descido a Canaã, faiscante e cor de cal, através de colinas onde o tojo escasso semelhava, na irradiação da luz, um bolor de velhice e de abandono! E tudo em redor me parecia diferente também: a forma das rochas, o cheiro da terra quente, até a palpitação das estrelas... Que mudança se fizera em mim, que mudança se fizera no Universo? Por vezes uma faísca dura saltava das ferraduras das éguas. E sem descontinuar, Topsius galopava, agarrado às crinas, com as duas bandas da capa branca batendo como os dous panos de uma bandeira...
 Mas subitamente parou. Era junto de uma casa quadrada, entre árvores, toda apagada e muda, tendo no topo uma haste sobre que pousava estranhamente, como recortada numa lâmina de ferro, a figura de uma cegonha. À entrada esmorecia uma fogueira; remexi as achas; e à curta chama que ressaltou, compreendi que era uma antiga estalagem à beira de uma antiga estrada.
Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e eriçada de pregos, brilhava em negro, numa lápide branca, a tabuleta latina - Ad Gruem Majorem; e ao lado, enchendo parte da fachada, desenrolava-se uma inscrição rudemente entalhada na pedra, que eu decifrei a custo, e em que Apolo prometia a saúde ao hóspede, e Septimano, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho reparador, vinho forte da Campânia, frescos palhetes de Engada, e "todas as comodidades à maneira de Roma".
Murmurei, desconfiado:
-À maneira de Roma!
Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens, dessemelhantes de mim, no falar e no traje, bebiam ali, sobre a proteção de outros deuses, o vinho em ânforas do tempo de Horácio?...
Mas de novo Topsius marchou, esguio e vago, na noite. Agora findara a estrada de basalto sonoro; e subíamos a passo um brusco caminho, cavado entre rochas, onde grossos pedregulhos ressoavam, rolavam sobre as patas das éguas, como no leito de uma torrente que um lento agosto secou. O erudito doutor, sacudido na sela, praguejava roucamente contra o Sanedrim, contra a hirta lei judaica, oposta indobravelmente a toda a obra culta que quer fazer o procônsul... Sempre o fariseu via com rancor o aqueduto romano que lhe trazia a água, a estrada romana que o levava às cidades, a romana que lhe curava as pústulas...
-Maldito seja o fariseu!
Sonolento, rememorando velhas imprecações do Evangelho, eu rosnava, encolhido no meu albornoz:
-Fariseu, sepulcro caiado... Maldito seja!
Era a hora calada em que os lobos dos montes vão beber. Cerrei os olhos; as estrelas desmaiavam.
Breves faz o Senhor as noites macias do mês de Nizam, quando se come em Jerusalém o anho branco de Páscoa; e bem cedo o céu se vestiu de alvo do lado do país de Moabe.
Despertei. Já os gados balavam nos cerros. O ar fresco cheirava a rosmaninho.
E então avistei, errando por cima dos penedos sobranceiros ao caminho, um homem estranho, bravio, coberto com uma pele de carneiro, que me recordou Elias e todas as cóleras da Escritura; o peito, as pernas pareciam de granito vermelho; por entre a grenha e a barba, rudes, emaranhadas, fazendo-lhe como uma juba feroz, os olhos refulgiam-lhe desvairadamente...
Descobriu-nos; e logo, estendendo os braços como quem arremessa pedras, despediu sobre nós todas as maldições do Senhor! Chamou-nos "pagãos", chamou-nos "cães"; gritava: "malditas sejam as vossas mães, secos sejam os peitos que vos criaram"! Cruéis e cheios de presságios caíam os seus brados do alto das rochas; e, retardado pelos passos lentos da égua, Topsius encolhia-se na capa, como sob uma saraiva inclemente. Até que me enfureci; voltei-me na anca da cavalgadura, chamei-lhe bêbedo, atirei-lhe obscenidades; e via no entanto, sob a chama selvagem dos seus olhos, a boca clamorosa e negra torcer-se-lhe, babar-se de furor devoto...
Mas, desembocando da ravina, encontramos, larga e lajeada, a estrada romana que vai a Siquém; e trotando por ela, sentimos o alívio de penetrar enfim numa região culta, piedosa, humana e legal. A água abundava; sobre as colinas erguiam-se fortalezas novas; pedras sagradas delimitavam os campos. Nas eiras brancas, os bois enfeitados de anêmonas pisavam o trigo da colheita de Páscoa; e em vergéis, onde a figueira já tinha enfolhado, o servo na sua torre caiada, cantando com uma vara na mão, afugentava os pombos bravos. Por vezes, avistávamos um homem, de pé, junto da sua vinha, ou à beira dos canais de rega, direito, com a ponta do manto atirada por cima da cabeça, e os olhos baixos, dizendo a santa oração do Esquema. Um oleiro, que espicaçava o seu burro, carregado de cântaros de barro amarelo, gritou-nos: "Benditas sejam as vossas mães! Boa vos seja a Páscoa!" E um leproso, que descansava à sombra, nos olivedos, perguntou-nos, gemendo e mostrando as chagas, qual era em Jerusalém o Rabi que curava, e aonde se apanhava a raiz do baraz.
Já nos aproximávamos de Betânia. Para dar de beber às éguas, paramos numa linda fonte que um cedro assombreava. E o douto Topsius, arranjando um loro, admirava-se de não termos encontrado a caravana, que vem de Galiléia celebrar a Páscoa a Jerusalém - quando soou, adiante, na estrada, um rumor lento de armas em marcha... E eu vi, assombrado, aparecerem soldados romanos, desses que tantas vezes amaldiçoara em estampas da Paixão!
Barbudos, tostados pelo sol da Síria, marchavam solidamente, em cadência, com um passo bovino, fazendo ressoar sobre as lajes as sandálias ferradas; todos traziam às costas os escudos envoltos em sacos de lona; e cada um erguia ao ombro uma alta forquilha, de onde pendiam trouxas encordeladas, pratos de bronze, ferramentas e cachos de tâmaras. Algumas filas, descobertas, seguravam o capacete como um balde; outras, nas mãos cabeludas, balançavam um dardo curto. O decurião, gordo e louro, seguido de uma gazela familiar, enfeitada com corais, dormitava, ao passo miúdo da égua, embrulhado num manto escarlate. E atrás, ao lado das mulas carregadas de sacos de trigo e molhos de lenha, os arrieiros cantavam ao som de uma flauta de barro, tocada por um negro quase nu, que linha no peito, em traços vermelhos, o número da legião.
Eu recuara para o escuro do cedro. Mas Topsius, logo, como um germano servil, desmontara, ajoelhando quase no pó, ante as armas de Roma; e não se conteve; berrou, agitando os braços e a capa:
-Longa vida a Caio Tibério, três vezes cônsul, ilírico, panônico, germânico, imperador, pacificador e augusto!...
Alguns legionários riram, crassamente. E passaram, cerrados, com um rumor de ferro - enquanto um pegureiro, ao longe, arrebanhando as cabras aos brados, fugia para o cimo dos cerros.
De novo galopamos. A estrada de basalto findou; e penetramos entre arvoredos, num aroma de pomares, através de abundância e frescura.
Oh, que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes, em torno à Cidade Santa, dessecadas por um vento de abstração, e brancas, da cor das ossadas...
Agora tudo era verde, regado, murmuroso, e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida, com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém; as folhas dos ramos de abril desabrochavam num azul, moço, tenro, cheio de esperança como elas. E a cada instante se me iam os olhos longamente nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres, e mais esplêndidos que o Rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!
Enlevado e cantarolando, eu trotava ao comprido de uma sebe toda entrelaçada de rosas. Mas Topsius deteve-me; mostrou-me no alto de um outeiro, sobre um fundo sombrio de ciprestes e cedros, uma casa abrindo, para o lado do Oriente e da luz, o seu pórtico branco. Pertencia, disse ele, a um romano, parente de Valério Grato, antigo Legado Imperial da Síria; e tudo ali parecia penetrado de paz amável e de graça latina. Um tapete viçoso, de relva bem lisa, estendia-se em declive até uma álea de alfazema, tendo ao meio, sobre o verde, desenhadas com linhas de flores escarlates, as iniciais de Valério Grato; em redor, entre canteiros de rosas, de açucenas, orladas
de mirto, resplandeciam nobres vasos de mármore coríntico, onde se enrolavam folhas de acanto; um servo, de capuz cinzento, talhava um teixo em forma de urna, ao lado de um buxo alto já talhado sabiamente em feitio da lira; aves domésticas picavam o chão, coberto de areia escarlate, numa rua de plátanos onde os braços de hera faziam, de tronco a tronco, festões como os que ornam um templo; a rama dos loureiros velava de sombras a nudez das estátuas. E sob um caramanchão de vinha, ao rumor da água lenta cantando numa bacia de bronze, um velho de toga, sereno, risonho, ditoso, lia junto a uma imagem de Esculápio um longo rolo de papiro, enquanto uma rapariga, com uma flecha de ouro nas tranças, toda vestida de linho alvo, fazia uma grinalda com as flores que lhe enchiam o regaço... Ao passo dos nossos cavalos, ela ergueu os olhos claros. Topsius gritou: Oh, salve, pulquerríma! Eu gritei - Viva la gracia! Os melros cantavam nas romãzeiras em flor.
Mais adiante o facundo Topsius deteve-me ainda, apontando-me outra vivenda de campo, escura e severa entre ciprestes; e disse-me baixo que era de Osânias, um rico saduceu de Jerusalém, da família pontifical de Boetos, e membro do Sanedrim. Nenhum ornato pagão lhe profanava os muros. Quadrada, fechada, hirta, ela reproduzia a austeridade da lei. Mas os largos celeiros, cobertos de colmo, os lagares, os vinhedos, diziam as riquezas feitas de duros tributos; no pátio dez escravos não bastavam a guardar os sacos de trigo, odres, carneiros marcados de vermelho, recolhidos em pagamento do dízimo nesse dia de Páscoa. Junto à estrada, com uma piedade ostentosa, caiada de fresco, reluzia, ao sol, entre roseiras, a sepultura doméstica.
Assim caminhando chegamos aos palmares onde se aninha Betfagé. E por um atalho virente que Topsius conhecia, começamos a subir o Monte das Oliveiras, até o lagar da Moabita - que é uma paragem de caravanas nessa infinita, vetusta via real que vem do Egito, seguindo até Damasco, a bem regada.
E foi como um deslumbramento, ao encontrarmos sobre todo o monte, por entre os olivedos da encosta até ao Cédron, por entre os pomares do vale até Siloé, em meio dos túmulos novos dos sacrificadores, e mesmo para os lados onde se empoeira a estrada de Hébron, o despertar rumoroso de todo um povo acampado! Tendas negras do deserto, feitas de peles de carneiro e rodeadas de pedras; barracas de lona, da gente da Iduméia, alvejando ao sol entre as verduras; cabanas armadas com ramos, onde se abrigam os pastores de Ascalon; toldos de tapetes que os peregrinos de Neftali suspendem em varas de cedro; era toda a Judéia, às portas de Jerusalém, a celebrar a Páscoa sagrada! E havia ainda, em volta ao casal onde velava um posto de legionários, os mercadores gregos da Decápola, tecelões fenícios de Tiberíade, e a gente pagã que, através de Samaria, vem dos lados de Cesaréia e do mar.
Fomos marchando, lentos e cautelosos. A sombra das oliveiras os camelos descarregados ruminavam placidamente; e as éguas da Pérea, com as patas entravadas, pendiam a cabeça sob a espessura das longas crinas. Junto às tendas, cujos panos meio levantados nos deixavam entrever brilhos de armas penduradas, ou o esmalte de um grande prato, raparigas, com os braços reluzindo de braceletes, pisavam entre duas pedras o grão do centeio; outras mungiam as cabras; por toda a parte se acendiam fogos claros; e com os filhos pela mão, o cântaro esguio ao ombro, uma fila de mulheres descia cantando para a fonte de Siloé.
As patas dos nossos cavalos prendiam-se nas cordas retesadas das barracas dos idumeus. Depois estávamos diante de tapetes alastrados, onde um mercador de Cesaréia, com um manto a cartaginesa, vistoso e bordado de flores, expunha peças de linho do Egito, estendia sedas de Cós, fazia reluzir armas marchetadas; ou com um frasco na palma de cada mão, celebrava as perfeições do nardo da Assíria e dos óleos doces da Pártia... Os homens em redor, arredando-se, demoravam em nós os seus olhos lânguidos e altivos; por vezes murmuravam uma injúria surda; ou por causa dos óculos do douto Topsius, um riso de escárnio mostrava dentes agudos de fera, entre rudes barbas negras.
Sobre as árvores, encostados aos muros, filas de mendigos ganiam, mostrando o caco com que rapavam as chagas. Diante de uma cabana feita de ramos de loureiro, um velho obeso, rubro como um sileno, apregoava o vinho fresco de Siquém, as favas novas de abril. Os homens fuscos do deserto apinhavam-se em torno dos gigos de fruta. Um pastor de Áscalon, em andas, no meio de um rebanho de cordeiros brancos, tocava buzina, chamando os devotos a comprar o anho puro da Páscoa. E por entre a multidão onde constantemente se erguiam paus, em lixas bruscas, soldados romanos rondavam aos pares, com um ramo de oliveira no capacete, benignos e paternais.
Assim chegamos junto de dous altos, frondosos cedros, tão cobertos de pombas brancas voando, que eram como duas grandes macieiras, na primavera, que um vento estivesse destoucando das flores. Subitamente, Topsius parara, abria os braços; eu também; e com o coração suspenso ali ficamos imóveis, deslumbrados, vendo lá embaixo, na luz, resplandecer Jerusalém.
O sol banhava-a, suntuosamente! Uma severa altiva muralha, guarnecida de torres novas, com portas onde as cantarias se entremeavam de lavores de ouro, erguia-se sobre a ribanceira escarpada do Cédron, já seco pelos calores de Nizam, e ia correndo, cingindo Sião, para o lado de Hínon e até aos cerros de Garebe. E, dentro, em face aos cedros que nos assombreavam, o templo, sobre os seus alicerces eternos, parecia dominar toda a Judéia, soberbo em esplendor, murado de granitos polidos, armado de bastiões de mármore, como a refulgente cidadela de um deus!...
Debruçado sobre as crinas, o sapiente Topsius apontava-me o adro primordial, chamado o Pátio dos Gentílicos, vasto bastante para receber todas as multidões de Israel, todas as da terra pagã; o chão liso rebrilhava como a água límpida de uma piscina; e as colunas de mármore de Paros que o ladeavam, formando os pórticos de Salomão, profundos e cheios de frescura, eram mais bastas que os troncos nos cerrados palmares de Jericó. Em meio desta área, cheia de ar e de luz, elevava-se, em escadarias lustrosas como se fossem de alabastro, com portas chapeadas de prata, arcarias, torreões de onde voavam pombas, um nobre terraço só acessível aos fiéis da lei, ao povo eleito de Deus, o orgulhoso Adro de Israel. Daí erguia-se ainda, com outras claras escadarias, outro branco terraço, o Átrio dos Sacerdotes; no brilho difuso que o enchia, negrejava um enorme altar de pedras brutas, enristando a cada ângulo um sombrio como de bronze; aos lados dous longos fumos direitos, subiam devagar, mergulhavam no azul com a serenidade de uma prece perenal. E, ao fundo, mais alto, ofuscante, com os seus recamos de ouro sobre a alvura dos mármores, níveo e fulvo, como feito de ouro puro e neve pura, refulgia maravilhosamente, lançando o seu clarão aos montes em redor, o Híeron, o santuário dos santuários, a morada de Jeová; sobre a porta pendia o véu místico, tecido em Babilônia, cor do fogo e cor dos mares; pelas paredes trepava a folhagem de uma vinha de esmeralda, com cachos de outras pedrarias; da cúpula irradiavam longas lanças de ouro, que o aureolavam de raios como um sol; e assim, resplandecente, triunfante, augusto, precioso, ele elevava-se para aquele céu de festa pascal, ofertando-se todo, como o dom mais belo, o dom mais raro da terra!
Mas ao lado do templo, mais alto que ele, dominando-o com a severidade de um amo orgulhoso, Topsius mostrou-me a Torre Antônia, negra, maciça, impenetrável, cidadela de forças romanas... Na plataforma, entre as ameias, movia-se gente armada; sobre um bastião, uma figura forte, envolta num manto vermelho de centurião, estendia o braço; e toques lentos de buzina pareciam falar, dar ordens, para outras torres que ao longe se azulavam no ar límpido, algemando a Cidade Santa. César pareceu-me mais forte que Jeová!
E mostrou-me ainda, para além da Antônia, o velho burgo de Davi. Era um tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como um rebanho de cabras brancas para um vale ainda em sombra, onde uma praça monumental se abria entre arcarias; depois trepava, fendido em ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a colina fronteira de Acra, rica, com palácios, e cisternas redondas que luziam à luz semelhantes a broquéis de aço. Mais longe ainda, para além de velhos muros derrocadas, era o bairro novo de Bezeta, em construção; o circo de Herodes arredondava aí as suas arcarias; e os jardins de Antipas estiravam-se por um último outeiro, até junto ao túmulo de Helena, assoalhados, frescos, regados pelas águas doces de Enrogel.
-Ah Topsius, que cidade! - murmurei maravilhado.
-Rabi Eliézer diz que não viu jamais cidade bela, quem não viu Jerusalém!
Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo para os lados da verde estrada que sobe de Betânia; e um velho que puxava à pressa a arreata do seu burro, carregado de molhos de palmas, gritou-nos que se avistara e vinha chegando a caravana da Galiléia! Então, curiosos, trotamos até um cômoro, junto a uma sebe de cactos, onde já se apinhavam mulheres com os filhos ao colo, sacudindo véus claros, soltando palavras de bênção e de boa acolhida; e logo vimos, numa poeirada lenta que o sol dourava, a densa fila dos peregrinos que são os derradeiros a chegar a Jerusalém, vindos de longe, da alta Galiléia, desde Gescala e dos montes. Um rumor de cânticos enchia a estrada festiva; em torno a um estandarte verde agitavam-se palmas e ramos floridos de amendoeira; e os grandes fardos, carregando o dorso dos camelos, balanceavam em cadência por entre os turbantes brancos cerrados e movendo-se em marcha.
Seis cavaleiros da guarda babilônica de Antipas Herodes, tetrarca de Galiléia, escoltavam a caravana desde Tiberíade; traziam mitras de felpo, as longas barbas separadas em tranças, as pernas ligadas em tiras de couro amarelo; e caracolavam à frente, fazendo estalar numa das mãos açoites de corda, com a outra atirando ao ar e aparando alfanjes que faiscavam. Logo atrás era uma colegiada de levitas, em coro, a passos largos, apoiados a bordões enfeitados de flores, com os rolos da lei apertados sobre o peito, salmodiando rijo os louvores de Sião. E em tomo moços robustos, com as faces infladas e rubras, sopravam para o céu furiosamente em trompas recurvas de bronze.
Mas, dentre a gente apertada à beira da estrada, rompeu uma aclamação. Era um velho, sem turbante, de cabelos soltos, recuando e dançando freneticamente; das mãos cabeludas que ele agitava no ar saía um repique de castanholas; ora arremessava uma perna, ora outra; e toda a sua face barbuda de rei Davi ardia com um fulgor inspirado. Atrás dele, raparigas, pulando compassadamente sobre a ponta ligeira das sandálias, feriam com dolência harpas leves; outras, rodando sobre si, batiam do alto os tamborins - e as suas manilhas de prata brilhavam no pó que os seus pés levantavam, sob a roda das túnicas enfunadas... Então, arrebatada, a turba entoou o velho canto das jornadas rituais e os salmos de peregrinação.
Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalém! Tu és perfeita! Quem te ama conhece a abundância!
E eu bradava também, transportado:
-Tu és o palácio do Senhor, ó Jerusalém, e o repouso do meu coração!
Lenta e rumorosa a caravana passava. As mulheres dos levitas, em burros, veladas e rebuçadas, semelhavam grandes sacos moles; as mais pobres, a pé, traziam nas pontas dobradas do manto frutas e o grão da aveia. Os previdentes, já com a sua oferenda ao Senhor, arrastavam preso do cinto um cordeiro branco; os mais fortes seguravam às costas, presos pelos braços, os doentes, cujos olhos dilatados, nas faces maceradas, procuravam ansiosamente as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se cura.
Entre os peregrinos e a alegre multidão que os acolhia, as bênçãos cruzavam-se, ruidosas e ardentes; alguns perguntavam pelos vizinhos, pelas searas ou pelos avós que tinham ficado na aldeia à sombra da sua vinha; e ouvindo que lhe fora roubada a pedra do seu moinho, um velho, ao meu lado, com as barbas de um Abraão, arremessou-se a terra a arrepelar-se e a esfarrapar a túnica. Mas já, fechando a marcha, passavam as mulas com guizos carregadas de lenha e de odres de azeite; e atrás uma turba de fanáticos que nos arredores, em Betfagé e em Refraim, se tinham juntado à caravana, apareceu, atirando para os lados cabaças de vinho já vazias, brandindo facas, pedindo a morte dos samaritanos e ameaçando a gente pagã...
Então seguindo Topsius, trotei de novo através do monte, para junto dos cedros cobertos do vôo alvo das pombas; e nesse instante também os peregrinos, emergindo da estrada, avistavam enfim Jerusalém, que resplandecia lá embaixo formosa, toda branca na luz... Então foi um santo, tumultuoso, inflamado delírio! Prostrada, a turba batia as faces na terra dura; um clamor de orações subia ao céu puro, por entre o estridor das tubas; as mulheres erguiam os filhos nos braços, ofertando-os arrebatadamente ao Senhor! Alguns permaneciam imóveis, como assombrados, ante os esplendores de Sião; e quentes lágrimas de fé, de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. Os velhos mostravam com o dedo os terraços do templo, as ruas antigas, os sacros lugares da história de Israel: "ali é a porta de Efraim, acolá era a torre das Fornalhas; aquelas pedras brancas, além, são do túmulo de Raquel..." E os que escutavam em redor, apinhados, batiam as mãos, gritavam "Bendita sejas, Sião!" Outros, estonteados, com o cinto desapertado, corriam tropeçando nas cordas das tendas, nos gigos de fruta, a trocar a moeda romana, a comprar o anho da oferta. Por vezes, dentre as árvores, um canto subia, claro, fino, cândido, e que ficava tremendo no ar; a terra um momento parecia escutar, como o céu; serenamente, Sião rebrilhava; do templo os dous fumos lentos ascendiam, com uma continuidade de prece eterna... Depois o canto morria; de novo as bênçãos rompiam, clamorosas; a alma inteira de Judá abismava-se no resplendor do santuário; e braços magros erguiam-se freneticamente para estreitar Jeová.
De repente Topsius colheu-me as rédeas da égua; e quase ao meu lado um homem, com uma túnica cor de açafrão, surgindo esgazeado detrás de uma oliveira e brandindo uma espada, saltou para cima de uma pedra e gritou desesperadamente:
-Homens de Galiléia, acudi, e vós, homens de Neftali!
Peregrinos correram, erguendo os bastões; e as mulheres saiam das tendas, pálidas, apertando os filhos ao colo. O homem fazia tremer a espada no ar; todo ele tremia também; e outra vez bradou, desoladamente:
-Homens de Galiléia, Rabi Jeschoua foi preso! Rabi Jeschoua foi levado a casa de Hanão, homens de Neftali!
-D. Raposo - disse Topsius então, com os olhos faiscantes - o Homem foi preso, e compareceu já diante do Sanedrim!... Depressa, depressa, amigo, a Jerusalém, à casa de Gamaliel!
E à hora em que no templo se fazia a oferta do perfume, quando o sol já ia alto sobre o Hébron, Topsius e eu penetramos, pela porta do Pescado, a passo, numa rua da antiga Jerusalém. Era íngreme, tortuosa, poeirenta, com casas baixas e pobres de tijolo; sobre as portas, fechadas por uma correia, sobre as janelas esguias como fendas gradeadas, havia verduras e palmas entretecidas, fazendo ornatos de páscoa. Nos terraços, rodeados de balaustradas, mulheres diligentes sacudiam os tapetes, joeiravam o trigo; outras, chalrando, penduravam lâmpadas de barro em festões para as iluminações rituais.
Ao nosso lado ia marchando fatigado um harpista egípcio, com uma pluma escarlate presa na peruca frisada, um pano branco envolvendo-lhe a cinta fina, os braços pesados de braceletes, e a harpa às costas, recurva como uma foice e lavrada em flores de lótus. Topsius perguntou-lhe se ele vinha de Alexandria. E ainda se cantavam, nas tabernas do Eunotos, as cantigas da batalha de Ácio? O homem, logo mostrando num riso triste os dentes longos, pousou a harpa, ia ferir os bordões... Picamos as éguas; e assustamos duas mulheres cobertas de véus amarelos, com casais de pombas enroladas na ponta do manto, que se apressavam decerto para o templo, airosas, ligeiras, fazendo retinir os guizos das suas sandálias.
Aqui e além um lume caseiro ardia no meio da rua, com trempes, caçarolas, de onde saía um cheiro acre de alho; crianças de ventre enorme que rolavam nuas pela poeira, roendo vorazmente cascas de abóbora crua, ficavam pasmadas para nós, com grandes olhos ramelosos onde fervilhavam moscas. Diante de uma forja, um bando hirsuto de pastores de Moabe esperavam, enquanto dentro, martelando num nimbo de chispas, os ferreiros lhes batiam ferros novos para as lanças. Um negro, com um pente em forma de sol toucando-lhe a carapinha, apregoava, num grito lúgubre, bolos de centeio de feitios obscenos.
Calados, atravessamos uma praça, clara e lajeada, que andava em obras. Ao fundo uma casa de banhos, moderna, uma terma romana, estendia com ar de luxo e de ociosidade a longa arcada do seu pórtico de granito; no pátio interior, por entre os plátanos que o refrescavam, cujos ramos suspendiam velários de linho alvo, corriam escravos nus, reluzentes de suor, levando vasos de essências e braçadas de flores; das aberturas gradeadas, ao rés das lajes, saía um bafo mole de estufa que cheirava a rosa. E sob uma das colunas vestibulares, onde uma lápide de ônix indicava a entrada das mulheres, estava de pé, imóvel, ofertando-se aos votos como um ídolo, uma criatura maravilhosa; sobre a sua face redonda, de uma brancura de lua cheia, com lábios grossos, rubros de sangue, erguia-se a mitra amarela das prostitutas da Babilônia; dos ombros fortes, por cima da túmida rijeza dos seios direitos, caía, em pregas duras de brocado, uma dalmática negra radiantemente recamada de ramagens cor de ouro. Na mão tinha uma flor de cacto; e as suas pálpebras pesadas, as pestanas densas, abriam-se e fechavam-se em ritmo, ao mover onduloso de um leque que uma escrava preta, agachada a seus pés balançava cantando.
Quando os seus olhos se cerravam, tudo em redor parecia escurecer; e quando se levantava a negra cortina das suas pestanas, vinha dessa larga pupila um clarão, uma influência, como a do sol do meio-dia no deserto, que abrasa e vagamente entristece. E assim se ofertava, magnífica, com os seus grandes membros de mármore, a sua mitra fulva, lembrando os ritos de Astarté e de Adônis, lasciva e pontifical...
Toquei no braço de Topsius, murmurei, pálido:
-Caramba! Vou aos banhos!
Seco, empertigado na sua capa branca, ele volveu asperamente:
-Espera-nos Gamaliel, filho de e Simeão. E a sabedoria dos rabis lá disse que a mulher é o caminho da iniquidade!
E bruscamente penetrou numa lobrega viela, toda abobadada; as patas das éguas, ferindo as lajes, acirraram contra nós uivos de cães, maldições de mendigos, amontoados juntos no escuro. Depois saltamos por uma brecha da antiga muralha de Ezequiá, passamos uma velha cisterna seca onde os lagartos dormiam; e trotando pela poeira solta de uma longa rua, entre muros caiados que reluziam e portas besuntadas de alcatrão, paramos no alto diante de uma entrada mais nobre, em arco, com uma grande baixa de arame que a defendia dos escorpiões. Era a casa de Gamaliel.
No meio de um vasto pátio ladrilhado, escaldando ao sol, um limoeiro toldava a água clara de um tanque. Em volta, sobre pilastras de mármore verde, corria uma varanda, silenciosa e fresca, de onde pendia, aqui e além, um tapete da Assíria com flores bordadas. Um puro azul brilhava no alto; - e ao canto, sob um alpendre, um negro, atrelado por cordas como uma alimária a uma barra de pau, calçado de ferraduras, vincado de cicatrizes, ia fazendo gemer e girar, lentamente, a grande mó de pedra do moinho doméstico.
No escuro de uma porta apareceu um homem obeso, sem barba, quase tão amarelo como a túnica lassa que o envolvia todo; tinha na mão uma vara de marfim e mal podia erguer as pálpebras moles.
-Teu amo? - gritou-lhe Topsius, desmontando.
Entra - disse o homem numa voz fugidia e fina como silvo de cobra.
Por uma escadaria rica de granito negro chegamos a um patamar, onde pousavam dous candelabros, espigados como os arbustos de que reproduziam, em bronze, o tronco sem folhas; e entre eles estava de pé, diante de nós, Gamaliel, filho de Simeão. Era muito alto, muito magro; e a barba solta, lustrosa, perfumada, enchia-lhe o peito, onde brilhava um sinete de coral pendurado de uma fita escarlate. O seu turbante branco, entremeado de fios de pérolas, descobria uma tira de pergaminho colada sobre a testa e cheia de textos sagrados; sob aquela alvura, os seus olhos encovados tinham um fulgor frio e duro. Uma longa túnica azul cobria-o até às sandálias, orlada de compridas franjas que arrastavam; e cozidas às mangas, enroladas nos pulsos, tinha ainda outras tiras de pergaminho, onde negrejavam outras escrituras rituais.
Topsius saudou-o à moda do Egito, deixando cair lentamente a mão até à joalheira da sua calça de lustrina. Gamaliel alargou os braços e murmurou, como salmodiando:
-Entrai, sede bem-vindos, comei e regozijai-vos...
E atrás de Gamaliel, pisando um chão sonoro de mosaico, penetramos numa sala onde se achavam três homens. Um, que se afastou da janela para nos acolher, era magnificamente belo, com longos cabelos castanhos, pendendo em anéis doces em torno de um pescoço forte, macio e branco como um mármore corintio; na faixa negra que lhe apertava a túnica brilhava, com pedrarias, o punho de ouro de uma espada curta. O outro, calvo, gordo, com uma face balofa sem sobrancelhas, e tão lívida que parecia coberta de farinha, ficara encruzado, embrulhado no seu manto cor de vinho, sobre um divã feito de correias, tendo uma almofada de púrpura debaixo de cada braço; e o seu gesto de acolhida foi mais distraído e desdenhoso, do que a esmola que se atira ao estrangeiro. Mas Topsius quase se prostrara, a beijar os seus sapatos redondos de couro amarelo, atados por fios de ouro, porque aquele era o venerando Osânias, da família pontifical de Beotos, ainda do sangue real de Aristóbolo! O outro homem não o saudamos, nem ele também nos viu; estava agachado a um canto, com a face sumida no capuz de uma túnica de linho mais alvo que a neve fresca, como mergulhado numa oração; e só de vez em quando se movia, para limpar as mãos lentamente a uma toalha da fina brancura da túnica, que lhe pendia de uma corda, apertada à cintura, grossa e cheia de nós, como as que cingem os monges.
No entanto, descalçando as luvas, eu examinava o teto da sala, todo de cedro, com lavores retocados de escarlate. O azul liso e lustroso das paredes era como a continuação daquele céu do Oriente, quente e puro, que resplandecia através da janela, onde se destacava, pendido do muro, na plena luz, um ramo solitário de madressilva. Sobre uma tripeça, incrustada de nácar, num incensador de bronze, fumegava uma resina aromática.
Mas Gamaliel aproximara-se, e depois de ter olhado duramente as minhas botas de montar, disse com lentidão:
-A jornada do Jordão é longa, deveis vir esfomeados...
Murmurei polidamente uma recusa... E ele, grave como se recitasse um texto:
-A hora do meio-dia é a mais grata ao Senhor. José disse a Benjamim: "tu comerás comigo ao meio-dia". Mas a alegria do hóspede é também doce ao muito alto, ao muito forte... Estais fracos, ides comer, para que a vossa alma me abençoe.
Bateu as palmas; um servo, com os cabelos apertados num diadema de metal, entrou trazendo um jarro cheio de água tépida que cheirava a rosa, onde eu purifiquei as mãos; outro ofereceu bolos de mel sobre viçosas folhas de parra; outro verteu, em taças de louça brilhante, um vinho forte e negro de Emaús. E para que o hóspede não comesse só, Gamaliel partiu um gomo de romã, e com as pálpebras cerradas levou à beira dos lábios uma malga, onde boiavam pedaços de gelo entre flores de laranjeira.
-Pois agora - disse eu lambendo os dedos - tenho lastro até ao meio-dia...
-Que a tua alma se regozije!
Acendi um cigarro, debrucei-me na janela. A casa de Gamaliel ficava num alto, decerto por trás do templo, sobre a colina de Orfel; ali o ar era tão doce e macio, que só o sentir a sua carícia enchia de paz o coração. Por baixo corria a muralha nova erguida por Herodes, o Grande; e para além floriam jardins e pomares, dando sombra ao Vale da Fonte, e subindo até à colina, em que branquejava, calada e fresca, a aldeia de Siloé. Por uma fenda, entre o Monte do Escândalo e a Colina dos Túmulos, eu via resplandecer o Mar Morto como uma chapa de prata; as montanhas de Moabe ondulavam depois, suaves, de um azul apenas mais denso que o do céu; e uma forma branca, que parecia tremer na vibração da luz, devia ser a cidadela de Maqueros sobre o seu rochedo, nos confins da Iduméia. No terraço relvoso de uma casa, ao pé das muralhas, uma figura imóvel, abrigada sob um alto guarda-sol franjado de guizos, olhava como eu para esses longes da Arábia; e ao lado uma rapariga, ligeira e delgada, com os braços nus e erguidos, chamava um bando de pombas que esvoaçavam em redor. A túnica aberta descobria- lhe o seiozinho cheio de seiva; e era tão linda, morena e dourada pelo sol, que eu ia, no silêncio do ar, atirar-lhe um beijo... Mas recolhi, ouvindo Gamaliel que dizia, como o homem do manto cor de açafrão no Monte das Oliveiras: "Sim esta noite, em Betânia, Rabi Jeschoua foi preso..."
Depois ajuntou, lento, com os olhos semicerrados, erguendo por entre os dedos os longos fios da barba:
-Mas Pôncio teve um escrúpulo... Não quis julgar um homem de Galiléia, que é súdito de Antipas Herodes... E como o tetrarca veio à Páscoa a Jerusalém, Pôncio mandou o Rabi à sua morada, a Bezeta...
Osdoutos óculos de Topsius rebrilharam de espanto.
-Cousa estranha! - exclamou, abrindo os braços magros. - Pôncio escrupuloso, Pôncio formalista! E desde quando respeita Pôncio a judicatura do tetrarca? Quantos pobres galileus não fez ele matar sem licença do tetrarca, quando foi da revolta do aqueduto, quando espadas romanas, por ordem de Pôncio, misturaram, nos pátios do templo, o sangue dos homens de Neftali ao sangue dos bois do sacrifício!
Gamaliel murmurou sombriamente:
-O romano é cruel, mas escravo da legalidade.
Então Osânias, filho de Beotos, disse com um sorriso mole e sem dentes, agitando de leve, sobre a púrpura das almofadas, as mãos resplandecentes de anéis:
-Ou talvez seja que a mulher de Pôncio proteja o Rabi.
Gamaliel, surdamente, amaldiçoou o impudor da romana. E como os óculos de Topsius interrogavam o venerando Osânias, ele admirou-se que o doutor ignorasse cousas tão conversadas no templo, até pelos pastores que vêm da Iduméia vender os cordeiros da oferenda. Sempre que o Rabi pregava no Pórtico de Salomão, do lado da Porta Susa, Cláudia vinha vê-lo do alto do terraço da Torre Antônia, só, envolta num véu negro... Menahem, que guardava no mês de Tebete a escadaria dos Gentis, vira a mulher de Pôncio acenar com o véu ao Rabi. E talvez Cláudia, saciada de Cápreas, de todos os cocheiros do circo, de todos os histriões de Suburra, e dos brinquedos de Atalanta que fizeram perder a voz ao cantor Ácio, quisesse provar, vindo à Síria, a que sabiam os beijos de um profeta de Galiléia...
O homem vestido de linho alvo ergueu bruscamente a face, sacudindo o capuz de sobre os cabelos revoltos; o seu largo olhar azul fulgurou por toda a sala, num relâmpago, e apagou-se logo, sob a humildade grave das pestanas que se baixaram... Depois murmurou, lento e severo:
-Osânias, o Rabi é casto!
O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabi! E então essa galiléia de Magdala, que vivera no bairro de Bezeta, e nas festas do Prurim se misturava com as prostitutas gregas às portas do teatro de Herodes?... E Joana, a mulher de Cosna, um dos cozinheiros de Antipas? E outra de Efraim, Susana, que uma noite, a um gesto do Rabi, a um aceno do seu desejo, deixara o tear, deixara os filhos, e com o pecúlio doméstico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesaréia?...
-Oh Osânias! - gritou, batendo palmas folgazãs, o homem formoso que tinha uma espada com pedrarias. - Oh filho de Beotos, como tu conheces, uma a uma, as incontinências de um Rabi galileu, filho das ervas do chão e mais miserável que elas!
Nem que se tratasse de Élio Lama, nosso legado imperial, que o Senhor cubra de males!
Os olhos de Osânias, miudinhos como duas contas de vidro negro, reluziram de agudeza e malícia.
-Oh Manassés! E para que vós outros, os patriotas, os puros herdeiros de Judas de Galaunítida, não nos acuseis sempre, a nós saduceus, de saber só o que se passa no átrio dos sacerdotes e nos eirados da casa de Hanão...
Uma tosse rouca reteve-o um espaço, sufocando, sob a ponta do manto em que vivamente se embuçara. Depois, mais quebrado, com laivos roxos na face farinhenta:
-Que em verdade foi justamente na casa de Hanão que ouvimos isto a Menahem, passeando todos debaixo da vinha... E mesmo nos contou ele que esse Rabi de Galiléia chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagás, e outras mais impuras que o porco... Um levita viu-o, na estrada de Siquém, erguer-se afogueado, detrás da borda de um poço, com uma mulher de Samaria!
O homem coberto de alvo linho ergueu-se de um salto, todo direito e trêmulo; e no grito que lhe escapou, havia o horror de quem surpreendeu a profanação de um altar!
Mas Gamaliel, com uma seca autoridade, cravou nele os olhos duros:
-Oh Gade, aos trinta anos o Rabi não é casado! Qual é o seu trabalho? Onde está o campo que lavra? Alguém jamais conheceu a sua vinha? Vagabundeia pelos caminhos e vive do que lhe ofertam essas mulheres dissolutas! E que outra cousa fazem esses moços sem barba de Sibáris e de Lesbos, que passeiam todo o dia na Via Judiciária, e que vós outros, essênios, abominais de tal sorte, que correis a lavar as vestes numa cisterna, se um deles roça por vós?... Tu ouviste Osânias, filho de Beotos... Só Jeová é grande! E em verdade te digo que, quando Rabi Jeschoua, desprezando a lei, dá à mulher adúltera um perdão que tanto cativa os simples, cede à frouxidão da sua moral e não à abundância da sua misericórdia!
Com a face abrasada, e atirando os braços ao ar, Gade bradou:
-Mas o Rabi faz milagres!
E foi o famoso Manassés, com um sereno desdém, que respondeu ao essênio:
-Sossega, Gade, outros têm feito milagres! Simão de Samaria fez milagres. Fê-los Apolônio, e fê-los Gabieno... E que são os prodígios do teu galileu comparados aos das filhas do Grão-Sacerdote Ánio, e aos do sábio Rabi Quequiná?
E Osânias escarnecia a simpleza de Gade:
-Em verdade, que aprendeis vós outros, essênios, no vosso oásis de Engada? Milagres! Milagres até os pagãos os fazem! Vai a Alexandria, ao porto do Eunotos, para a direita, onde estão as fábricas de papiros, e vês lá magos fazendo milagres por uma dracma, que é o preço de um dia de trabalho. Se o milagre prova a divindade, então é divino o peixe Oanes, que tem barbatanas de nácar e prega nas margens do Eufrates, em noites de lua cheia!
Gade sorria com altivez e doçura. A sua indignação expirara sob a imensidão do seu desdém. Deu um passo vagaroso, depois outro, e considerando, apiedadamente, aqueles homens enfatuados, endurecidos e cheios de irrisão:
-Vós dizeis, vós dizeis, vãos à maneira de moscardos que zumbem! Vós dizeis, e vós não o ouvistes! Em Galiléia, que é bem fértil, bem verde, quando ele falava era como se corresse uma fonte de leite em terra de fome e secura: até a luz parecia um bem maior! As águas, no Lago de Tiberíade, amansavam para o escutar; e aos olhos das crianças que o rodeavam, subia a gravidade de uma fé já madura... Ele falava; e como pombas que desdobram as asas e voam da porta de um santuário, nós víamos desprender-se dos seus lábios, irem voar por sobre as nações do mundo, toda a sorte de cousas nobres e santas, a caridade, a fraternidade, a justiça, a misericórdia, e as formas novas, belas, divinamente belas, do amor!
A sua face resplandecia, enlevada para os céus, como seguindo o vôo dessas novas divinas. Mas já do lado, Gamaliel, doutor da lei, o rebatia com uma dura autoridade:
Que há de original e de individual em todas essas idéias, homem? Pensas que o rabi as tirou da abundância do seu coração? Está cheia delas a nossa doutrina!... Queres ouvir falar de amor, de caridade, de igualdade? Lê o livro de Jesus, filho de Sidrá... Tudo isso o pregou Hilel; tudo isso o disse Esquemaia! Cousas tão justas se encontram nos livros pagãos que são, ao pé dos nossos, como o lodo ao pé da água pura de Siloé!... Vós mesmos, os essênios, tendes preceitos melhores!... Os rabis de Babilônia, de Alexandria, ensinaram sempre leis puras de justiça e de igualdade! E ensinou-as o teu amigo Iocanã, a quem chamais o Batista, que lá acabou tão miseravelmente num ergástulo de Maqueros.
-Iocanã! - exclamou Gade, estremecendo, como rudemente acordado da suavidade de um
sonho.
Os seus olhos brilhantes umedeceram. Três vezes, curvado para o chão, com os braços
abertos, repetiu o nome de Iocanã, como chamando alguém dentre os mortos. Depois, com duas lágrimas rolando pela barba, murmurou muito baixo, numa confidência que o enchia de terror e de fé:
-Fui eu que subi a Maqueros a buscar a cabeça do Batista! E quando descia o caminho, com ela embrulhada no meu manto, ainda a outra, Herodíade, estirada por sobre a muralha como a fêmea lasciva do tigre, rugia e me gritava injúrias!... Três dias e três noites segui pelas estradas de Galiléia, levando a cabeça do justo pendurada pelos cabelos... Às vezes, detrás de um rochedo, um anjo surgia todo coberto de negro, abria as asas e punha-se a caminhar ao meu lado...
De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos ressoaram nas lajes; e ficou prostrado, orando ansiosamente, com os braços estendidos em cruz.
Então Gamaliel adiantou-se para o sábio Topsius; e, mais direito que uma coluna do templo, com os cotovelos colados à cinta, as mãos magras espalmadas para fora:
-Nós temos uma lei; a nossa lei é clara. Ela é a palavra do Senhor; e o Senhor disse: "Eu sou Jeová, o eterno, o primeiro e o último; o que não transmite a outros nem o seu nome, nem a sua glória; antes de mim não houve deus algum, não existe deus algum ao meu lado, não haverá deus algum depois de mim..." Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda: "Se pois entre vós aparecer um profeta, um visionário que faça milagres e queira introduzir outro deus e chame os simples ao culto desse deus, esse profeta e visionário morrerá!" Esta é a lei, esta é a voz do Senhor. Ora, o Rabi de Nazaré proclamou-se deus em Galiléia, nas sinagogas, nas ruas de Jerusalém, nos pátios santos do templo... O Rabi deve morrer.
Mas o famoso Manassés, cujo lânguido olhar entenebrecia como um céu onde vai trovejar, interpôs-se entre o doutor da Lei e o historiador dos Herodes. E nobremente repeliu a letra cruel da doutrina:
Não, não! Que importa que a lâmpada de um sepulcro diga que é o sol? Que importa que um homem abra os braços e grite que é um deus? As nossas leis são suaves; por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil a Garebe...
Eu, caridoso, ia louvar Manassés. Mas já ele bradava, com violência e fervor.
-Todavia, esse Rabi de Galiléia deve decerto morrer, porque é um mau cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o tributo a César? O Rabi estende a mão a Roma; o romano não é o seu inimigo. Há três anos que prega, e ninguém jamais lhe ouviu proclamar a necessidade santa de expulsar o estrangeiro. Nós esperamos um messias que traga uma espada e liberte Israel, e este, néscio e verboso, declara que traz só o pão da verdade!
Quando há um pretor romano em Jerusalém; quando são lanças romanas que velam às portas do nosso Deus, a que vem esse visionário falar do pão do céu e do vinho da verdade? A única verdade útil é que não deve haver romanos em Jerusalém!...
Osânias, inquieto, olhou a janela cheia de luz, por onde as ameaças de Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o discípulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão:
-Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céu, é fazer-lhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta terra de Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O Rabi é traidor à Pátria! O Rabi deve morrer!
Trêmulo, agarrara a espada; e o seu olhar alargava-se, com uma fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a glória dos suplícios.
Então Osânias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava numa pinha de ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuviar a sua velhice leviana. E começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do entusiasmo e da doutrina aponta o mandato iniludível da necessidade:
-Decerto, decerto, pouco importa que um visionário se diga messias e filho de Deus; ameace destruir a lei e destruir o templo. O Templo e a Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar o carrasco a Garebe, porque um Rabi de Galiléia, que se lembra dos filhos de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudência e malícia nas relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos; mas podes tu, com elas, desviar a corrente do Jordão, da terra de Canaã para a terra da Tracaunítida? Não. Nem podes também impedir que as legiões de César, que cobriram as cidades da Grécia, venham cobrir o país de Judá! Sábio e forte era Judas Macabeu, e fez amizade com Roma... Porque Roma é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando ele vem, o insensato oferece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente recolhe à sua morgada e está quieto. Indomável era a Galácia; Filipe e Perseu tinham exércitos na planície; Antíoco, o Grande comandava cento e vinte elefantes e carros de guerra inumeráveis... Roma passou; deles que resta? Escravos, pagando tributos...
Curvara-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre nós os olhos miúdos que dardejavam um brilho inexorável e frio, prosseguiu, sempre de manso e sutil:
-Mas em verdade vos digo, que esse Rabi de Galiléia deve morrer! Porque é o dever do homem que tem bens na terra e searas, apagar depressa com a sandália, sobre as lajes da eira, a fagulha que ameaça inflamar-lhe a meda... Com o romano em Jerusalém, todo aquele que venha e se proclame Messias, como o de Galiléia, é nocivo e perigoso para Israel. O romano não compreende o reino do céu que ele promete; mas vê que essas prédicas, essas exaltações divinas, agitam sombriamente o povo dentro dos pórticos do templo... E então diz: "na verdade este templo, com o seu ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a autoridade de César na Judéia..." E logo, lentamente, anula a força do templo diminuindo a riqueza, os privilégios do seu sacerdócio. Já para nossa humilhação, as vestes pontificais são guardadas no erário da Torre Antônia; amanhã será o candelabro de ouro! Já o pretor usou, para nos empobrecer, o dinheiro do Corbã! Amanhã os dízimos da colheita, o dos gados, o dinheiro da oferenda, o óbolo das trombetas, os tributos rituais, todos os haveres do sacerdócio, até as viandas dos sacrifícios, nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para irmos mendigar nas estradas de Samaria, à espera dos mercadores ricos da Decápola... Em verdade vos digo, se quisermos conservar as e os tesouros, que são nossos pela antiga lei, e que fazem o esplendor de Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um templo quieto, policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabi deve morrer!
Assim diante de mim falou Osânias, filho de Beotos, e membro de Sanedrim.
Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverência as mãos sobre o peito, saudou três vezes aqueles homens facundos. Gade, imóvel, orava. No azul da janela uma abelha cor de ouro zumbia, em tomo da flor de madressilva. E Topsius dizia com pompa:
-Homens que me haveis acolhido! A verdade abunda nos vossos espíritos, como a uva abunda nas videiras! Vós sois três torres que guardais Israel entre as nações; uma defende a unidade da religião; outra mantém o entusiasmo da pátria; e a terceira, que és tu, venerando filho de Beotos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma cousa mais preciosa, que é a ordem!... Vós sois três torres; e contra cada uma o Rabi de Galiléia ergue o braço e lança a primeira pedrada! Mas vós guardais Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o judaísmo nunca poderiam viver juntos.
E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara frágil, disse, mostrando os dentes brancos:
-Por isso o crucificamos!
Foi como uma faca acerada que, lampejando e salvando, se viesse cravar no meu peito!
Arrebatei, sufocado, a manga do douto historiador:
-Topsius! Topsius! Quem é esse Rabi que pregava em Galiléia e faz milagres e vai ser crucificado?
O sábio doutor arregalou os olhos com tanto pasmo, como se eu lhe perguntasse qual era o astro que, dalém d9s montes, traz a luz da manhã. Depois, secamente:
-Rabi Jeschoua bar Joseph, que veio de Nazaré em Galiléia, a quem alguns chamam Jesus e outros também chamam o Cristo.
-O nosso! - gritei, vacilando, como um homem atordoado. E os meus joelhos católicos quase bateram as lajes, num impulso de ficar ali caído, enrodilhado no meu pavor, rezando desesperadamente e para sempre. Mas logo como uma labareda chamejou por todo o meu ser o desejo de correr ao seu encontro e pôr os meus olhos mortais no corpo do meu Senhor, no seu corpo humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam os caminhos humanos!... E ao mesmo tempo, mais do que treme a folha num áspero vento, tremia a minha alma num terror sombrio, o terror do servo negligente diante do amo justo! Estava eu bastante purificado, com jejuns e terços, para afrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga deficiência da minha devoção! Eu não beijara jamais, com suficiente amor, o seu pé dorido e roxo na sua Igreja da Graça! Ai de mim! Quantos domingos, nesses tempos carnais em que a Adélia, sol da minha vida, me esperava na Travessa dos Caídas, fumando e em camisa, não maldissera eu a lentidão das missas e a monotonia dos septenários! E sendo assim, do crânio à sola dos pés uma crosta de pecado, como poderia meu corpo não tombar, já réprobo, já tisnado, quando os dous globos dos olhos do Senhor, como duas metades do céu, se voltassem vagarosamente para mim?
Mas ver Jesus! Ver como eram os seus cabelos, que pregas fazia a sua túnica, e o que acontecia na terra quando os seus lábios se abriam!... Para além desses eirados onde as mulheres atiravam grãos às pombas; numa dessas ruas de onde me chegava claro e cantado o pregão dos vendedores de pães ázimos, ia passando talvez, nesse temeroso instante, entre barbudos, graves soldados romanos, Jesus, meu Salvador, com uma corda amarrada nas mãos. A lenta aragem que balançava na janela o ramo de madressilva, e lhe avivava o aroma, acabava talvez de roçar a fronte do meu Deus, já ensangüentada de espinhos! Era só empurrar aquela porta de cedro, atravessar o pátio onde gemia a mó do moinho doméstico, e logo, na rua, eu poderia ver, presente e corpóreo, o meu Senhor Jesus tão realmente e tão bem como o viram São João e São Mateus. Seguiria a sua sacra sombra no muro branco - onde cairia também a minha sombra. Na mesma poeira que as minhas solas pisassem - beijaria a pegada ainda quente dos seus pés! E abafando com ambas as mãos o barulho do meu coração, eu poderia surpreender, saído da sua boca inefável, um ai, um soluço, um queixume, uma promessa! Eu saberia então uma palavra nova do Cristo, não escrita no Evangelho; e só eu teria o direito pontifical de a repelir às multidões prostradas. A minha autoridade surgia, na Igreja, como a de um testamento novíssimo. Eu era uma testemunha inédita da paixão. Tomava-me S. Teodorico Evangelista!
Então, com uma desesperada ansiedade, que espantou aqueles orientais de maneiras mesuradas, eu gritei:
-Onde o posso ver? Onde está Jesus de Nazaré, meu Senhor?
Nesse momento um escravo, correndo na ponta leve das sandálias, veio cair de bruços nas lajes, diante de Gamaliel; beijava-lhe as franjas da túnica; as suas costelas magras arquejavam; por fim murmurou, exausto:
-Amo, o Rabi está no Pretório!
Gade emergiu da sua oração com um salto de fera, apertou em torno dos rins a corda de nós, e correu arrebatadamente, com o capuz solto, espalhando em redor o sulco louro dos seus cabelos revoltos. Topsius traçara a sua capa branca, com essas pregas de toga latina que lhe davam a solenidade de um mármore; e tendo comparado a hospitalidade de Gamaliel à de Abraão, bradou-me triunfantemente:
-Ao Pretório!
Muito tempo segui Topsius através da antiga Jerusalém, numa caminhada ofegante, todo perdido no tumulto dos meus pensamentos. Passamos junto a um jardim de rosas, do tempo dos profetas, esplêndido e silencioso que dous levitas guardavam com lanças douradas. Depois foi uma rua fresca, toda aromatizada pelas lojas dos perfumistas, ornadas de tabuletas em forma de flores e de almofarizes; um toldo de esteiras finas assombreava as portas; o chão estava regado e juncado de erva-doce e de folhas de anêmonas; e pela sombra preguiçavam moços lânguidos, de cabelos frisados em cachos, de olheiras pintadas, mal podendo erguer, nas mãos pesadas de anéis, as sedas roçagantes das túnicas cor de cereja e cor de ouro. Além dessa rua indolente abria-se uma praça, que escaldava ao sol, com uma poeira grossa e branca, onde os pés se enterravam; solitária, no meio, uma vetusta palmeira arqueava o seu penacho, imóvel e como de bronze; e ao fundo, negrejavam na luz as colunatas de granito do velho palácio de Herodes. Aí era o Pretório.
Defronte do arco de entrada, onde rondavam, com plumas pretas no elmo reluzente, dous legionários da Síria - um bando de raparigas, tendo detrás da orelha, uma rosa e no regaço coifas de esparto, apregoavam os pães ázimos. Sob um enorme guarda-sol de penas, cravado no chão, homens de mitra de feltro, com tábuas sobre os joelhos e balanças, trocavam a moeda romana. E os vendedores de água, com os seus odres felpudos, lançavam um grito trêmulo. Entramos: e logo um terror me envolveu.
Era um claro pátio, aberto sob o azul, lajeado de mármore, tendo de cada lado uma arcada, elevada em terraço, com parapeito, fresca e sonora como um claustro de mosteiro. Da arcaria ao fundo, encimada pela frontaria austera do palácio, estendia-se um velário, de um estofo escarlate franjado de ouro, fazendo uma sombra quadrada e dura; dous mastros de pau de sicômoro sustentavam-no, rematados por uma flor de lótus.
Aí apertava-se um magote de gente - onde se confundiam as túnicas dos fariseus orladas de azul, o rude saião de estamenha dos obreiros apertado com um cinto de couro, os vastos albornozes listrados de cinzento e branco dos homens de Galiléia, e a capa carmesim de grande capuz dos mercadores de Tiberíade; algumas mulheres, já fora do abrigo do velário, alçavam-se na ponta das chinelas amarelas, estendendo por cima do rosto contra o sol uma dobra do manto ligeiro; e daquela multidão saía um cheiro morno de suor e de mirra. Para além, por cima dos turbantes alvos apinhados, brilhavam pontas de lança. E ao fundo, sobre um sólio, um homem, um magistrado, envolto nas pregas nobres de uma toga pretexta, e mais imóvel que um mármore, apoiava sobre o punho forte a barba densa e grisalha; os seus olhos encovados pareciam indolentemente adormecidos; uma fita escarlate prendia-lhe os cabelos; e por trás, sobre um pedestal que fazia espaldar à sua cadeira curul, a figura de bronze da loba romana abria de través a goela voraz. Perguntei a Topsius quem era aquele magistrado melancólico.
-Um certo Pôncio, chamado Pilatos, que foi prefeito em Batávia.
Lentamente caminhei pelo pátio, procurando, como num templo, fazer mais sutil e respeitoso o ruído das minhas solas. Um grave silêncio caía do céu rutilante; só, por vezes, rompia do lado dos jardins, áspero e triste, o gritar dos pavões. Estendidos no chão, junto à balaustrada do claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma velha contava moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de fruta. Em andaimes, postos contra uma coluna, havia trabalhadores compondo o telhado. E crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam de leve nas lajes.
Subitamente, alguém familiar tocou no ombro do historiador dos Herodes. Era o formoso Manassés; e com ele vinha um velho magnífico, de uma nobreza de pontífice, a quem Topsius beijou filialmente a manga da samarra branca, bordada de verdes folhas de parra. Uma barba de neve, lustrosa de óleo, caía-lhe até à faixa que o cingia; e os ombros largos desapareciam sob a esparsa abundância dos cabelos alvos, saindo do turbante como uma pura romeira de arminhos reais. Uma das mãos, cheia de anéis, apoiava-se a um forte bastão de marfim; e a outra conduzia uma criança pálida, que tinha os olhos mais belos que estrelas, e semelhava, junto ao ancião, um lírio à sombra de um cedro.
-Subi à galeria - disse-nos Manassés. - Tereis lá repouso e frescura...
Seguimos o patriota; e eu perguntei cautelosamente a Topsius quem era o outro tão velho, tão augusto.
-Rabi Robã - murmurou com veneração o meu douto amigo. - Uma luz do Sanedrim, facundo e sutil entre todos, e confidente de Caifás...
Reverente, saudei três vezes Rabi Robã - que se sentara num banco de mármore, pensativo, aconchegando, sobre o seu vasto peito ancestral, a cabeça da criança mais loura que os milhos de Jopé. Depois continuamos devagar pela galeria sonora e clara na sua extremidade brilhava uma porta suntuosa de cedro com chapas de prata lavradas; um pretoriano de Cesaréia guardava-a, sonolento, encostado ao seu alto escudo de vime. Aí, comovido, caminhei para o parapeito; e logo os meus olhos mortais encontraram lá embaixo a forma encarnada do meu Deus!
 Mas, oh rara surpresa da alma variável; não senti êxtase nem terror! Era como se de repente me tivessem fugido da memória longos, laboriosos séculos de história e de religião. Nem pensei que aquele homem seco e moreno fosse o remidor da humanidade... Achei-me inexplicavelmente anterior nos tempos. Eu já não era Teodorico Raposo, cristão e bacharel; a minha individualidade como que a perdera, à maneira de um manto que escorrega, nessa carreira ansiosa desde a casa de Gamaliel. Toda a antigüidade das cousas ambientes me penetrara, me refizera um ser; eu era também um antigo. Era Teodoricus, um lusitano, que viera numa galera das praias ressoantes do Promontório Magno, e viajava, sendo Tibério imperador, em terras tributárias de Roma. E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias - mas apenas um moço de Galiléia que, cheio de um grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um céu e encontra a uma esquina um netenim do templo que o amarra e o traz ao pretor, numa manhã de audiência, entre um ladrão que roubara na estrada de Siquém e outro que atirara facadas numa rixa em Emá!
Num espaço ladrilhado de mosaico, em face do sólio onde se erguia o assento curul do pretor, sob a loba romana - Jesus estava de pé, com as mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azuis, cobria-o até aos pés, calçados de sandálias já gastas pelos caminhos do deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa coroa inumana de espinhos, de que eu lera nos Evangelhos; tinha um turbante branco, feito de uma longa faixa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os ombros; um cordel amarrava-lho por baixo da barba encaracolada e aguda. Os cabelos secos, passados por trás das orelhas, caíam-lhe em anéis pelas costas; e no rosto magro, requeimado, sobre sobrancelhas densas, unidas num só traço, negrejava com uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia, forte e sereno diante do pretor. Só algum estremecimento das mãos presas, traía o tumulto do seu coração; e às vezes respirava longamente, como se o seu peito, acostumado aos livres e claros ares dos montes e dos lagos de Galiléia, sufocasse entre aqueles mármores, sob o pesado velório romano, na estreiteza formalista da lei.
A um lado, Sareias, o vogal do Sanedrim, tendo deposto no chão o seu manto e o seu báculo dourado, ia desenrolando e lendo uma tira escura de pergaminho, num murmúrio cantado e dormente. Sentado num escabelo, o assessor romano, sufocado pelo calor já áspero do mês de Nizam, refrescava com um leque de folhas de heras secas, a face rapada e branca como um gesso; um escriba, velho e nédio, numa mesa de pedra cheia de tabulários e de regras de chumbo, aguçava miudamente os seus cálamos; e entre ambos o intérprete, um fenício imberbe, sorria com a face no ar, com as mãos na cinta, arqueando o peito onde trazia pintado, sobre a jaqueta de linho, um papagaio vermelho. Em torno ao velário, constantemente voavam pombas. E foi assim que eu vi Jesus de Galiléia preso, diante do Pretor de Roma...
No entanto Sareias, tendo enrolado em torno à haste de ferro o pergaminho escuro, saudou Pilatos, beijou um sinete sobre o dedo, para marcar nos seus lábios o selo da verdade, e imediatamente encetou uma arenga em grego, com textos, verbosa e aduladora. Falava do tetrarca de Galiléia, o nobre Antipas; louvava a sua prudência; celebrava seu pai Herodes, o Grande, restaurador do templo... A glória de Herodes enchia a terra; fora terrível, sempre fiel aos césares; seu filho Antipas era engenhoso e forte!... Mas reconhecendo a sua sabedoria, ele estranhava que o tetrarca se recusasse a confirmar a sentença do Sanedrim, que condenava Jesus à morte... Não fora essa sentença fundada nas leis que dera o Senhor? O justo Hanão interrogara o Rabi, que emudecera, num silêncio ultrajante. Era essa a maneira de responder ao sábio, ao puro, ao piedoso Hanão? Por isso um zeloso, sem se conter, atirara a mão violenta à face do Rabi... Onde estava o respeito dos antigos tempos, e a veneração do pontificado?
 A sua voz cava e larga, rolava infindavelmente. Eu, cansado, bocejava. Por baixo de nós, dous homens encruzados nas lajes comiam tâmaras de Betabara, que traziam no saião, bebendo de uma cabaça. Pilatos, com o punho sob a barba, olhava sonolentamente os seus borzeguins escarlates, picados de estrelas de ouro.
E Sareias agora proclamava os direitos do templo. Ele era o orgulho da nação, a morada eleita do Senhor! César Augusto ofertara-lhe escudos e vasos de ouro... E esse templo, como o respeitara o Rabi? Ameaçando destruí-lo! “Eu derrocarei o templo de Jeová e edificá-lo-ei em três dias!” Testemunhas puras, ouvindo esta rude impiedade, tinham coberto a cabeça de cinza, para afastar a cólera do Senhor... Ora, a blasfêmia atirada ao santuário, ressaltava até ao seio de Deus!...
Sob o velário, os fariseus, os escribas, os netenins do templo, escravos sórdidos, sussurravam como arbustos agrestes que um vento começa a agitar. E Jesus permanecia imóvel, abstraidamente indiferente, com os olhos cerrados, como para isolar melhor o seu sonho contínuo e formoso, longe das cousas duras e vás que o maculavam. Então o assessor romano ergueu-se, depôs no escabelo o seu leque de folhas, traçou com arte o manto forense, orlado de azul, saudou três vezes o Pretor, e a sua mão delicada começou a ondear no ar, fazendo cintilar uma jóia.
-Que diz ele?...
-Cousas infinitamente hábeis - murmurou Topsius. - E um pedante, mas tem razão. Diz que o Pretor não é um judeu; que nada sabe de Jeová, nem lhe importam os profetas que se erguem contra Jeová; e que a espada de César não vinga deuses que não protegem César!... O romano é engenhoso!
Ofegando, o assessor recaiu languidamente no escabelo. E logo Sareias volveu a arengar, sacudindo os braços para a multidão dos fariseus, como a evocar os seus protestos, e refugiando- se na sua força. Agora, mais retumbante, acusava Jesus, não da sua revolta contra Jeová e o templo, mas das suas pretensões como príncipe da casa de Davi! Toda a gente em Jerusalém o tinha visto, havia quatro dias, entrar pela Porta de Ouro, num falso triunfo, entre palmas verdes, cercado de uma multidão de galileus, que gritavam -"Hosana ao filho de Davi, hosana ao rei de Israel!..."
-Ele é o filho de Davi, que vem para nos tornar melhores! gritou ao longe a voz de Gade, cheia de persuasão e de amor.
Mas de repente Sareias colou ao corpo as mangas franjadas, mudo e mais teso que um conto de lança; o escriba romano, de pé, com os punhos fincados na mesa, vergava o cachaço reverente e nédio; o assessor sorria, atento. Era o Pretor que ia interrogar o Rabi; e eu, tremendo, vi um legionário empurrar Jesus, que ergueu a face...
Debruçado de leve para o Rabi, com as mãos abertas que pareciam soltar, deixar cair todo o interesse por esse pleito ritual de sectários arguciosos, Pôncio murmurou, enfastiado e incerto:
-És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!... Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?
O intérprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de mármore, repetiu muito alto estas cousas na antiga língua hebraica dos livros santos; e, como o Rabi permanecia silencioso, gritou- as na fala caldaica que se usa em Galiléia.
Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura, dominadora e serena:
-O meu reino não é daqui! Se por vontade de meu pai eu fosse Rei de Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu reino não é deste mundo!
Um grito estrugiu, desesperado:
-Tirai-o então deste mundo!
 E logo, como lenha preparada que uma faísca inflama, o furor dos fariseus e dos serventes do templo irrompeu, crepitando, em clamores impacientes:
-Crucificai-o! Crucificai-o!
Pomposamente o intérprete redizia em grego ao Pretor os brados tumultuosos, lançados na língua siríaca que fala o povo em Judéia... Pôncio bateu o borzeguim sobre o mármore. Os dous lictores ergueram ao ar as varas rematadas numa figura de águia; o escriba gritou o nome de Caio Tibério; e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um terror diante da majestade do povo romano.
De novo Pôncio falou, lento e vago:
-Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?
Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandália pousou fortemente sobre as lajes, como se tomasse posse suprema da terra. E o que saiu dos seus lábios trêmulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor que dos seus olhos negros saiu.
-Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade, quem quiser pertencer à verdade tem de escutar a minha voz!
Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois, encolhendo os ombros:
-Mas, homem, o que é a verdade?
Jesus de Nazaré emudeceu, e no Pretório espalhou-se um silêncio, como se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...
Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro degraus de bronze; e precedido dos lictores, seguido do assessor, penetrou no palácio, por entre o rumor de armas dos legionários que o saudavam, batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.
Imediatamente elevou-se por todo o pátio um áspero e ardente sussurro, como de abelhas irritadas. Sareias perorava, brandindo o báculo, entre os fariseus que apertavam as mãos num terror. Outros, afastados, cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que esvoaçava, corria numa ânsia o Pretório, por entre os que dormiam ao sol, por entre os vendedores de pães ázimos, gritando: "Israel está perdido!" E eu vi levitas fanáticos arrancarem as borlas das túnicas, como numa calamidade pública.
Gade surgiu diante de nós, erguendo os braços triunfantes:
-O Pretor é justo e liberta o Rabi!...
E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O Rabi, apenas solto, deixaria Jerusalém - onde as pedras eram menos duras que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Betânia; e partiriam ao romper da lua para o oásis de Engada! Lá estavam aqueles que o amavam. Não era Jesus o irmão dos essênios? Como eles o Rabi pregava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres, a incomparável beleza do reino de Deus...
Eu, crédulo, regozijava-me - quando um tumulto invadiu a galeria, que um escravo viera regar. Era o bando escuro dos fariseus, em marcha para o banco de pedra, onde Rabi Robã con- versava com Manassés, enrolando docemente nos dedos os cabelos da criança, mais louros que os milhos. Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sareias, no meio, curvado, mas com a firmeza de quem intima, dizia:
-Rabi Robã, é necessário que vás falar ao Pretor e salvar a nossa lei! E logo, de todos os lados, foi um suplicar ansioso:
-Rabi, fala ao Pretor! Rabi, salva Israel!
Lentamente o velho erguia-se, majestoso como um grande Moisés. E diante dele um levita, muito pálido, vergava os joelhos, murmurava a tremer:
-Rabi, tu és justo, sábio, perfeito e forte diante do Senhor!
 Rabi Robã levantou as duas mãos abertas para o céu; e todos se curvaram como se o espírito de Jeová, obedecendo à muda invocação, tivesse descido para encher aquele coração justo. Depois, com a mão da criança na sua, pôs-se a caminhar em silêncio atrás a turba fazia um rumor de sandálias lassas, sobre as lajes de mármore.
Paramos, amontoados, diante da porta de cedro, onde o pretoriano cruzara a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos rangeram; um tribuno do palácio acudiu, tendo na mão um longo galho de vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se palidamente uma estátua de Augusto, com o pedestal juncado de coroas de louro e de ramos votivos; dous grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos, na sombra.
Nenhum dos judeus entrou - porque pisar em dia pascal um solo pagão, era cousa impura diante do Senhor. Sareias anunciou altivamente ao tribuno que "alguns da nação de Israel, à porta do palácio de seus pais, estavam esperando o Pretor". Depois pesou um silêncio, cheio de ansiedade...
Mas dous lictores avançaram; e logo atrás, caminhando a passos largos, com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos apareceu.
Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judéia. Ele parara junto à estátua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da figura de mármore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e disse:
-Que a paz seja convosco e com as vossas palavras... Falai!
Sareias, vogal do Sanedrim, adiantando-se, declarou que os seus corações vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o Pretório, sem confirmar nem anular a sentença do Sanedrim, que condenava Jesus-ben-José - eles se achavam como o homem que vê a uva na vinha, suspensa, sem secar e sem amadurecer!
Pôncio pareceu-me penetrado de eqüidade e demência.
-Eu interroguei o vosso preso - disse ele; e não lhe achei culpa que deva punir o Procurador da Judéia... Antipas Herodes, que é prudente e forte, que pratica a vossa lei e ora no vosso templo, interrogou-o também e nenhuma culpa nele encontrou... Esse homem diz apenas cousas incoerentes, como os que falam em sonhos... Mas as suas mãos estão puras de sangue; nem ouvi que ele escalasse o muro do seu vizinho... César não é um amo inexorável... Esse homem é apenas um visionário.
Então, com um sombrio murmúrio, todos recuaram, deixando Rabi Robã só no limiar da sala romana. Um brilho de jóia tremia na ponta da sua tiara; as suas cãs caindo sobre os vastos ombros, coroavam-no de majestade como a neve faz aos montes; as franjas azuis do seu manto solto rojavam nas lajes, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a lei aos seus discípulos, ergueu a mão e disse:
-Oficial de César, Pôncio, muito justo e muito sábio! O homem que tu chamas visionário, há anos que ofende todas as nossas leis e blasfema o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando te trouxemos nós? Somente quando o vimos entrar em triunfo pela Porta de Ouro, aclamado como Rei da Judéia. Porque a Judéia não tem outro rei senão Tibério; e apenas um sedicioso se proclama em revolta contra César, apressamo-nos a castigá-lo. Assim fazemos nós, que não temos mandado de César, nem cobramos do seu erário; e tu, oficial de César, não queres que seja castigado o rebelde a teu amo?
A face larga de Pôncio, que uma sonolência amolecia, relampeou, raiada vivamente de sangue. Aquela tortuosidade de judeus que, execrando Roma, apregoavam agora um zelo ruidoso por César para poderem, em nome da sua autoridade, saciar um ódio sacerdotal - revoltou a retidão do romano; e a audaciosa admoestação foi intolerável ao seu orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia:
-Cessai! Os procuradores de César não vêm aprender, a uma colônia bárbara da Ásia, os seus deveres para com César!
Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabi prosseguiu, mais indiferente à ira de Pôncio do que ao balar de um anho que arrastasse às aras:
-Que faria o procurador de César, em Alexandria, se um visionário descesse de Bubastes, proclamando-se Rei do Egito? O que tu não queres fazer nesta terra bárbara da Ásia! Teu amo
dá-te a guardar uma vinha, e tu deixas que entrem nela e que a vindimem? Para que estás então na Judéia? Para que está a sexta legião na Torre Antônia? Mas o nosso espírito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Pôncio, para que César a ouça!...
Pôncio deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes, cravados naqueles judeus que, astutamente, o iam enlaçando na trama sutil dos seus rancores religiosos:
-Eu não receio as vossas intrigas! - murmurou surdamente. Elio Lama é meu amigo!... E César conhece-me bem!
-Tu vês o que não está nos nossos corações! - disse Rabi Robã, calmo como se conversasse à sombra do seu vergel. - Mas nós vemos bem o que está no teu, Pôncio! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo de Galiléia?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja divindade não respeitas, como podes querer salvar um profeta cujas profecias não crês?... A tua malícia é outra, romano! Tu queres a destruição de Judá!
Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os fariseus; alguns palpavam o seio da túnica, como procurando uma arma. E Rabi Robã continuava denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão:
-Tu queres deixar impune o homem que pregou a insurreição, declarando-se rei numa província de César, para tentar, pela impunidade, outras ambições mais fortes e levar, outro Judas de Gamala, a atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da Judéia. Tu queres uma revolta para afogares em sangue, e apresentar-te depois a César como soldado vitorioso, administrador sábio, digno de um proconsulado ou de um governo na Itália! E a isso que chamais a fé romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé púnica... Não nos suponhas, porém, tão simples como um pastor de Iduméia! Nós estamos em paz com César, e cumprimos o nosso dever, condenando o homem que se revoltou contra César... Tu não queres cumprir o teu, confirmando essa condenação? Bem! Mandaremos emissários a Roma, levando a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante César a nossa responsabilidade, mostraremos a César como procede na Judéia aquele que representa a lei do Império!... E agora, Pretor, podes voltar ao Pretório.
-E lembra-te dos escudos votivos - gritou Sareias. - Talvez novamente vejas a quem César dá razão!
Pôncio baixara a face, perturbado. Decerto imaginava já ver além, num claro terraço junto ao Mar de Cáprea, Sejano, Cesônio, todos os seus inimigos, falando ao ouvido de Tibério e mostrando-lhe os emissários do templo... César, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um pacto dele com esse "Rei dos Judeus", para sublevarem uma rica provinda imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter podiam custar-lhe o proconsulado da Judéia! Orgulho e justiça foram então, na sua alma frouxa, como ondas um momento altas que uma sobre outra se abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os braços, como trazido por um impulso magnânimo de conciliação - e começou a dizer, mais branco que a sua toga:
-Há sete anos que governo a Judéia. Encontrastes-me jamais injusto, ou infiel às promessas juradas?... Decerto, as vossas ameaças não me movem... César conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de César, não deve haver desacordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum outro procurador, desde Copônio, tenho respeitado as vossas leis... Quando vieram os dous homens de Samaria poluir o vosso templo, não os fiz eu supliciar? Entre nós não deve haver dissensões, nem palavras amargas...
Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e sacudindo-as, como molhadas numa água impura:
-Quereis a vida desse visionário? Que me importa? Tomai-a... Não vos basta a flagelação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que derramo esse sangue!
O levita macilento bradou com paixão:
-Somos nós, e que esse sangue caia sobre as nossas cabeças!
E alguns estremeceram - crentes de que todas as palavras têm um poder sobrenatural e tornam vivas as cousas pensadas.
Pôncio deixara a sala; o decurião, saudando, cerrou a porta de cedro. Então Rabi Robã voltou-se, sereno, resplandecente como um justo; e adiantando-se por entre os fariseus, que se baixavam a beijar-lhe as franjas da túnica - murmurava com uma grave doçura:
-Antes sofra um só homem, do que sofra um povo inteiro!
Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagara a testa, caí, trêmulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente distinguia no Pretório dous legionários, de cinturão desapertado, bebendo numa grande malga de ferro, que um negro ia enchendo com o odre suspenso aos ombros; adiante uma mulher bela e forte, sentada ao sol, com os filhos pendurados dos dous peitos nus; mais longe um pegureiro envolto em peles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixara na tenda, ardendo junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um sono ligeiro...
Quando despertei, a cadeira curul permanecia vazia - com a almofada de púrpura em frente, sobre o mármore, gasta, cavada pelos pés do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, num longo rumor de arraial, o velho átrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas de estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as lajes de uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e as mulheres que os seguiam, sórdidas e macilentas, atiravam de longe, com o braço fremente, maldições ao Rabi. Outras, no entanto, caminhando na ponta das sandálias, apregoavam baixo cousas ínfimas e ricas, metidas no seio entre as dobras dos saiões - grãos de aveia torrada, potes de ungüentos, corais, braceletes de filigrana de Sídron. Interroguei Topsius; e o meu douto amigo, limpando os óculos, explicou-me que eram decerto os mercadores contra quem Jesus, na véspera de Páscoa, erguendo um bastão, reclamara a estreita aplicação da lei que interdiz tráficos profanos no templo, fora dos pórticos de Salomão...
-Outra imprudência do Rabi, D. Raposo! - murmurou com ironia o fino historiador.
Entretanto, como caíra a sexta hora judaica e findara o trabalho, vinham entrando obreiros das tinturarias vizinhas, enodoados de escarlate ou azul; escribas das sinagogas, apertando debaixo dos braços os seus tabulários; jardineiros com a fouce a tiracolo, o ramo de murta no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da orelha... Tocadores fenícios a um canto afinavam as harpas, tiravam suspiros das flautas de barro; e diante de nós rondavam duas prostitutas gregas de Tiberíade, com perucas amarelas, mostrando a ponta da língua e sacudindo a roda da túnica, de onde voava um cheiro de mangerona. Os legionários, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma cercadura de ferro em torno de Jesus; e eu, agora, mal podia distinguir o Rabi através dessa multidão sussurrante, em que as consoantes ásperas de Moabe e do deserto se chocavam por sobre a moleza grave da fala caldaica...
Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão que oferecia num cabaz de esparto, acamados sobre folhas de parra, figos rachados de Betfagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe, debruçado no parapeito, o preço daquele mimo dos vergéis que os evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços, como se encontrasse o esperado do seu coração:
-Entre mim e ti, ó criatura da abundância que vens dalém do mar, que são estes poucos figos? Jeová manda que os irmãos troquem presentes e bênçãos! Estes frutos colhi-os no horto, um a um, à hora em que o dia nasce no Hébron; são suculentos e consoladores; poderiam ser postos na mesa de Hanão!... Mas que valem vãs palavras entre mim e ti, se os nossos peitos se entendem? Toma estes figos, os melhores da Síria, e que o Senhor cubra de bens aquela que te criou!
Eu sabia que esta oferta era uma cortesia consagrada, em compras e vendas, desde o tempo dos patriarcas. Cumpri também o cerimonial; declarei que Jeová, o muito forte, me ordenava que, com o dinheiro cunhado pelos príncipes, eu pagasse os frutos da terra... Então o hortelão abaixou a cabeça, cedeu ao mandamento divino; e pousando o cesto nas lajes, tomando um figo em cada uma das mãos negras e cheias de terra:
-Em verdade - exclamou - Jeová é o mais forte! Se ele o manda, eu devo pôr um preço a estes frutos da sua bondade, mais doces que os lábios da esposa! Justo é, pois, ó homem abundante, que por estes dous que me enchem as palmas, tão perfumados e frescos, tu me dês um bom traphik.
Oh Deus magnífico de Judá! O facundo hebreu reclamava por cada figo um tostão da moeda real da minha pátria! Bradei-lhe: -"Irra, ladrão!" Depois, guloso e tentado, ofereci-lhe uma dracma por todos os figos que coubessem no forro largo de um turbante. O homem levou as mãos ao seio da túnica, para a despedaçar na imensidade da sua humilhação. E ia invocar Jeová, Elias, todos os profetas seus patronos quando o sapiente Topsius, enojado, interveio secamente, mostrando-lhe uma miúda rodela de ferro que tinha por cunho um lírio aberto:
-Na verdade Jeová é grande! E tu és ruidoso e vazio como o odre cheio de vento! Pois pelos figos do cesto inteiro te dou eu este meah. E se não queres, conheço o caminho dos hortos tão bem como o do templo, e sei onde as águas doces de Enrogel banham os melhores pomares... Vai-te!
O homem logo, trepando ansiosamente até ao parapeito de mármore, atulhou de figos a ponta do albornoz que eu lhe estendera, carrancudo e digno. Depois, descobrindo os dentes brancos, murmurou risonhamente que nós éramos mais benéficos que o orvalho do Carmelo!
Saborosa e rara me parecia aquela merenda de figos de Betfagé no palácio de Herodes. Mas apenas nos acomodáramos com a fruta no regaço, reparei embaixo num velhito magro, que cravava em nós humildemente uns olhos enevoados, queixosos, cheios de cansaço. Compadecido ia arremessar-lhe figos e uma moeda de prata dos Ptolomeus - quando ele, mergulhando a mão trêmula nos farrapos que mal lhe velavam o peito cabeludo, estendeu-me, com um sorriso macerado, uma pedra que reluzia. Era uma placa oval de alabastro, tendo gravada uma imagem do templo. E enquanto Topsius doutamente a examinava, o velho foi tirando do seio outras pedras de mármore, de ônix, de jaspe, com representações do tabernáculo no deserto, os nomes das tribos entalhados, e figuras confusas em relevo, simulando as batalhas dos macabeus...
Depois ficou com os braços cruzados; e no seu nobre rosto, escavado pelos cuidados, luzia uma ansiedade, como se de nós somente esperasse misericórdia e descanso.
Topsius deduziu que ele era um desses guebros, adoradores do fogo e hábeis nas artes, que vão descalços até ao Egito, com fachos acesos, salpicar sobre a esfinge o sangue de um galo negro. Mas o velho negou, horrorizado - e tristemente murmurou a sua história. Era um pedreiro de Naim, que trabalhara no templo e nas construções que Antipas Herodes erguia em Bezeta. O açoute dos intendentes rasgara-lhe a carne; depois a doença levara-lhe a força, como a geada seca a macieira. E agora, sem trabalho, com os filhos de sua filha a alimentar, procurava pedras raras nos montes - e gravava nelas nomes santos, sítios santos, para as vender no templo aos fiéis. Em véspera de Páscoa, porém, viera um Rabi de Galiléia cheio de cólera que lhe arrancava o seu pão!...
-Aquele! - balbuciou sufocado, sacudindo a mão para o lado de Jesus.
Eu protestei. Como lhe poderia ter vindo a injustiça e a dor desse Rabi, de coração divino, que era o melhor amigo dos pobres?
-Então vendias no templo? - perguntou o terso historiador dos Herodes.
-Sim - suspirou o velho, - era lá, pelas festas, que eu ganhava o pão do longo ano! Nesses dias subia ao templo, ofertava a minha prece ao Senhor, e junto à porta de Susa, diante do pórtico do rei, estendia a minha esteira e dispunha as minhas pedras que brilhavam ao sol... Decerto, eu não tinha direito de pôr ali tenda; mas como poderia eu pagar ao templo o aluguer de um côvado de lajedo, para vender o trabalho das minhas mãos! Todos os que apregoam à sombra, debaixo do pórtico, sobre tabuleiros de cedro, são mercadores ricos que podem satisfazer a licença; alguns pagam um ciclo de ouro. Eu não podia, com crianças em casa sem pão... Por isso ficava a um canto, fora do pórtico, no pior sítio. Ali estava bem encolhido, bem calado; nem mesmo me queixava quando homens duros me empurravam, ou me davam com os bastões na cabeça. E ao pé de mim havia outros, pobres como eu: Eboim, de Jopé, que oferecia um óleo para fazer crescer os cabelos, e Oséias, de Ramá, que vendia flautas de barro... Os soldados da Torre Antônia que fazem a ronda, passavam por nós e desviavam os olhos. Até Menahem, que estava quase sempre de guarda pela Páscoa, nos dizia: - "está bem, ficai, contanto que não apregoeis alto". Porque todos sabiam que éramos pobres, não podíamos pagar o côvado de laje, e tínhamos nas nossas moradas crianças com fome... Na Páscoa e nos tabernáculos, vêm da terra distante peregrinos a Jerusalém; e todos me compravam uma imagem do templo para mostrar na sua aldeia, ou uma das pedras da lua que afugentam o demônio... As vezes, ao fim do dia, tinha feito três dracmas; enchia o saião de lentilha e descia ao meu casebre, alegre, cantando os louvores do Senhor!...
Eu, de enternecido, esquecera a merenda. E o velho desafogava o seu longo queixume:
-Mas eis que há dias esse Rabi de Galiléia aparece no templo, cheio de palavras de cólera, ergue o bastão e arremessa-se sobre nós, bradando que aquela "era a casa de seu pai, e que nós a poluíamos!..." E dispersou todas as minhas pedras, que nunca mais vi, que eram o meu pão! Quebrou nas lajes os vasos de óleo de Eboim, de Jopé, que nem gritava, espantado.
Acudiram os guardas do templo. Menahem acudiu também; até, indignado, disse ao Rabi: - "És bem duro com os pobres. Que autoridade tens tu?" E o Rabi falou "de seu pai", e reclamou contra nós a lei severa do templo. Menahem baixou a cabeça... E nós tivemos de fugir, apupados pelos mercadores ricos, que bem encruzados nos seus tapetes de Babilônia, e com o seu lajedo bem pago, batiam palmas ao Rabi... Ah! contra esses o Rabi nada podia dizer; eram ricos, tinham pago!... E agora aqui ando! Minha filha, viúva e doente, não pode trabalhar, embrulhada a um canto nos seus trapos; e os filhos de minha filha, pequeninos, têm fome, olham para mim, vêem- me tão triste e nem choram. E que fiz eu? Sempre fui humilde, cumpro o sabá, vou à sinagoga de Naim que é a minha, e as raras migalhas, que sobravam do meu pão, juntava-as para aqueles que nem migalhas têm na terra... Que mal fazia eu vendendo? Em que ofendia o Senhor? Sempre, antes de estender a esteira, beijava as lajes do templo; cada pedra era purificada pelas águas lustrais... Em verdade Jeová é grande, e sabe... Mas eu fui expulso pelo Rabi, somente porque sou pobre!
Calou-se - e as suas mãos magras, tatuadas de linhas mágicas, tremiam, limpando as
 longas lágrimas que o alagavama ati no peito, desesperado. E a minha angústia toda era por Jesus ignorar esta desgraça, que, na violência do seu espiritualismo, suas mãos misericordiosas tinham involuntariamente criado, como a chuva benéfica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flor isolada. Então para que não houvesse nada imperfeito na sua vida, nem dela ficasse uma queixa na terra - paguei a divida de Jesus (assim seu pai perdoe a minha!), atirando para o saião do velho moedas consideráveis, dracmas, crisos gregos de Filipe, áureos romanos de Augusto, até uma grossa peça da Cirenaica, que eu estimava por ter uma cabeça de Zeus Amon, que parecia a minha imagem. Topsius juntou a este tesouro um lepta de cobre - que tem em Judéia o valor de um grão de milho...
O velho pedreiro de Naim empalidecia, sufocado. Depois, com o dinheiro numa dobra do saião, bem apertado contra o peito, murmurou tímida e religiosamente, erguendo os olhos ainda molhados para as alturas:
-Pai, que estás nos céus, lembra-te da face deste homem, que me deu o pão de longos
dias!...
E soluçando, sumiu-se entre a turba - que, agora, de todo o átrio rumorosamente afluía, se
apinhava em torno aos mastros altos do velário. O escriba aparecera, mais vermelho e limpando os beiços. Ao lado do Rabi e dos guardas do templo, Sareias viera perfilar-se encostado ao seu báculo. Depois, entre um brilho de armas, surgiram as varas brancas dos lictores; e novamente Pôncio, pálido e pesado, na sua vasta toga, subiu os degraus de bronze, retomou o assento curul.
Um silêncio caiu, tão atento, que se ouviam as buzinas tocando ao longe na Torre Mariana. Sareias desenrolou o seu escuro pergaminho, estendeu-o sobre a mesa de pedra entre os tabulários; e eu vi as mãos gordas e morosas do escriba traçarem uma rubrica, estamparem um selo sob as linhas vermelhas que condenavam à morte Jesus de Galiléia, meu Senhor... Depois Pôncio Pilatos, com uma dignidade indolente, erguendo apenas de leve o braço nu, confirmou em nome de César a "sentença do Sanedrim, que julga em Jerusalém..."
Imediatamente Sareias atirou sobre o turbante uma ponta do manto, ficou orando, com as mãos abertas para o céu. E os fariseus triunfavam; junto a nós, dous muito velhos beijavam-se em silêncio nas barbas brancas; outros sacudiam no ar os bastões, ou lançavam sarcasticamente a aclamação forense dos romanos: "Bene et belle! Non potest melius!"
Mas de súbito o intérprete apareceu em cima de um escabelo, alteando sobre o peito o seu papagaio flamante. A turba emudecera, surpreendida. E o fenício, depois de ter consultado com o escriba, sorriu, gritou em caldaico alargando os braços cercados de manilhas de coral:
Escutai! Nesta vossa festa de Páscoa, o Pretor de Jerusalém costuma, desde que Valério Grato assim o determinou, e com assenso de César, perdoar a um criminoso... O Pretor propõe- vos o perdão deste... Escutai ainda! Vós tendes também o direito de escolher, vós mesmos, entre os condenados... O Pretor tem em seu poder, nos ergástulos de Herodes, outro sentenciado à morte...
Hesitou, e debruçado do escabelo, interrogava de novo o escriba, que remexia numa atarantação os papiros e os tabulários. Sareias, sacudindo a ponta do manto que escondia a sua oração, ficara assombrado para o Pretor, com as mãos abertas no ar. Mas já o intérprete bradava, erguendo mais a face risonha:
-Um dos condenados é Rabi Jeschoua, que aí tendes, e que se disse filho de Davi... É esse que propõe o Pretor. O outro, endurecido no mal, foi preso por ter morto um legionário traiçoeiramente, numa rixa, ao pé do Xisto. O seu nome é Barrabás... Escolhei!
Um grito brusco e roufenho partiu dentre os fariseus:
-Barrabás!
 Aqui e além, pelo átrio, confusamente ressoou o nome de Barrabás. E um escravo do templo, de saião amarelo, pulando até aos degraus do sólio, rompeu a berrar, em face de Pôncio, com palmadas furiosas nas coxas:
-Barrabás! Ouve bem! Barrabás! O povo só quer Barrabás!
A haste de um legionário fê-lo rolar nas lajes. Mas já toda a multidão, mais leve e fácil de inflamar do que a palha na meda, clamava por Barrabás; uns com furor, batendo as sandálias e os cajados ferrados como para aluir o Pretório; outros de longe, encruzados ao sol, indolentes e erguendo um dedo. Os vendilhões do templo, rancorosos, sacudindo as balanças de ferro e repicando sinetas, berravam, por entre maldições ao Rabi: "Barrabás é o melhor! E até as prostitutas de Tiberíade, pintadas de vermelhão como ídolos, feriam o ar de gritos silvantes:
-Barrabás! Barrabás!
Raros ali conheciam Barrabás; muitos, decerto, não odiavam o Rabi - mas todos engrossavam o tumulto prontamente, sentindo, nessa reclamação do preso que atacara legionários, um ultraje ao Pretor romano, togado e augusto no seu tribunal. Pôncio, no entanto, indiferente, traçava letras numa vasta lauda de pergaminho pousada sobre os joelhos. E em torno os clamores disciplinados retumbavam em cadência, como malhos numa eira:
-Barrabás! Barrabás! Barrabás!
Então Jesus, vagarosamente, voltou-se para aquele mundo duro e revoltoso que o condenava; e nos seus refulgentes olhos umedecidos, no fugitivo tremor dos seus lábios, só transpareceu nesse instante uma mágoa misericordiosa pela opaca inconsciência dos homens, que assim empurravam para a morte o melhor amigo dos homens... Com os pulsos presos, limpou uma gota de suor; depois ficou diante do Pretor, tão imperturbado e quedo, como se já não pertencesse a terra.
O escriba, batendo com uma régua de ferro na pedra da mesa, três vezes bradara o nome de César. O tumulto ardente esmorecia. Pôncio ergueu-se; e grave, sem trair impaciência ou cólera, lançou, sacudindo a mão, o mandado final:
-Ide e crucificai-o!
Desceu o estrado; a turba batia ferozmente as palmas.
Oito soldados da coorte siríaca apareceram, apetrechados em marcha, com os escudos revestidos de lona, as ferramentas entrouxadas, e o largo cantil da posca. Sareias, vogal do Sanedrim, tocando no ombro de Jesus, entregou-o ao decurião; um soldado desapertou-lhe as cordas, outro tirou-lhe o albornoz de lá; e eu vi o doce Rabi de Galiléia dar o seu primeiro passo para a morte.
Apressados, enrolando o cigarro, deixamos logo o palácio de Herodes, por uma passagem que o douto Topsius conhecia, lôbrega e úmida, com fendas gradeadas de onde vinha um canto triste de escravos encarcerados... Saímos a um terreiro, abrigado pelo muro de um jardim todo plantado de ciprestes. Dous dromedários deitados no pó ruminavam, junto de um montão de ervas cortadas. E o alto historiador tomava já o caminho do templo, quando, sob as ruínas de um arco que a hera cobria, vimos povo apinhado em torno de um essênio, cujas mangas de alvo linho batiam o ar como as asas de um pássaro irritado.
Era Gade, rouco de indignação, clamando contra um homem esgrouviado, de barba rala e ruiva, com grossas argolas de ouro nas orelhas, que tremia e balbuciava:
-Não fui eu, não fui eu...
-Foste tu! - bradava o essênio, estampando a sandália na terra. - Conheço-te bem. Tua mãe é cardadeira em Cafarnaum, e maldita seja pelo leite que te deu!...
O homem recuava, baixando a cabeça, como um animal encurralado à força:
-Não fui eu! Eu sou Refraim, falho de Eliézer, de Ramá! Sempre todos me conheceram são e forte como a palmeira nova!
-Torto e inútil eras tu como um sarmento velho de vide, cão e filho de um cão! - gritou Gade. - Vi-te bem... Foi em Cafarnaum, na viela onde está a fonte, ao pé da sinagoga, que tu apareceste a Jesus, Rabi de Nazaré! Beijavas-lhe as sandálias, dizias: "Rabi, cura-me! Rabi, vê esta mão que não pode trabalhar!" E mostravas-lhe a mão, essa, a direita, seca, mirrada e negra, como o ramo que definhou sobre o tronco! Era no sabá; estavam os três chefes da sinagoga, e Elzéar, e Simeão. E todos olhavam Jesus para ver se ele ousaria curar no dia do Senhor... Tu choravas, de rojo no chão. E por acaso o Rabi repeliu-te? Mandou-te procurar a raiz do ba…

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