Mir

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Victória passou pelas grandes portas de ferro e sentiu um frêmito de medo. O barulho de seus sapatos no chão de mármore produzia um barulho sombrio, o eco aterrorizador típico dos lugares desertos. Mas ela sabia que não estava sozinha. O encontro havia sido marcado na mesa principal, no centro daqueles corredores concêntricos que formavam a Biblioteca Principal, e não havia chance de ter sido a primeira a chegar. Mas apenas ela viria sozinha, disso tinha certeza.

De repente, a fraca luz que conseguia vencer os vitrais da grande clarabóia que coroava o salão falhou, e a jovem virou-se para a porta, assustada. Pensou ter ouvido ruídos por detrás das enormes estantes, e percorreu com o olhar o núcleo em que se encontrava, procurando por algo que não sabia o que era. Percebeu então que uma nuvem escura havia passado pelo céu, provocando a penumbra, e procurou recuperar a respiração. Foi quando sentiu a mão em seu ombro, e aquela voz familiar dizendo seu nome.

- Leon? O que você está fazendo aqui? Eu prometi a eles que viria sozinha. Vá embora enquanto há tempo. Não sei...

A jovem foi interrompida por Leon, que lhe falava em um tom de voz baixo, quase sussurrando:

- Fique calma, Victória. E, por favor, não reaja ao que vou lhe dizer. Por favor, mantenha a calma e não reaja. Teremos tempo para isso depois que tudo estiver resolvido. Eu estou com eles, sempre trabalhei para os Nequitia, mas não da forma que você está pensando.

Victoria inspirou profundamente e respondeu, ainda que mal fosse possível ouvir sua voz:

- Não vou reagir, há mais em jogo do que minha vida, ou que nós dois. Mas tire suas mãos imundas de mim, e tenha a decência de dizer o que realmente pretende.

- Victória...

- Vamos, estou esperando. Nomeie suas condições para libertá-la. - sua voz soou como metal, fria e afiada.

Nesse momento, a jovem de cabelos castanhos sentiu todo o sangue lhe fugir do rosto, ao ver a figura que surgia na escuridão dos corredores apagados. Aquele homem grisalho, volumoso dentro de um terno caro e bem cortado, lhe lançou um olhar de pura maldade. Não conhecia seu nome, apenas como gostava de ser chamado: Hades. E o homem que queria ser o deus dos mortos lhe sorriu com o canto esquerdo da boca, sustentando a certeza de que a tinha nas mãos, de que ela faria tudo o que ordenasse.

Victória ouviu Leon lhe pedir para que fingisse não conhecê-lo. Manteve-se de frente para Hades, reunindo todas as suas forças para não sucumbir ao pânico. A posição lhe garantia também não olhar para o homem ao seu lado, em quem ela confiara. Tudo havia começado meses atrás, quando o clima parecia propício para voltar ao seu país. Ela e a irmã, Isolda, estiveram exiladas por anos, desde que a perseguição às bruxas e feiticeiros fora instaurada pela Nova República. A ditadura imposta pelos mortais queimara tanto livros quanto humanos, rezando para apenas uma nova senhora, a ignorância.

Hades era o comandante-em-chefe do exército na época, e se gabava por ter aniquilado milhares de pessoas e centenas de bibliotecas. Nos momentos de frenesi destruidor, nem parecia o aficcionado pela Antiguidade Clássica que ordenara a construção de diversos prédios seguindo a arquitetura greco-romana. A própria biblioteca em que estavam fora erguida em uma homenagem grotesca ao Coliseu de Roma. Enfim, juntamente com o novo "primeiro-ministro", Fausto, tomaram o poder à força, e da mesma forma acabaram com os livros e com aqueles que se colocaram contra sua nova forma de governo. Apregoaram que a população não tinha capacidade de discernir entre leituras boas e ruins para suas vidas, e decretaram que a partir daquele momento essa seria uma decisão dos governantes. Incendiaram livros de história, filosofia, física quântica, literatura, religião e quanto mais acharam necessários. Atearam fogo a um número sem fim de piras, cada uma com duas, três, e às vezes dez pessoas. Pouco restara do que um dia fora o país chamado Mir.

MirWhere stories live. Discover now