Alma Lavada

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Pareceu uma eternidade desde o momento do anúncio, mas o dia havia chegado. Foi uma longa espera, e eu mal conseguia dormir, quanto mais manter a mente sã. Mas, quer saber? Valeu a pena.

Igreja com capacidade máxima. Lugares vazios eram poucos. Tantos rostos conhecidos, tanta gente especial. Eu sorria para um, acenava para outro, enquanto ela não chegava. Nunca imaginei rever tantos amigos nesse dia, nem no mais otimista dos meus sonhos.

O tempo passava e meu nervosismo crescia na mesma intensidade. Aproveitei a longa espera para fazer a minha retrospectiva.

Lembrei-me do seu sorriso. Foi o que mais me chamou a atenção quando vi sua foto pela tela do computador.

Naquela época, eu ainda me considerava tímido e preferia a coragem por trás de uma tela quadrada à ousadia de demonstrar meus sentimentos pessoalmente. Com ela isso funcionou.

Nós nos apaixonamos mesmo sem estarmos fisicamente presentes. E então aconteceu o primeiro encontro. A intensidade a partir do primeiro toque foi tão grande que meu coração parecia pequeno para suportar tanto amor. Foi a primeira vez na vida que rezei. Agradeci a Deus por ter me agraciado com o sentimento mais puro e singelo do mundo.

Fui despertado da minha hipnose pelo levantar dos convidados. Meu coração disparou: lá estava ela, minha princesa, minha vida.

O cabelo louro cacheado, especialmente preparado para a cerimônia. Uma contradição, já que ela adorava alisá-lo nos dias em que se revezava entre trabalho, faculdade e atenção a um namorado carente.

Os olhos castanhos, tão normais, mas, ao mesmo tempo, intensos. Olhos que me mostraram tantas coisas.

O sorriso, sua maior qualidade, capaz de derreter a mais fria geleira. Também capaz de convencer o namorado mais turrão de que ele estava errado, mesmo quando sua convicção da certeza era praticamente intransponível.

O vestido branco. Do jeito que havíamos planejado. A cauda longa, os detalhes nas mangas e na gola. O véu escorrido abaixo da cintura. O buquê de flores com as tulipas vermelhas, minha flor favorita. A flor do amor eterno.

Ali, naquela igreja, todos presenciavam o ápice da sua felicidade. Nem mesmo a Terra deve ter resistido. Aposto que todo o planeta parou para apreciar aquele fenômeno em forma de mulher.

O caminhar a passos lentos rumo ao altar. A Terra brincava de câmera lenta, enquanto ela, apenas com o olhar e o sorriso, parecia agradecer a cada um por estarem presentes naquela data tão significativa.

O padrasto do lado, sempre seguro, o seu porto seguro, sem nem sequer olhar para o lado. Se eu não o conhecesse tão bem não repararia, mas ele segurou o choro, afinal, segundo ele, homens não choram. Ledo engano.

A música que a acompanhava ao altar chegou ao clímax. Eu queria tanto a marcha clássica do Mendelssohn, mas ela insistiu naquela música do filme Segundas intenções. Fazer o quê? Música da noiva só ela tem o direito de escolher.

Ela se aproximava de mim lentamente, mas, mesmo a passos lentos, o tempo parecia passar com tamanha rapidez que minhas mãos não pararam de suar.

Será que alguém está reparando no quão nervoso estou?

Será que estou fazendo papel de bobo justo neste dia?

Ouvi a mãe dela chorando. O padrasto já se preparava para fazer a entrega da sua menininha, criada como filha, que cresceu e agora constituirá uma nova família.

O momento mais importante da cerimônia finalmente estava para chegar. Se eu fosse cardíaco, já teria falecido ali mesmo, na frente de todos.

Ela estava tão próxima de mim que consegui até mesmo sentir o cheiro do seu perfume. Aquele perfume que fazia com que eu parasse o carro na primeira oportunidade apenas para poder senti-lo. Apenas para poder intensificá-lo com o gosto do seu beijo. O beijo.

O golpe da lembrança foi mais profundo do que eu esperava. Lágrimas surgiram. Tentei ser forte, tentei passar por aquele dia sem sofrer, mas não consegui. As lembranças me esfaqueavam como um psicopata ensandecido.

As brigas, o ciúme incontrolável. A mudança de temperamento. Meus amigos. Minha família problemática. A vida mutante dela. Meu sonho inalcançável... O que era para ser o mais belo amor do mundo acabou se tornando mágoa, ódio, frustração, obsessão.

Lembro-me de quantas vezes me peguei na rua do prédio dela, com o carro parado e com a nossa música no último volume, torcendo para que ao menos ela abrisse a janela. Mas isso nunca aconteceu. Não depois do que fiz. Não depois da milésima vez que pedi para que desistisse de mim. Orgulho tolo.

Um amigo dela da faculdade me cutucou e perguntou se eu estava bem. Ele se lembrava de mim, isso era nítido, e sabia o que eu estava fazendo ali e o porquê também.

Será que ele sente pena de mim?

No segundo seguinte, ela estava do meu lado. Mais uma vez. Depois de tanto tempo, nossos olhares se encontraram. Já era tempo de o momento que eu tanto havia esperado finalmente acontecer. Mas, ao contrário do que eu esperava, esse momento não é nem um pouco parecido com o que eu tinha nos meus sonhos.

Ao se deparar com as lágrimas no meu rosto, ela sorriu. Devia estar satisfeita, afinal teve o que queria. Testemunhou meu ser estilhaçado, destruído. Mas eu a entendo. A culpa foi minha.

O segundo que pareceu durar uma eternidade se foi. Ela voltou a olhar para a frente. Encarou sorrindo aquele a quem ela deveria ser entregue: o seu novo e eterno amor. O noivo. Aquele a quem prometeria fidelidade. Aquele a quem prometeria tudo o que uma vez prometeu a mim quando ensaiávamos pela vigésima vez a nossa cerimônia de casamento em um quarto de motel. Aquele por quem me trocou um ano depois da nossa separação.

Não tive coragem de acompanhar o resto da cerimônia. Pedi licença aos convidados que estavam em pé na minha fileira. O amigo da faculdade tentou me consolar, mas de nada adiantaria. Eu havia procurado por isso. Eu achava que seria forte. Achava que suportaria, mas não consegui. Eu, que sonhava em ser o noivo, estava ali apenas como um convidado. Mais um nome na lista. Nem sequer recebi sua visita para entregar o convite. Ela o mandou pelo correio.

Meus pais disseram que eu era tolo de aparecer ali, mas eu achei que seria importante estar com ela naquele momento especial. Mais uma vez, agi como um completo imaturo. Mas não me culpo, afinal, quando amamos de verdade, não conseguimos agir com sobriedade. Isso eu sei. Aprendi com o tempo.

Saí da igreja como do útero materno que me sufocava. Respirei fundo, puxei o tanto de ar que pudesse conseguir. Soltei vagarosamente, com os olhos fechados. Pude sentir os primeiros respingos no rosto.

Olhei para o céu e eu não era o único a chorar por um amor perdido. O planeta também estava chorando. Deus chorava comigo. Ele sabia o quanto meu coração sofria. Somente ele sabia. Fui um fantoche por todos esses anos. Quase ninguém reparou no quanto eu sofria por trás da minha máscara. A água da chuva a desfazia como se essa máscara fosse feita de papel.

A chuva penetrava em minha alma. Acreditei que pudesse lavar as minhas feridas internas. Lavar minha alma. Afinal, não era uma chuva qualquer. Era uma chuva de novembro.

Daquele novembro.

Inspirado na música November rain, de Guns N'Roses.


Esse conto faz parte do livro Playlist - Vidas em Singles que retrata histórias inspiradas em músicas.


Mais informações em: 


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Alma LavadaWhere stories live. Discover now