Se dependesse do meu pai, minha vida inteira seria gravada. Eu faço qualquer coisa e ele pega o celular.
- Suji! - grita para minha mãe. - Jungkook está comendo cereal. Temos que filmar isso.
Ele fala "filmar", como se, em vez de um iPhone, tivesse toda uma equipe de
cinegrafistas ali, me filmando.Então, quando ele estacionou seu SUV híbrido diante de uma enorme construção com fachada de pedra e eu saí do carro para examinar minha nova casa pela primeira vez, não fiquei surpreso de ele ter pegado o telefone imediatamente.
- Aja como se você estivesse chegando em casa depois de três anos servindo ao Exército - disse ele, com o olho esquerdo escondido atrás do aparelho. - Faça umas
piruetas, vire estrela.- Não acho que soldados façam piruetas - retruquei. - E... não.
- Pelo menos eu tentei.
O problema é que ninguém jamais assiste a esses vídeos. Já vi meu pai gravar o equivalente a semanas, mas nunca, nunca o vi assistir a nenhum deles, nem cumprir as ameaças de publicá-los no "Face", como ele diz.
- Se você não guardar esse celular, vou jogá-lo longe - falei. - Sério. Chega.
Ele tirou o aparelho da frente do rosto e me lançou um olhar magoado enquanto permanecia, parado ali de pé, os joelhos ossudos reluzindo ao sol.
- Você não vai jogar meu filho longe.
- Pai. Eu sou seu filho.
- É. Mas você não grava vídeos.
Ele guardou o outro filho no bolso e ficamos ali em pé, um do lado do outro, espantados com a fortaleza de pedra que seria o meu dormitório, na ala leste. À nossa volta, outras famílias descarregavam caixas e malas na calçada. Garotos trocavam apertos de mãos e davam "soquinhos", como velhos amigos. O dia estava abafado, e o grande carvalho perto da entrada era o único abrigo contra o sol escaldante. Alguns pais se sentaram na grama, observando a caravana de carros passando. Cigarras cantavam, aquela cacofonia invisível invadindo meus tímpanos.
- Bem, não é assim que fazem isso lá em Bucheon - disse meu pai.
Ele apontava para a antiga construção, provavelmente erguida até mesmo antes de Bucheon se tornar uma cidade.
- Com certeza não - respondi, as palavras quase entalando na minha garganta. Senti como se eu tivesse feito todos os deveres de casa e gabaritado todos aqueles testes por uma razão. Finalmente, ali estava. Minha chance de mudar. Na escola Yonsei eu poderia ser apenas Jungkook. Não o filho colorido da Suji e do louco do Janghoon. Não o menino "diferente" do time de futebol. Não o garoto declaradamente gay que calculava todos os passos que dava.
Talvez, olhando de fora, eu fosse mesmo isso. Sim, eu saí do armário. Primeiro para os meus pais, quando eu cursava o oitavo ano, depois, na escola, no nono ano.
Porque era uma escola aberta e compreensiva. Um lugar seguro. E então meu time de futebol se reuniu e todos ficaram sabendo. O resto da família, amigos de amigos.
Jungkook.
Gay.
E ninguém surtou. Ninguém ficou arrasado, assustado ou se sentiu insultado. Não muito, pelo menos. Tudo correu superbem.
O que é bom, claro.
Mas um dia acordei e me olhei no espelho, foi isto que eu vi:
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