Ato I, Cena I

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Quarto conjugado. Em uma das salas, Racine escreve com a pena, sentado em frente da mesa feita de eucalipto; pragueja enormemente, -pois bem, -como há de ser então, veremos, veremos..

No canto, sobre um pequeno pilar, o busto de Ovídio reflete obliquamente a luz do sol. Apoiada no canapé, com os pés desnudos a roçarem livremente na textura espessa do tapete, Mademoiselle Du Parc brinca com um cacho de uvas, atira-as para cima e as apanha com a boca, em pleno o ar. As uvas sobressalentes amontoam-se no tapete, algumas já pisadas, outras ainda intactas. Por perto, fica o gato, excessivamente gordo que, apoiado numa pequena almofadinha, assiste ao espetáculo das uvas, enquanto lambe as patas traseiras.

Racine:

Chega, não posso mais suportar.

Du Parc:

Mas como? Tão logo se sentou e já quer largar a pena? Que será de mim, pobrezinha, sem um papel para representar? - Nós Atores também sentimos fome, -nossas barriguinhas fazem um barulho assustador, quando um ator faminto entra no camarim logo se anuncia; não abri mão da minha posição com Molière para ser conhecida como du Parc, a faminta de Paris. Não me zangue, não ouse, não sabes do que uma mulher com raiva é capaz.

Racine:

Minha amada Thérèse. Teu senso de humor nunca falha em me importunar. Ainda agora comera um bolo todo, sim, quase não fui capaz de tocá-lo. Do recheio, - fui capaz de conhecer melhor apenas o que me sobrou entre os dedos, enquanto você atira uvas para o alto, eu me encontro aflito, a se soubesse...

Du Parc:

Certo. Não lhe censuro, reconheço a verdade em tudo o que me diz. Entretanto, irei lembrá-lo, -é meu dever, sim, meu dever como atriz. -Ai, Meu querido jean, até me dói ter de dizer-lhe.

Pois, já que por um acaso, não fostes tu quem me levou flores na noite de estreia, assentando-as aos meus pés [olha para baixo, vê os pés agora roxos por conta das uvas, sorri docemente], -enquanto devorava-me com os teus lindos olhos negros? Não foi tu, Jean, que deslizou por entre todas as cortesãs, bebericando de roda em roda de cavalheiros, até me alcançar, já sensivelmente alcoolizado, só para ter a chance de dançar comigo no salão? Por um acaso, também não foi você, Jean, você dentre todos os mil pervertidos da alta sociedade de Paris que, como um relâmpago, entrou de assalto no meu camarim, no exato momento em que sabia estar eu ali a sós, ensaiando minha delicada voz para a apresentação. Sim, Jean, foi tudo ideia sua. Foi tu quem me levou pela mão até o divã naquele fatídico dia, sujando assim o meu vestido, e ofendendo a minha honra... [Racine afasta a cadeira com os pés, posa de semblante severo, faz menção de levantar-se, mas antes que consiga, Du Parc estende seu esbelto corpo, rapidamente chega até ele e, passa uma de suas longas garras ao redor de seu pescoço]

Racine:

Não me recordo de ouvi-la ter se queixado quando te livrei dos abusos de Molière. -Tens sorte, se fosse outra eu já teria... [Antes de completar a frase, Du Parc abre a mão e desliza suas longas unhas na cabeça de Racine, lentamente, o barulho parece agradar o bichano, que para de se lamber]

Du Parc:

Agora, meu Jean, tenho de ir-me. Lembre-se que uma mulher em minha posição precisa estar sempre bem vestida. Neste meio você vale o que aparenta ser. E com um rosto assim, -ainda encanto mais da metade dos mocinhos desta cidade, se arrepiam quando me veem. Julgo que alguns até sonham comigo, nas noites mais frias, será que sujam a roupa de cama?

Racine:

Como me arde os bolsos.

[Du Parc caminha lentamente até a escada e, antes de sair, lança um beijinho na direção de Racine, que suspende a respiração por um momento]

Ouve-se um barulho de porta se abrindo, de dentro do outro cômodo do quarto conjugado saí Duvall, vestido em trajes simples, porém elegantes.

Duvall:

Que situação temos aqui, meus senhores. Baseado no que meus ouvidos acusam, Du Parc de nada desconfia. Pensa ela talvez que a situação já foi resolvida, julga-se livre da cólera de Molière. Como teu amigo, é meu dever repreendê-lo neste pormenor.

Racine, será que a paixão cegou-lhe a vista? Que pretendes tu com essa sandice? Não bastou apunhalar Molière tirando-o da incumbência de representar a peça com sua companhia, -ainda teve a ousadia-, sim pois trata-se de uma ousadia escabrosa, roubar de um homem que goza de posição semelhante a tua, desprendê-lo completamente de sua amante, de tal maneira que deixaria até um cavalo desconcertado. Quando a notícia atingir os salões de costura, as casas de café, ou os ouvidos de uma única sequer matrona de boca frouxa, dessas que existem em protuberância aqui em Paris, a situação evidentemente escalará fora do controle. Estimo que o burburinho será tão intenso que não restará a Molière outra alternativa a não ser buscar a desforra com um duelo. E a julgar pelo teu aspecto, Jean, não acredito que saibas empunhar o sabre. Com uma pistola em mãos, tudo me leva a crer que o resultado seja ainda pior, pode ser que acerte a si mesmo com a bala, tamanha tua falta de jeito.

Racine:

Não pretendo deixar a coisa evoluir a tal ponto. Antes, tenho um plano que considero ideal: Quando

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⏰ Última atualização: Sep 22, 2018 ⏰

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A traição de RacineOnde histórias criam vida. Descubra agora