Levantei meu tronco do estado ermo do qual me encontrava, sem, coerentemente, saber da razão ou motivos daquele estado.
Extraordinariamente meu corpo levantou-se e moveu-se, como um ponteiro na bússola. Uma brisa fria do Norte ruborizou minha face ao passo que revigorou minhas forças e devolveu-me o prazer de ser. Era como um vento de promessa, envolto em presságios positivos para aquela noite.
Os sons de instrumentos clássicos me chegavam como pardais à primavera, e reviveram meu ânimo, que tão facilmente se enfraquece. Estava eu no jardim do castelo da família amiga, uma gente calma, que vive a salvo de paixões perturbadoras. Me encontrava junto às flores à procura do consolo que jamais encontrei. Era necessário deixar aquela noite lúgubre de outono e respeitar o convite que me fora gentilmente oferecido. Saí do relento e subi as escadas de linhas caprichosas da exuberante habitação.
Os primeiros olhares à minha solitária pessoa exprimiam amabilidade e benevolência, mas rapidamente, eram atraídos à minha veste que me perpassava o corpo como ondas ao mar. Abrocados do mais puro pérola virginal perfaziam-me o corpete, as longas mangas e a saia armada. Acima do vestido um adornado colete fazia-me o decote de modo farto, suas rendas, de fértil vermelho intenso, moldavam meu colo e a cintura e caía, após, em calda a arrastar no chão como o adorno de um pavão real. A combinação da vestimenta com as joias herdadas tinha um aspecto belo e inspirador, e eu sabia disso. Apegava-me a essa dignidade de ter a beleza admirada e sorria graciosamente ao entrar no baile. Era a única senhorita com trinta anos desacompanhada, o que tornava minha presença perceptível. Fazia-me amável para dirimir as críticas e para ser digna de devoção, como uma benção a quem aguarda a cura.
Após os comprimentos formais e assuntos amenos, encontrava-me já à vontade e conformada. A música da orquestra alegrava-me a alma e o champanhe caía-me à boca como a cachoeira ao chão, sua espuma multiplicava-se e era facilmente absorvida pela minha sede, um solo seco encontrando a neve.
Prosseguia-se assim a noite, até que o véu que cobria minha impressão banal do baile foi rasgado. Um imponente forasteiro, convidado do anfitrião, adentrou ao salão solitariamente. Era titular de um rosto encantador, duma beleza máscula, tranquila e madura, fora do comum. Seus cabelos negros e brilhantes, como as penas de um corvo, ornavam com seus grandes olhos escuros de intensa vivacidade. Suas feições eram caprichosamente delineadas, com a face possuidora de uma barba provocativa, a pele maravilhosamente alva e mãos sem aliança.
Ao vê-lo, fui tomada de arrebatada alegria, desaparecendo-me instantaneamente todos os traços de melancolia. Meus olhos cintilavam, minhas faces se afogueavam, meu sangue circulava em demasia e, naquele momento, achei-o mais belo que todos os viventes da Terra.
Ele aproximava-se de mim, o anfitrião o trazia apresentando-o a todos, e como gostaria de, naquele momento, voltar a condição humana normal que me encontrava outrora, com o ferro da infelicidade a doer-me a alma; estava em exagero alegre com a sua aproximação. Sequer as crianças prestes a serem presenteadas no Natal poderiam ser dotadas de tamanha ansiedade e entusiasmo, era assim que me encontrava.
Curvei o corpo aos cavalheiros diante da formal apresentação, ele beijou-me a mão com os lábios tão mais macios que as rosas que tocava a pouco no jardim. E isso me estremeceu internamente como a uma ponte suspensa no abismo. Atraída pela harmonia advinda do céu, a orquestra terminou o que tocava, o salão esvaziou-se e nova valsa reiniciou. Intuindo a minha aceitação, ele pediu-me a concessão da dança e, só porque via em seus penetrantes olhos a satisfação com minha presença, eu me deixei enlevar por ele.
Meu vestido circundava a sala principal de forma luxuriante, abaixo do lustre de cristal estávamos apenas nós. Rodopiávamos como nubentes em sua festa de união. Sentia-me a mais bem-aventurada donzela, como aquela salva do dragão nos contos da minha meninez. Pelos céus! Eu era, de todos os reinos, dos mais longínquos povos, a mais feliz das criaturas. Não dançávamos em um palácio, diante dos olhares críticos dos demais convidados, mas sim, ao meu sentir, em um barco sobre o bailar do mar, navegando a vento favorável abaixo da estrela vespertina, única a nos acompanhar; e tendo por testemunhas tão somente campanários de bosques e enevoadas montanhas vistas ao longe, do alto-mar.
A música, que até ali nos apaziguava com sua leve brisa melódica, cessou. Eu aceitaria a morte de bom grado naquele momento, pois o aroma sutil daquele cavalheiro amainava todo o meu ser. Nos cumprimentamos com reverência, ele devolveu-me ao meu lugar, onde o anfitrião o aguardava para juntos prosseguirem com as apresentações que objetivavam a sua presença.
As donzelas juvenis recebiam aquela figura de homem imponente envoltas de total agitação. Ele deslizava tão rapidamente entre elas, como trenó sobre a neve, sem prender a atenção. Frequentemente ele procurava o meu olhar, e o encontrava afetuoso em sua direção. Percebia que recebia conselhos dos seus pares, mas não os aplicava, pois não tirava para dançar nenhuma das jovens pueris apontadas pelos senhores que o tentavam influenciar.
Misericordiosamente ocultaria meu sentimento, como outrora fizera, para a felicidade das amigas que amava. No entanto, essas, a qual a presença me era imposta por estarmos no lugar-comum de senhoritas aptas à escolha, coisa alguma significavam a mim. Nada no mundo me consolaria se não fosse eu a sua eleita.
Não raro, era tentada a atravessar o salão em sua direção e implorar o seu amor, ao que era advertida pelas taças de champanhe que me reprimiam. O seu silente olhar a mim permanecia frequente, mas nada dizia, nada fazia. Dentro de uma inércia obstinada das coisas caladas, como as estátuas que bem romanticamente ornavam o castelo, assim ele permanecia.
Refleti em algo que pudesse cobrar-lhe a afeição e o movimento, que o tirasse do estado de poupar esforço no qual se encontrara. Resolvi, abaixo da sua observação, flertar alguém. Usei-me de sorrisos bem-aventurados, que mais pareciam carícias, e de toda simpatia doce que me era familiar.
E ele? Ah, ele... Ele não flertou ninguém. Terminada a minha encenação, que fora atrativa a quem se destinara e respondida sem esforço, ele alertou-se e pôs-se a examinar o espaço entre nós a fim de me alcançar. Notou que demoraria em demasiado, dado o exagerado volume de convidados. Não haveria outro modo para me impedir outros flertes, a não ser atravessar em minha direção o salão do baile destinado à dança, o que chamaria a atenção de todos os presentes e entregaria a sua decisão, ainda incerta. Ele parecia padecer diante da solução. Dispensou o anfitrião e os demais que floresciam a sua volta, tomou lugar à frente do salão à espera do fim da valsa presente para, logo após, vir em disparada ao meu encontro. Eu estava, como um porto profícuo ao veleiro, o esperava do lado oposto ao que ele estava. Dispensava-me um olhar afetuoso, e tinha agora o porte corajoso como o do cavaleiro destemido quando antecede o duelo.
Eu o aguardava confortante como se aquele homem fosse o berço da minha vida e como coisa exclusivamente minha, que eu amaria e cuidaria em absoluto e para sempre. A música cessou, ele se pôs ao meu encontro, atravessava o ambiente como caravela a desbravar o mar. E ao chegar-me tão incrivelmente perto, ao ponto do meu corpo reconhecer o perfume que o precedia, eu acordei! Sozinha, com dia alto e barulhento na Times Square. O relógio medieval, que decorava a minha suíte no Hilton, dizia que estava atrasada para o quarto desfile da semana. O celular disparou em ligações. Contemplei o relógio, que parecia feito para algum castelo, por longo tempo; custava-me levantar para a vida que não parecia ser a minha.
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Conto: A Garota do Baile
Short StoryA Garota do Baile é um conto épico que fascinará os leitores, ora na figura da donzela, ora na pessoa do cavalheiro misterioso... Uma noite que todos mereceríamos, um sonho que todos nós já tivemos. Uma leitura encantada! "...Meu vestido circundava...