Conto I, 2° parte: Lembranças.

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Miguel odiava a sua ansiedade. Havia dias que não conseguia dormir direito, tudo por conta do bendito baile.

Estava para comemorar apenas 25 renascimentos e já não aguentava mais ter que passar por isso. Apesar de sempre ser algo divertido, um momento de reunião da sua família e amigos mais íntimos, o que vinha antes era sempre uma dor de cabeça em forma de preparativo.

Além de toda a pompa de ser um membro da realeza, somava ao estresse o fato de precisar escolher um par para governar consigo o seu futuro reinado e a primeira vez que Elena iria para um baile de sua família. Tanta coisa poderia dar errado, e a ansiedade que tinha quando pensava nisso deixava Miguel extremamente desorientado.

Havia mandado alguns seguranças para trazerem Elena do limite do seu reino até o palácio, mas sabia que provavelmente o amigo se recusaria a vir acompanhado dessa forma. O príncipe realmente não queria que nada desse errado e, como parte do círculo íntimo do futuro rei, Elena estava mais do que nunca exposto à ameaças vindo para a festa do amigo. Fizera a mesma coisa com todos as outras com quem se importava, principalmente com seus súditos: toda a Guarda estava circulando há dias pela capital, vigiando todo e qualquer perigo.

Nadando nervosamente por um lado e outro do Salão Principal, o ponto mais alto e, consequentemente, mais iluminado do palácio, carregando uma bolsa cheia de pérolas e prendendo-as entre os enfeites floridos presos às paredes e tetos, o príncipe mal percebeu quando Elena adentrou o recinto. O amigo, querendo fazer uma surpresa, pediu que não anunciassem a sua chegada, e ficou ali observando o sereiano indo de um lado ao outro.

— Está faltando uma pérola na coluna da direita da porta maior. — Disse Elena, sorrindo. O príncipe parou e virou abruptamente para ele, sorrindo de volta, e nadou rápido até o amigo.

— Chegaste finalmente. Estava a tua espera. — Disse Miguel, abraçando apertado o humano.

— Estranharia se não tivesse. Quer uma ajuda aí? Parece que vai demorar pra terminar com essas pérolas. — Pergunta Elena. O amigo sorri e o puxa pela mão para observarem o salão por cima.

Deslumbrante. Magnífico. Estonteante. Era tudo que Elena conseguia pensar. Todo o salão estava decorado em tons de prata e marfim, e o brilho perolado reluzia no rosto chocado do humano. Partiram, então, ao trabalho. Os dois lado a lado, Miguel colocando onde percebia menos brilho, o que significava a falta da pérola, e Elena tentando imitar o padrão criado pelo príncipe, sempre dizendo-lhe que estava perfeito quando ele o perguntava o que achava da pérola recém posta.

O sentimento de calmaria sempre estava presente quando estavam juntos. Era nítido o quão bem um fazia para o outro. Tão notável que Elena não fora um grande problema para a família de Miguel. O humano fora recebido de forma bem desconfiada, mas demorou pouco para que o relacionamento dos dois provasse que era uma boa influência para o príncipe.

Havia anos humanos que eram amigos. Quando se conheceram, Elena tinha apenas 15 anos e Miguel tinha acabado de completar 32 renascimentos. Estavam na mesma praia de sempre, o humano tomando água de coco na areia e o sereiano surfando as poucas ondas que se formavam naquele dia.

Elena tinha ouvido falar de um surfista novo na área, que parecia ser estrangeiro e que sempre surfava sozinho. Apesar de não falar muito, tinha um sotaque de português, contava o dono do único quiosque da pequena praia, a quem o príncipe sempre pedia uma "fritadinha", ou seja, a porção média de batata frita.

Tinha decidido comprar a "fritadinha" e oferecer para o estrangeiro, mas seus planos foram arruinados quando o próprio comprou e se sentou ao lado do humano, oferecendo-as primeiro. Elena, ruborizando da cabeça aos pés, pegou algumas e permaneceu quieto durante um bom tempo. Minutos mais tarde, uma conversa foi sendo desenvolvida entre eles, e assim eles passavam boa parte dos dias de verão, a época do ano em que conseguiam realmente ficar juntos tempo suficiente na praia para comerem fritadinhas e conversar.

Todos os anos se seguiram assim, as vezes com uma intimidade maior, as vezes com uma intimidade menor, porém em nenhum dos encontros o clima havia ficado estranho ou pesado entre eles. Se sentiam tão confortáveis um com o outro que as perguntas que os outros faziam não pareciam ofensivas quando vinha de um deles.

Um dia, perguntado sobre a voz que havia engrossado no último ano, Elena comentou que havia começado a terapia hormonal, perguntando se a diferença era tão nítida assim. Miguel, sorrindo, respondeu que seria estranho se não notasse alguma mudança no crush dele, mesmo que não o enxergasse totalmente. Um comentário levou a outro, e nesse dia comentaram bastante sobre suas vivências como um cego e como uma pessoa passando por transição. Elena achou engraçado que Miguel não conhecia sobre a comunidade trans e sobre a terapia hormonal, mas apenas explicou da forma que conseguiu. O príncipe tentou explicar como surfava se não enxergava nada além de luzes e sombras, e cada vez mais eles se tornavam mais próximos.

Nenhum deles um dia sequer pensou a permanência que tiveram na vida um do outro. Depois de alguns anos, Miguel passou a ir mais para a praia, da mesma forma que Elena. No final, o dia do acidente consolidou a amizade entre eles, e, desde então, são os melhores amigos um dos outros. O príncipe compartilhou mais do que um segredo: mostrou a Elena a forma como ele poderia também ser um sereiano.

— Em minha forma humana, acabo permanecendo com um pouco de minha pele original. Restos de escamas e até mesmo a própria derme. Isso acontece apenas na família real, e poucos da linhagem conseguiam compartilhar as escamas com um ser que não fosse do mar. Nunca cheguei a testar antes, nunca tive um ser humano tão próximo a mim, mas se quiser testar. — Disse Miguel, arrancando uma escama presa a sua perna.

Um líquido azulado brotou rapidamente na ferida, e a mesma se fechou na velocidade em que abriu. Elena estendeu a mão, e o príncipe colocou o pequeno pedaço nas costas dela. Um formigamento se estendeu por todo o braço enquanto a escama parecia aderir-se a pele do humano.

Miguel levantou-se e estendeu a mão para Elena, levando-o até a água. Indo cada vez mais fundo, o garoto parecia se sentir mais confortável a medida que o mar ia molhando-o. Quando estavam apenas com a cabeça pra fora, sem tocar os pés no fundo, o sereiano mergulhou, fazendo o humano ir atrás do amigo. Ao dar por si, Elena viu, no lugar das pernas, uma bela cauda verde azulada, quase o dobro do tamanho de seu torso. Do seu lado, o príncipe também tinha uma cauda, mas essa era de um azul profundo, quase roxo.

E essa fora a primeira experiência de Elena como sereiano.

Nenhum dos dois nunca entendera o que sentiam pelo outro. Não sentiam atração física, e não queriam descobrir qual era a atração emotiva entre eles. Estavam muito bem com a amizade, os flertes e os tempos sem se ver, pois tudo parecia funcionar e se encaixar muito bem pra eles.

Miguel sabia que havia algo mais, pois nunca sentira o mar ficar da forma que ficava quando estava próximo de Elena. E Elena sentia, em todos os encontros, uma mudança súbita do clima do dia, sabendo ao acordar que deveria ir à praia quando pudesse.

Naquele dia não fora diferente. Mesmo sabendo de antemão que iria encontrar o amigo, Elena sentiu a leveza no ar e a calmaria nas ondas quando mergulhou. Ainda que tivessem passado o dia inteiro juntos, ao deitarem na mesma cama no chegar da noite, sentiam as diferenças notáveis quando se encontravam.

— Se te incomodas, posso solicitar-lhe outro aposento. — Comenta o príncipe.

— Sabe que a sua presença não me dá estas gasturas, Miguel. Relaxa, bebê. — Responde Elena sorrindo. Depois de um tempo, resolve perguntar — esse palácio tá bem no fundo do mar, né? — O príncipe confirma com a cabeça, e ele continua — então por que seu quarto é tão no alto?

— Sempre gostei de águas agitadas. Lá no fundo não há tantos seres circulando, sinto-me sozinho. Aqui, há pelo menos os sons do reino.

Passam um tempo em silêncio, até que Elena boceja forte. Miguel, então, se arruma na cama para puxar um leve tecido que há debaixo dela.

— Aqui não há cobertas, mas sei que tu gostas de dormir usando algo. Providenciei para que possas ter conforto e uma boa noite de sono. — Diz Miguel. Elena o agradece e se enrola no pano. Apesar de estar todo encharcado, sua pele não estranhou a sensação que o tecido trazia. Quando se ajeitou, o príncipe abraçou-o, puxando para mais perto. A cama era grande o suficiente para três, mas ter os seus corpos próximos era o que mais queriam no momento. Dormiram rapidamente, aconchegados no calor um do outro.

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⏰ Última atualização: Aug 06, 2019 ⏰

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