O lado invisível

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– Que Deus lhe abençoe, meu filho – disse uma senhora que ia passando pelo Palhaço enquanto ele descansava na sombra. O sol escaldava naquele dia, então era importante encontrar um lugar fresco para esperar até que o semáforo estivesse novamente sinalizando com a luz vermelha.

O Palhaço sorriu de volta para a senhora.

Nada de moedas hoje. Nem sempre o trabalho agradava os motoristas impacientes que aguardavam pelo sinal verde.

Nada de sorrisos. Todos já estavam acostumados com seu malabarismo animado: três limões se embaralhando no ar enquanto o Palhaço resistia com um sorriso incansável no rosto. Ele estava sempre na mesma rua, no mesmo semáforo.

A cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, era muito movimentada, mas, mesmo assim, poucos notavam ou queriam notar sua presença ali. É claro que muita gente tinha a quantia contada para as suas passagens de ônibus, contas ou vai saber o quê; outras apenas negavam por avareza. Os sorrisos, risos e cumprimentos, mesmo que poucos, eram riquezas intangíveis, coisas que não enchem o bolso, mas faziam o dia do Palhaço, enchiam o coração.

Contudo, "nem só de emoções vive um homem".

Com seus dezessete -- ou talvez dezoito – anos, calculava que já não sentia um abraço de sua mãe há uns dois anos (ou talvez mais, quem sabe?). Era mesmo ruim de matemática. Tentara se manter na escola, mas a vida não lhe permitiu. A escola o dava comida e um pouco de paz, longe do morro violento em que morou. O estudo era o de menos na escola, ele pensava, já que fora matriculado com o intuito de sobreviver, não estudar.

Nunca foi de expectativas. Fora ensinado por sua mãe que ler e escrever – coisa que o Palhaço não sabia fazer – era coisa de gente "com condições". Fora criado para resistir e existir, a parte da emoção deveria ser ignorada. Mas ele não seguiu estritamente o ensinamento.

Ele sempre se perguntava o porquê daquela frase. Nunca conseguiu uma resposta que lhe coubesse. As emoções eram muito importantes para ele, mas sempre o perturbavam.

Sinal vermelho novamente.

Mais um número e mais um sorriso radiante em seu rosto.

O último limão caiu em sua mão. Fim de outro turno. Ele foi andando por entre os carros, com o chapéu em uma das mãos e os três limões noutra, em busca de um trocado. Um motorista de um carro branco sujo pôs a mão para fora, balançando-a e fazendo as moedas se conflitarem, emitindo o som da esperança do Palhaço. O chapéu ficou sob a mão do homem, então as moedas caíram dentro daquele acessório colorido que só mesmo um palhaço usaria.

Seus olhos brilharam e o sorriso apagou o rosto preocupado do Palhaço. Sorrir o dia todo lhe doía as bochechas mas valia a pena. O motorista não olhou seu rosto, só desatou a acelerar, pois o semáforo ficou verde.

Foi para o seu mesmo canto e contou as moedas -- uma das coisas simples que aprendeu nas aulas de matemática. Duas moedas de vinte e cinco, duas de dez e uma de cinco centavos. Setenta e cinco centavos ganhos até agora, e seria o lucro do dia.

Decidiu voltar no dia seguinte e talvez ter mais sorte. Já beirava as cinco horas quando voltou ao hotel em que morava.

Não, caro leitor, não pense que morar em um hotel é algo fino. O nosso personagem morava de favor. Tinha de lavar, esfregar e deixar um brinco todos os banheiros dos sete andares de lá e ainda dormia em um velho armário de itens de limpeza, onde quase se sufocava com o cheiro intenso de mofo. Todos os dias.

O hotel não era tão longe do semáforo onde tentava ganhar a vida, era ali mesmo no centro de Niterói. Garantia quinze minutos de caminhada. Chegando lá, ele já não era mais o Palhaço. A tinta em seu rosto sempre borrava na volta para "casa", algumas vezes por suor, outras por lágrimas.

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