O mal

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"Não aclame vitória sobre o cão bastardo, pois a cadela que o pariu pode estar novamente no cio"

Bertold Brecht

Não acredito que possa haver comunicação entre vivos e espíritos de falecidos. Tive uma rígida educação cristã baseada exclusivamente na Bíblia e, mesmo não praticando essa ou aquela religião que alegam ser de Cristo, tenho em mim, arraigado, algumas crenças que mantenho, não por mero costume, mas porque me parecem mais racionais e condizentes com a essência perdida do cristianismo. De tudo que aconteceu, e que passo a narrar daqui em diante, tenho apenas uma explicação: o mal. O mais puro mal, primitivo e simples, a malignidade sobrenatural, pois eu acredito – ou passei recentemente a acreditar – na existência do diabo. Isso pode parecer, para os que me conhecem, contraditório, pois me consideram um tanto agnóstico, cético, mas loucura seria procurar outra explicação para os fatos que presenciei.

Estéfano era um homem do povo, simples, mas nenhum pouco inclinado a crenças supersticiosas. Era um sujeito simples, todavia uma personalidade forte ao seu modo e que só cria no que seus olhos podiam ver. Também se destacava por ser um trabalhador obstinado e dedicado. Fora por muitos anos caseiro de uma chácara que pertencera a meu tio e, depois da venda desta, perdi contato com ele por alguns anos. Voltei a reencontrá-lo quando comprei um sítio do velho Ernesto, conhecido bonachão que dispunha de muitas fazendas em vários povoados no estado do Mato grosso, e que entendia muito da administração delas. Após fechar o negócio, Ernesto fez questão de me indicar um caseiro que ele considerava excelente para tomar conta da minha nova propriedade. Fui apresentado a Estéfano que logo lembrou de mim. Surpreendemos Ernesto ao informá-lo que já nos conhecíamos. "Melhor ainda", falou o velho que vendera o sítio. "Você não vai ter problemas com o Estéfano zelando por sua propriedade, já deve conhecer suas qualidades", concluiu. Fiquei contente em contratar Estéfano, uma pessoa que eu conhecia bem, com quem conversara horas quando ia passar alguns dias na chácara de meu tio.

Duas semanas depois fui buscar Estéfano numa pequena fazenda. Despediu-se do capataz que já fora informado da dispensa dele pelo patrão. Colocamos suas coisas no porta-malas do meu carro e seguimos viagem. Durante o caminho, eu e Estéfano conversamos bastante. Ri um bocado da teoria que ele defendia informando o porque de sua separação. "Resolvi voltar a ser solteiro. Isso é que bom, vou pelo mundo convencer todos a abolir o casamento. Todo mundo vai concluir que o casamento é a mãe de todas as desgraças: brigas, guerras, acidentes, tudo é isso é causado por homens casados, sofredores que acabam fazendo besteira por causa de suas mulheres chatas e suas sogras implicantes. Encontrei a solução para o mundo", dizia ele e gargalhava.

Chegamos finalmente ao sítio e eu fui mostrar tudo. Ele se sentiu muito à vontade examinando com atenção todos os aspectos do lugar. Depois disso, concluiu que o local devia ter passado por mãos muito relaxadas ou mesmo que ficara abandonado por muito tempo, mas que eu não me preocupasse, pois ia pôr tudo em ordem. Já cuidara de propriedades maiores e com problemas maiores ainda. Disse-lhe que seria feito o que ele achasse melhor. Estéfano me aconselhou que contratasse alguns trabalhadores do povoado, acostumados ao trabalho rural, para uma limpeza. Dois ou três dias depois fui procurar um pessoal para a execução de tal serviço. Hoje eu sei porque as pessoas que contratei naquele dia me perguntaram de antemão se eu queria contratar gente para passar a noite no sítio. No momento eu apenas imaginei que eles não quisessem trabalhar até tarde. Informei que desejava apenas fazer uma limpeza na minha propriedade e que, se conseguisse oito ou dez trabalhadores, poderia realizar o serviço em um só dia, muito antes do entardecer. Após alguma hesitação, quatro homens toparam o trabalho. Indicado por eles mesmos, consegui mais cinco homens e quando ia informá-los sobre qual era a minha propriedade, eles me disseram que sabiam perfeitamente onde iam trabalhar.

SANGUE NO CÍRCULO (Finalizado)Where stories live. Discover now