Capítulo 06

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CAPÍTULO VI

No dia seguinte fui mais cedo para a Casa Velha, a fim de chegar antes dos hóspedes que D. Antônia esperava da roça, mas já os achei lá; tinham chegado na véspera, às ave-marias. Um deles, o coronel Raimundo, estava na varanda da frente, conheceu-me logo, e veio a mim para saber como ia a história de Pedro I. Sem esperar pela resposta, disse que podia dar-me boas informações... Conhecera muito o imperador. Assistira à dissolução da Constituinte, por sinal que estava nas galerias, durante a sessão permanente, e ouvira os discursos do Montezuma e dos outros, comendo pão e queijo, à noite, comprados na Rua da Cadeia; uma noite dos diabos.

- Vossa Reverendíssima vai escrever tudo?

- Tudo o que souber.

- Pois eu lhe direi alguma coisa.

Começamos a passear ao longo da varanda grande. Egoísmo de letrado! A esperança de alguns documentos e anedotas para o meu livro pôs de lado a principal questão daqueles dias; entreguei-me à conversação do coronel. Já sabemos que era parente da casa; era irmão de um cunhado do marido de D. Antônia, e fora muito amigo e familiar deles. Falamos cerca de meia hora; contou-me muita coisa do tempo, algumas delas arrancadas por mim, porque ele nem sempre via a utilidade de um episódio.

- Oh! isso não tem interesse!

- Mas diga, diga, pode ser, insistia eu.

Então ele contava o que era, uma visita, uma conversa, um dito, que eu recolhia de cabeça, para transpô-lo ao papel, como fiz algumas horas depois. Raimundo foi-se sentindo lisonjeado com a idéia de que eu ia imprimir o que me estava contando, e desceu a minúcias insignificantes, casos velhos, e finalmente às anedotas dele mesmo, e às partes da sua vida militar.

- Nhãtônia, disse ele vendo entrar a parenta na varanda, este seu padre sabe onde tem a cabeça.

D. Antônia fez um gesto afirmativo e seco, mas logo depois, para me não molestar, redargüiu sorrindo que sim, que tanto sabia onde tinha a cabeça como o coração. Lalau e as duas filhas do coronel vieram de fora, veio de dentro uma senhora idosa, arrastando um pouco os pés, e dando o braço a uma moça alta e fina.

- Ande para aqui, baronesa, disse-lhe D. Antônia.

Apresentaram-me às duas damas. Soube que a baronesa era avó da moça que a acompanhava. Eram esperadas do Pati do Alferes dez ou doze dias depois; mas vieram antes para assistir à festa da Glória. Foi o que me constou ali mesmo pela conversação dos primeiros minutos. A baronesa sentara-se de costas para uma das colunas, na cadeira rasa que lhe deram, ajudada pela neta, que a acomodou minuciosamente. Observei-a por alguns instantes. Os dois cachos brancos e grossos, pelas faces abaixo, eram da mesma cor da touca de cambraia e rendas; os olhos eram castanhos e não inteiramente apagados; lá tinham seus momentos de fulgor, principalmente se ela falava em política.

- Sinhazinha, o livro? perguntou ela à neta.

- Está aqui, vovó.

- É o mesmo da outra vez, Nhãtônia?

Era a mesma novela que lera quando ali esteve um ano antes, e queria reler agora: era o Saint Clair das lhas ou os Desterrados na Ilha da Barra. Meteu a mão no bolso e tirou os óculos, depois a caixa de rapé, e pôs tudo no regaço. Raimundo, passeando a mão pela barba, disse rindo:

- Bem, as senhoras vão conversar e nós vamos a um solo. Valeu, Reverendíssimo?

Fiz um gesto de complacência.

- Félix é um parceirão, e Nhãtônia também; mas vamos só os três. Nunca jogou com o Félix? Vai ver o que ele é, fino como trinta diabos; lá na roça dá pancada em todo mundo. Aquilo saiu ao pai. Se algum dia entrar na Câmara, creia que há de fazer um figurão, como o pai, e talvez mais. E olhe que acho tudo pouco para dar em terra com a tal Regência do Sr. Pedro de Araújo Lima...

Casa Velha ♥ Machado de AssisOnde histórias criam vida. Descubra agora