Eu sei o que você pensa pela manhã.
Era o que o rádio cantava baixinho na cozinha enquanto Jannet apreciava seu café. Olhava pela janela enquanto o fumegar vindo de dentro da xícara passava por seus olhos. Pensava sobre a noite passada, tendo uma ligeira certeza que isso se repetiria. Mas por que pensava daquele jeito?
Deixou-se levar por um devaneio, quase uma viagem no tempo, onde sua mãe desprezava as batidas à porta. A pequena Jan, com seus seis anos e meio, batendo à porta e querendo que sua mãe entendesse que tinha medo de dormir sozinha. Talvez um monstro terrível saísse do armário: quem sabe um cão raivoso ou um palhaço sedento por sangue?
Um sorriso bobo tomou-lhe conta do rosto. O que antes era assustador, hoje é engraçado.
O café já não fumegava tanto.
Quando piscou os olhos, reparou no cinza que o dia elegantemente nublado possuía. Conseguiu organizar seus pensamentos e deu conta de que a fase dos sonhos e medos irracionais chegara tarde para Jonah. Talvez ele não tivesse o tempo que todos têm.
Há alguns anos atrás, Jannet descobriu, após ir a uma consulta emergencial ao psicólogo, que Jonah era esquizofrênico. O garoto não parava de gritar e dizer entre os gritos estridentes que vozes sussurravam sem parar ao seu ouvido. O caso foi registrado como uma grande raridade, já que esses casos só aparecem dos quinze aos vinte anos de idade, e então acompanham o resto da vida do paciente. Um garoto de oito anos diagnosticado com esquizofrenia paranoide. Que maravilha para a ciência, que desespero para os pais.
Balançou a cabeça com veemência para expulsar aqueles pensamentos repetitivos sobre o pesadelo de seu filho. Deu o último gole em seu café e sentiu o amargo da bebida. Levantou da cadeira, pousando a xícara sobre a mesa. Pensou em acordar seu filho, pois já era tarde. Poupou-o da aula pelo estado que o encontrou naquela madrugada. Ele exalava exaustão, então foi o melhor a fazer.
Assim que virou, parando de olhar fixamente a janela acima da pia, viu que não precisaria subir as escadas. O garoto a assistia com olhos vidrados e boquiaberto, como se algo extraordinário tivesse acabado de acontecer. As olheiras eram notáveis.
"Não consegui dormir bem. De novo."
"Estou vendo, Jon. Por que não ficou na cama, então?", perguntou Jannet, com um sorriso compreensivo. "Hoje não vamos à escola."
"Me sinto mal."
Jannet engoliu em seco.
O menino estava estranho e isso era óbvio, mas não parecia ser sua aparência a peça estranha naquele quebra-cabeças. Algo dentro dele estava fora do normal.
"O que sente?"
"Eu... eu não sei.", disse ele, cabisbaixo.
O pesadelo agora era uma vaga memória na fresca cabeça de Jonah. Nenhum detalhe era claro demais para que ele pudesse sentir medo em todas as noites seguintes. Sua mãe também não comentaria, porque era melhor esquecer esse episódio.
"Bem, acho que você precisa é de um bom café da manhã, é isso que lhe falta.", Jannet estava descontraída, leve. Ou ao menos tentava estar.
. . .
O tilintar dos talheres sempre foi um alerta de que a comida estava pronta. O aroma de panquecas dominava o ar da casa. Enquanto preparava a primeira refeição do dia, Jannet percebeu o quão exausto seu marido estava a cada dia que se passava. Nem sequer conseguia dizer tchau ao sair de casa, precisava fazer tudo às pressas. E ao voltar para casa já precisava dormir novamente.
As panquecas estavam prontas. Jonah saboreou o prato com os olhos e então foi a hora de degustar. O gosto o fazia sentir os pés no chão. Tradicional e espetacular como sempre. Sua mãe nunca fizera uma só panqueca ruim e isso o assustava quando pensava sobre. Como e quando ela se tornara a mestre das panquecas? Ele achava esses pensamentos bobos demais para serem verbalizados, então se limitava a sorrisos de gratidão enquanto enchia indelicadamente a boca com aquelas maravilhas.
. . .
William Hamsen conversava com seu chefe aos berros por conta das máquinas ligadas na fábrica. Emilton Wholp era um homem corpulento, de poucos cabelos e muita lábia. Embora o Sr. Wholp tivesse William como seu funcionário há anos, sempre achava que o sangue dele nunca deixaria de ser doce. Um funcionário totalmente entregue à empresa e um chefe sanguessuga, o que poderia dar certo para Hamsen?
O diálogo girava em torno de "Isso aí, Hamsel! Continue com o trabalho." Ainda que Will fosse o funcionário mais antigo de sua fábrica, Wholp não se importava de se corrigir e sempre insistia no "Hamsel". O famoso tipo de superior que evita uma amizade verdadeira e tenta fingir se importar com o trabalho árduo de seus serventes.
William reprimia a vontade de dar um soco naquele calvo filho da puta. Reprimia por se importar demais com sua família, sabendo que emprego para um ignorante como ele era quase utopia. Então, a cada dia mais saturado de seu trabalho, vivia à base de calmantes e já não era o mesmo em sua casa. As noites não eram mais as mesmas.
Seu trabalho consumia até a última gota de suor diário, deixando apenas as forças necessárias para controlar o volante na estrada de volta até sua casa.
Nunca teve a merecida gratidão por parte de seu patrão e isso lhe deixava desgostoso. Os dias eram cheios de estresses e gritarias, construindo a insatisfação tijolo por tijolo. Tudo contribuía para Will querer abandonar a fábrica gigante em que trabalhava há sete anos e que nem ao menos sabia o que era construído ao final daquela esteira.
Ele sabia que Wholp monitorava sem a pretensão de garantir o bem-estar de seus funcionários. Emilton era aproveitador demais para isso. Aquele maldito só queria saber se todos estavam fazendo o seu serviço como deveria ser.
"Ô, William, presta atençon no que está facendo", gritou Fred Rodriguez, um mexicano recém-admitido pela empresa e que fora posto para trabalhar ao lado de Will.
William perdeu sabe lá quanto tempo olhando para a esteira, parecendo dar um descanso de pensamentos ao seu cérebro. Ficou em transe e acabou esquecendo de montar as peças, causando um caos na ala de trabalho de Fred. O bigode grande com pontas enroladas, clássico e estereótipo de mexicanos, era adotado por Rodriguez, sendo esse seu único ponto de expressão em todo o rosto. O mexicano sempre tinha em sua carranca o sobrolho franzido, então o bigode era o que dizia a respeito de seu humor: se tenso, teriam um Fred mal-humorado; se relaxado, Fred estaria bem-humorado. Agora, Fred estava indubitavelmente na primeira opção. E com razão.
Percebendo o problema que tinha causado ao colega, Will tentou ser mais rápido que os comandos do seu cérebro. Ainda sem dizer uma palavra, empertigou-se e retomou o serviço. Não encarou Fred até o fim do dia.
Ouviu o sinal de dispensa e andou apressadamente até os armários de pertences dos funcionários, o seu era o número 028, onde guardava a chave de casa, a chave do seu Ford, um maço de cigarros e uma quantia pequena em dinheiro. Só queria estar debaixo de seu próprio teto. Pôs um cigarro no canto de sua boca e puxou o isqueiro, que sempre estava em seu bolso esquerdo daquele jeans surrado.
A noite caía com um ar frio. William sabia que a viagem até sua casa duraria uma ou duas horas. Se tivesse sorte, uns quarenta minutos seriam suficientes. Então deu partida no carro e seguiu a monótona estrada.
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Vozes Alheias
HorrorJonah Hamsen, um garoto de onze anos diagnosticado com esquizofrenia paranóide, é alvo de vozes que sussurram frequentemente ao seu ouvido. William e Jannet Hamsen, pais do garoto, o tratam à base de antipsicóticos. A cada surto que enfrenta, Jonah...