A viagem

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      Já completava alguns meses, talvez anos, de chuva incessante no vilarejo de Azristet. Chuva que impedia o plantio de seus alimentos, matava todos os brotos de feijão que nasciam naquela terra antes macia e agora lamacenta. Nasciam e morriam.

O vilarejo de Azristet, sempre nublado e sem cor, nunca foi o melhor lugar do mundo para se morar. Os vizinhos, mal-educados e egoístas, queriam mais é saber do próprio umbigo. João, o morador mais sociável de lá, era sempre o que mais sofria. Embora todos os outros conhecidos em sua volta estocassem comida (pois já tinham evoluído seu meio de sobrevivência com a criação de animais que os serviam de alimento), nunca o disseram que agricultura não era mais favorável por ali. Eles não poderiam perder tempo explicando a um tolo algo que talvez nem com anos de estudo entenderia. Estavam muito ocupados com eles mesmos.

João contava os dias para o fim daquela chuva. Marcou no calendário todo o tempo que aquele dilúvio já havia desabado sem trégua no vilarejo pequeno e humilde de Azristet. Seu estoque de alimentos andava perto de esvaziar, bem perto. Ele tinha de agir.

Pôs uma bota, que era a sua única proteção contra chuva, e foi mesmo com sua roupa do corpo. A tormenta era como uma torneira esquecida aberta. Molhou todo o corpo só ao ficar um minuto sem um teto onde se proteger. Bateu à porta do vizinho mais próximo, que sequer esforçou-se para atender. Os cabelos grisalhos de João e suas roupas esfarrapadas ficaram extremamente ensopados e colados ao corpo. Ainda restavam mais seis cabanas para tentar uma batida à porta, uma reposta, quem sabe.

Uma, duas, três... a quarta foi a que mais chegou perto de uma resposta, mas ele não obteve nenhuma. O dono só afastou a cortina da janela e o observou, com uma carranca de dar medo, fazer os knocks apressados na porta de madeira frágil. A chuva não dava nem sinal de uma pausa. Não pararia mesmo.

As últimas duas tentativas também não foram diferentes. A dona da penúltima casa, parecendo ser mais sociável, deu um grito de dentro de sua cabana: "Vá para o Norte, aqui não há comida sobrando". Mentira. Ela guardava muitos quilos de carne de um boi que fora recentemente abatido por suas próprias mãos. Mas não dividiu.

Todos em Azristet moravam sozinhos. Ninguém deu ideia a João. Ele precisava mesmo de ajuda. Nenhum dos vizinhos o estendeu a mão. Então, sem saída, João teve de arriscar tudo para não morrer de fome depois que seu estoque estivesse vazio. Decidiu que viajaria para o Norte conforme a recomendação hostil de sua vizinha. Voltou para casa em suas roupas encharcadas e sentiu um alívio por ter a pequena cabana para se refugiar. Teria de abandonar o vilarejo, sua cabana e tudo o que ali estava.

"Vai dar tudo certo", pensou João.

Livrou-se daquelas roupas molhadas e pesadas, então vestiu uma de suas duas combinações de peças. Deitou na sua cama de pés tortos e caiu rapidamente no sono.

* * *

Ainda era cedo quando João acordou e começou a arrumar a mochila com os itens necessários para a viagem. Pegou as poucas frutas que lhe restavam e juntou na bagagem. Pôs o cantil de barro preso à cintura. Conferiu se estava esquecendo algo. Deixar sua casa para caminhar até um destino incerto era o único jeito de tentar sobreviver. Deixaria tudo (cama e um pequeno baú vazio) em casa, pois não poderia levar consigo, é claro.

Um arrependimento incontrolável lhe invadiu o coração ao tocar o primeiro pé fora de casa com o intuito de nunca mais voltar. Era ir sem olhar para trás. Tinha de deixar sua história para trás e isso abria a porta para a tristeza entrar. Tentaria não chorar.

"Histórias não são escritas em vão, João." Eu o diria, caso estivesse em sua companhia naquele momento. Em certos momentos a renúncia é necessária. Você pode perder o cabo-de-guerra, mas é melhor escolher soltar a corda a sofrer com as dores do jogo.

A TransiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora