Um Quarto de Hospital

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Dionísio caminhava pela Rua das Marrecas, no Centro do Rio, após lauta refeição sem balança com direito a dois pedaços de carne. Gabava-se de sua esperteza aos dois amigos “otários” por ter realizado a proeza de esconder um terceiro pedaço do animal abatido por baixo do arroz e do feijão, locupletando seu estômago com a proteína contrabandeada. Caminhava como um pêndulo glutão, balançando num ritmo sonolento de leste a oeste enquanto voltava para o trabalho, estabelecido há mais de oito anos na Rua Evaristo da Veiga, sem nunca ter se dado conta de que este se tratava de uma pessoa há muito morta, esquecida por todos e por qualquer um, inclusive Dionísio, que jamais se alertara que aquele nome já fora envolvido por carne e osso e que contava uma história, com uma importância suficientemente reverenciada para nomear aquele pequeno trecho de via pública.

            Na rua honrada ao finado político está localizado o quartel-general da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que de imponente possui tão somente o título, pois decai com o tempo na mesma medida que a pele alva de uma idosa descuidada nessa terra ensolarada. Pois bem, repentinamente, todos os pensamentos, próprios e alheios, cessam em uníssono com os estampidos que são ouvidos de dentro do forte enrugado, levando os três amigos a erguerem as mãos às têmporas, dando aquela semiagachada inútil para salvar a própria vida e que apenas registra o susto e o medo. Em alta velocidade, arranca uma viatura policial atirando para dentro do recinto militar, seguida de destemidos e irresponsáveis fardados que contra-atiravam os insultos de fogo.

            Dionísio assistia com uma expressão de maravilhado e assustado, ou seja, completamente abestalhado e embasbacado, não necessariamente nesta ordem, diante da situação inusitada, enquanto os companheiros se espremiam no muro, permanecendo aglutinados atrás do bem alimentado companheiro. Sentiu um impacto no peito como um murro de pugilista, embora nunca tenha entrado num ringue de boxe, e uma intensa queimação por dentro, num segundo imaginando que estava cedo ainda para a velha azia de cada dia. Notou que o céu azul do janeiro fervilhante parecia cair em sua direção. Estava de costas na calçada imunda, de olhos fortemente cerrados pelo pavor da queda do firmamento, quando ouviu seu nome gritado por Dantas, um dos otários das duas carnes. Não entendeu o alarme até reconhecer novamente o ardor inicial e a mancha rubra tomando conta da camisa de linho branca nova. Ardózia iria matá-lo, foi o que pôde pensar antes de tudo escurecer.

            Acordou no hospital, sem que houvesse vislumbrado túneis de luzes para encaminhá-lo ao divino, nem sombras vorazes para arrastá-lo ao sofrimento eterno. Menos ainda teve a oportunidade de ver-se de cima ou de tentar retornar ao corpo abandonado. Simplesmente escureceu e clareou, de maneira idêntica ao fenômeno que ocorria em frente à televisão nas quartas-feiras à noite durante os primeiros quinze minutos da transmissão do futebol: de repente tudo se tornava uma manhã de quinta, como aquela, aliás.

            Estava enfaixado do tórax até o ombro, no dia seguinte, a tão esperada sexta, com um estreito tubinho penetrando sua pele nem morena nem branca, estirado num leito cor de azul-sem-graça com branco-insosso, que combinava perfeitamente com a roupagem e os rostos carentes de vida das enfermeiras. Soube o que acontecera pela voz monocórdia e lúgubre de Maria da Anunciação, que cumpria seu turno com a mesma emoção de um ponteiro de relógio atrasado. O tiro que o atingiu havia sido desviado do coração pela aliança de ouro que carregava protegida no bolso da camisa alva impecável. Agradeceu a Deus, embora não tenha vindo ter com ele durante seu desfalecimento, e lembrou-se de Ardózia, dos trinta e um anos juntos, dos dois filhos já crescidos e dos falecidos pais, que também não deram as caras quando apagou.

            Ardózia entrou de mansinho, como era seu jeito, mas mal conseguiu se aproximar da cama, quando dois repórteres invadiram o recinto com microfone e gravador em riste, perguntando simultaneamente questões distintas, que cegaram o entendimento de Dionísio com muito mais eficiência que os flashes de paparazzis sobre as estrelas de cinema. O paciente sem paciência pediu calma aos dois, totalmente surpreso e meio contente, no exato momento que uma câmera de TV e um fotógrafo arrastaram a porta, ecoando o estalo dela quando se chocou contra a parede por todo o quarto, forçando a mola que a mantinha fechada.

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⏰ Última atualização: Aug 08, 2014 ⏰

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