Borboleta

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Lectizia estacionou o fusca preto frente à casa de madeira rústica.

Era uma tarde escura. O vento soprava forte nas árvores que rodeavam o lugar, os galhos se vergavam e um assovio fino anunciava a chegada de uma chuva torrencial.

Ela suspirou enquanto admirava as folhas secas que voavam rumo ao céu repleto de pesadas nuvens cor de chumbo.

Desceu do carro e pegou uma mochila com seu equipamento de trabalho. Uma câmera fotográfica potente e estojos de maquiagem.

Se envaidecia sempre que as famílias elogiavam sua destreza na profissão. Sabia bem como fazer com que a última visão fosse de serenidade, quase os fazia crer que o morto ainda respirava.

Este era seu trabalho: maquiar cadáveres.

E de seu trabalho nasceu a grande paixão em fotografar os mortos. Achava os cadáveres fascinantes. Belos. Excitantes.

Andou até a porta e destrancou. Já era quase noite.

Como sempre, o interior da casa estava escuro, e continuaria escuro pois quando bateu a mão no interruptor a lâmpada não acendeu.

Suspirou.

- Sinto muito, meu amor.

Sua voz ecoou pelo silêncio absoluto dos cômodos.

Ligou a lanterna do celular e entrou na sala. A casa não era grande. A madeira do piso rangia a cada passo, mas isso não a incomodava.

Lectizia entrou na cozinha e pegou algumas velas de trinta centímetros, uma garrafa de vinho, duas taças e uma caixa de fósforos. Colocou tudo em uma pequena cesta de palha e depois olhou para a cozinha à sua volta apenas para constatar que estava um pouco bagunçada.

Ignorou o desleixo e se  dirigiu à sala com a cesta na mão. A madeira rangendo sob seus pés, a respiração impaciente e o som de um trovão violento.

Colocou as velas em um semi círculo no chão, acendeu todas,  abriu a garrafa de vinho e encheu ambas as taças.

Circulou pela sala admirando cada uma das fotos dos cadáveres que tinha arrumado para o último rito. Já tinha três das paredes cobertas pelas fotos, do chão ao teto. Todos os cadáveres estavam bem maquiados e nus.

Lectizia passou a ponta dos dedos sobre a imagem de um seio baleado, suspirou após sorver um gole do vinho e lambeu o papel, excitada com a imagem.

Soltou uma risada satisfeita antes de se virar e andar até sua amada.

A segunda taça estava vazia e pingos vermelhos enfeitavam o chão.

Sentou-se no piso e admirou a tela encostada na parede. A beldade da tela parecia fitá-la em retribuição ao calor de seu olhar.

- Eu te amo. - Sussurrou.

Observou os olhos de água, translúcidos de desejo, a pele macia, o abdome pecaminoso... e o véu. Quis tirar o véu. Quis ser uma das borboletas pousadas sobre a pele jovem de sua amada, eternizada sobre ela.

Podia ouvir a voz doce que a chamava, lhe fazendo promessas.

Lectizia tirou a blusa, o sutiã, a calça e a calcinha de maneira sensual.

Deitou a tela no chão para que pudesse realizar o desejo daquela que a chamava.

Beijou o lábio macio da obra enquanto colocava uma mão sobre a mão da imagem que tapava o proprio seio. Acariciou a pele gelada enquanto encostava o proprio mamilo sobre ela. Podia sentir a maciez.

Um trovão soou alto. O fogo das velas tremeu e apagou, mas a tela ainda iluminava o lugar e o corpo que se esfregava sobre si.

Gemidos de prazer ecoavam pelo cômodo.

As borboletas voaram da tela para a escuridão da sala com um zunido ensurdecedor, mas Lectizia não se importava. Não percebia. Apenas se esfregava sobre sua amada. Suando de paixão.

Sangue minou das laterais da moldura. Uma língua comprida saiu da tela e acariciou o seio de Lectizia. Duas mãos com a carne putrefata agarraram os braços da moça enquanto ela gemia em êxtase. A cabeça coberta pelo véu abriu a boca cheia de vermes, carne podre e dentes afiados, e riu enquanto devolvia as carícias de Lectizia. Enquanto esfregava o corpo podre na carne fresca sobre si. Com as unhas enegrecidas, começou a arrancar a pele da mulher, lambendo cada gota de sangue que caía.

Lectizia gritou de dor e de excitação, se entregando à criatura que lhe enfiou os dedos nos olhos, para em seguida arrancá-los e comê-los.

Hoje, no Jornal Nacional: Lectizia Ribeiro foi encontrada em uma casa abandonada localizada em meio à uma mata fechada. A família procurou a filha por meses após sua fuga da clínica de recuperação na qual estava internada. Segundo fontes, Lectizia foi internada por desenvolver uma estranha obsessão por um quadro, chegando a admirá-lo por horas e até mesmo a tentar ter relações sexuais com a tela.

A casa de Lectizia se encontrava em estado decadente, havia sinais de rituais de invocação no chão da sala onde o corpo foi encontrado sem pele, cabelo e olhos. O cadáver da moça, já putrefato, parecia sorrir. A parede estava coberta por uma coleção de fotos de cadáveres. O único bem encontrado intacto foi uma estranha tela na parede, cópia de uma obra da artista Laura Makabresku. Especialistas afirmam que a obra possui uma borboleta a mais se comparada à original.

O quadro foi leiloado.

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