Sinopse

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O texto de Clarice Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as imagens voltam-se para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e situações da vida diária, com freqüência numa voltagem de intenso lirismo. Mas que não se engane o leitor. Em poucas linhas será posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano mais costumeiro, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres de classe média ou mesmo o de seres marginais. Desse modo, o leitor defronta-se com a experiência de Laura com as rosas e o impacto de Ana ao ver o cego no Jardim Botânico. Pequenos detalhes do cotidiano deflagram o entrechoque de mundos e fronteiras, que se tornam fluidos e erradios como o que é dado ao leitor a compreender acerca da relação de Ana, seu fogão e seus filhos, ou das peregrinações de uma galinha no domingo de uma família com fome, ou do assalto noturno de misteriosos mascarados num jardim de São Cristóvão. E, como se pouco a pouco se desnudasse uma estratégia, o cotidiano dos personagens de Laços de família, cuja primeira edição data de 1960, vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o dia-a-dia parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer. 

Nesta coletânea de contos, as personagens - sejam adultos ou adolescentes - debatem-se nas cadeias de violência latente que podem emanar do círculo doméstico. Homens ou mulheres, os laços que os unem são, em sua maioria, elos familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento.

Clarice fixa nesta obra uma camada específica da sensibilidade pequeno-burguesa figurada na tensão com as representações do poder, inconscientemente internalizadas e tornadas institucionais. Como no texto de quem escreve por lampejos, e sem a imediatez de uma literatura de compromisso social direto, tudo isso ali está posto com a sutileza do artífice que afirma e nega, oferecendo ao leitor um traço de machadiana obliqüidade na forma de escolher e registrar os laços que acolhem e acossam seus personagens.

LAÇOS DE FAMÍLIA - Clarice LispectorWhere stories live. Discover now