Começos de uma Fortuna

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Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar. E que mais

se assemelham à idéia que fazemos do tempo.

A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada

entrava do jardim, como se qualquer transbordamento fosse uma quebra

de harmonia. Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de

jantar e sobrevoavam o açucareiro. A essa hora, Tijuca não havia

despertado de todo. "Se eu tivesse dinheiro..." pensava Artur, e um desejo

de entesourar, de possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar

desprendido e contemplativo.

— Não sou um jogador.

— Deixe de tolices, respondeu a mãe. Não recomece com histórias

de dinheiro.

Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa

premente que terminasse em soluções. Um pouco da mortificação do

jantar da véspera sobre mesadas, com o pai misturando autoridade e

compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios básicos — um

pouco da mortificação da véspera pedia, no entanto, prosseguimento. Só

que era inútil procurar em si a urgência de ontem. Cada noite o sono

parecia responder a todas as suas necessidades. E de manhã, ao contrário

dos adultos que acordam escuros e barbados, ele despertava cada vez

mais imberbe. Despenteado, mas diferente da desordem do pai, a quem

parecia terem acontecido coisas durante a noite. Também sua mãe saía do

quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora, como se a amargura do sono

tivesse lhe dado satisfação. Até tomarem café todos estavam irritados ou

pensativos, inclusive a empregada. Não era esse o momento de pedir

coisas. Mas para ele era uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios

de manhã: cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os

dias anteriores. Tanto o sono cortava suas amarras, todas as noites.

— Não sou um jogador nem um gastador.

— Artur, disse a mãe irritadíssima, já me bastam as minhas

preocupações!

— Que preocupações? perguntou ele com interesse. A mãe olhou-o

seca como a um estranho. No entanto ele era muito mais parente que seu

pai, que, por assim dizer, entrara na família. Apertou os lábios.

— Todo o mundo tem preocupações, meu filho, corrigiu-se ela

entrando então em nova modalidade de relações, entre maternal e

educadora.

E daí em diante sua mãe assumira o dia. Dissipara-se a espécie de

individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela. Desde

sempre, ou aceitavam-no ou reduziam-no a ser ele mesmo. Em pequeno

LAÇOS DE FAMÍLIA - Clarice LispectorWhere stories live. Discover now