Antes de tudo, que fique bem claro: culpa, eu não tenho. Tudo o que fiz, fiz em benefício da minha mãe, mulher cuja mente encarquilhada e os trejeitos senis já pouco permitiam vida; só uma sobrevida teimosa, de não cortar relações com a existência — mesmo quando essa já não tinha mais elementos para lhe oferecer. Aliás, curioso que, quando tinha a possibilidade, quando tinha juventude, desperdiçou. Desperdiçou como uma jabuticaba que não sabe nem o que é ser bicada e nem colhida, não fazendo mais do que esperar murchar, até assumir aquele estado imprestável, mas que não solta o galho. Sempre rejeitou as coisas da vida, (des)apreciava o prazer como quem desaprecia picada de viúva-negra — tanto o negou, acabou ficando com essa cara enviuvada.
Enfim, culpa, não tenho. O que tenho é temor. Um arrepio que me passa a língua fria dos pés à cabeça só de pensar: posso terminar que nem ela. Afinal, estou aqui, dedicando uma parte insubstituível de minha existência, ainda promissora, a uma mulher que mal consegue trocar impressões com a realidade ao seu redor. Estou aqui... e isso não é de hoje. É possível, inclusive, que a minha vida nunca tenha sido outra. Não sei. Acho que a demência de minha mãe tem uma particularidade contagiosa. Ou talvez seja essa empregada. (vai saber.) Essa tal de Isadora. Ela fica falando que nós sempre estivemos aqui, que a vida nunca foi diferente. É loucura, claro, mas...
Aliás, de todos os empregados, não tem um que se salve. São todos ruins da cabeça. E o mais grave: eles resumem minhas interações humana — não posso pôr na conta minha mãe, uma velha que só espera a decomposição. Eu os castigo, Deus que me perdoe, mas não tenho outra escolha. Fazem tanto por merecer o demérito. Não bastasse incompetência... Ainda por cima, são loucos. Quem os contratou? Eu não sei. Francamente, não sei de mais nada. Talvez tenha sido algum dos meus irmãos. Não consigo me lembrar direito.
Pior ainda é tentar entender como viemos parar aqui, no meio do nada. Tenho quase certeza de que se trata de uma ilha da nossa família. Ah, sim, temos dinheiro. Até onde minha memória é capaz de chegar, meu pai, já falecido, era um empresário que sempre estivera em grande consonância com o êxito — enquanto empresário, porque enquanto pai (sequer me lembro do seu rosto)... Há quem diga (há, mas quem?) que a fortuna não veio de nenhum mérito administrativo em si, mas de um pacto com um demônio. Sim, ainda me resta lucidez o bastante, nesta jarra de loucura que se tornou o meu cérebro, para avaliar tal suposição como fantasiosa. Mas também há algo que cutuca minha cabeça, que parece sussurrar repetidamente à beira do meu ouvido: é verdade, a mais pura verdade. E é plausível — dentro da falta de plausibilidade inevitável — que seja verdade. Pois então eu entenderia minha atual circunstância: pagamento de dívidas hereditariamente — por conta do pacto.
Vejam — vejam! —, estou mesmo perdendo o juízo. É culpa da Isadora, maldita seja. Queria poder mandá-la embora, mas como? Ameaçar, eu ameaço. Mas como? Estamos aqui, todos presos nessa ilha. Aqui, não há meios de comunicação. Aqui, há é muita solidão — uma presença oca e autoritária. Vá lá, que, uma vez por semana, uma barca nos traz suprimentos; traz o que precisamos — sem que peçamos. Mas eu nunca a vi. Juro por Deus, nem uma maldita vez. É um enigma. Quem costuma recebê-la é a Maria Clara. Nela, também não se pode confiar. Não tem as mesmas deduções esquizoides de Isadora, mas é uma prostituta frustrada. Deus que me perdoe, mas é verdade. Não duvido nada que fique de caso com o barqueiro (e que por isso se encontrem às escondidas). Aliás, não só não duvido, como suspeito seriamente. Ele deve aportar lá longe, onde tem uma floresta. E Maria Clara sequer deve se preocupar em trazer, com ele e seus homens, os mantimentos através da trilha na mata... Pelo contrário: meio revivida por aquele cansaço energético que se costuma ter depois do sexo. Não que ela precise de homens para se satisfazer. E para ser sincera, por mais que pareça uma perversidade gratuita da minha parte, creio que ela não precise sequer de outra pessoa. Tem umas histórias; essas coisas que se escuta sem querer, que a audição absorve por acaso e que nos inteira sobre os acontecimentos ao mesmo tempo que nos isenta de uma participação ativa quanto à fofoca. Não que importe, porque, ainda que eu quisesse despedi-la, ela também tem sua presença garantida neste nosso recanto fantasmagórico.
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No cosmo, assim como no coração
Tiểu Thuyết ChungAtenção! Importante: Aqui estarão 2 dos 4 contos que compõem a obra No cosmo, assim como no coração. Para quem quiser ler o livro na íntegra, em breve estarei adicionando o link! <3 Aqui vão as sinopses de cada conto: Naquela ilha cheia de sol...