No cosmo, assim como no coração

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Estevão era seu irmão.

Um fato que não poderia recusar, não novamente. Quando o fez, ela acabou por desencadear uma série de eventos, todos hostis e bagunçados. Lembrava-se vagamente, pelas beiradas da memória estragada devido à dor, que em tais ocasiões uma série de gargantas ferozes disparava contra ela, e uma sequência de enfermeiros, de médicos, de gente estranha, disso e daquilo, todos opositores, tratavam-na como um exemplar de espécie selvagem. Com olhares repetidos e conclusões mecânicas, determinavam o que devia ser feito dela. Tudo porque ela dissera que Estevão não era seu irmão. Se bem que tal pensamento tenha determinado outras ações. Uma delas permaneceria para sempre deitada sobre o rosto de Estevão, seu irmão. Como uma prova irredutível de sua loucura, lá estava uma cicatriz, uma faixa de dor morta, um remendo de pele equivocado que brotava de sua têmpora, acompanha os relevos da bochecha e terminava ao lado do queixo.

Culpar as vozes nunca contribuiu para sua situação. Pobre Carmem. Ela jamais o faria se não fosse pelas vozes. Culpá-las não era estratégia, pelo contrário, era assumir o papel de réu confesso. Era assumir a medicação que vinha em consequência, os sedativos, os antidepressivos, antipsicóticos, era assumir essa vida que tinha mais química do que alma, essa alma que vinha com um defeito muito bem catalogado.

Mas o fato mais terrível era assumir a claustrofobia do porão. Um mal apenas aparente, segundo Estevão, um mal "para a sua proteção". Não é que ele tivesse medo do estrabismo psicótico de Carmem ou de uma segunda cicatriz, não, essa seria uma justificativa terrível. O que acontecia era que, por aqueles anos, o mundo vinha se mostrando um ambiente um pouco mais cruel do que de costume. Muita coisa se passava lá fora. Estevão tinha seus cuidados com Carmem. Era o irmão mais velho, cujo corpo permitia uma saúde gratuita, um rapaz de vinte e tantos anos, adepto da mais irrepreensível normalidade. E como seus pais haviam morrido há algum tempo - vítimas dessa terrível perversidade que percorria o mundo feito uma onda de gafanhotos -, tomou para si a inteira responsabilidade sobre a irmã. E algo relativo a essa responsabilidade o pedia para que a trancasse no porão. Fazer o quê?, ele era, sem dúvida alguma, responsável.

Carmem, apesar de maltratada pela vida, tinha uma plasticidade facial, um frescor de pele, toda uma beleza, uma organização estética, que não se deixava subjugar pelas condições adversas. Trata-se de uma observação importante, pois tal qualidade tinha uso. Mesmo reclusa, ela exercia uma influência notável em um determinado setor, a chamada Juventude de Pozzi. Pozzi era o presidente; eleito doze anos atrás, acabou por coibir as eleições diretas lá pelo quinto ano do seu mandato. Ainda assim, dispensava o título de ditador, preferindo ser interpretado como um salvador que, por humildade, aceitava ser chamado presidente. Carmem não tinha nada a ver com as predileções políticas de seu presidente, mas, ainda assim, exercia um papel na sua consolidação. Servia à propaganda de Pozzi, sem que entedesse. Era seu irmão, Estevão, que tomava conta disso. E ele tinha trabalho para manter o carisma sublimado pela beleza de sua irmã. Ela não se importava em agredir a si mesma durante uma crise, tinha vezes que aparecia com manchas roxas ou cortes, pedaços faltando de cabelo... coisa terrível. Certa vez, cismou de jejuar, pois, segundo ela, o jejum a curaria. Em outra ocasião, convenceu-se de que havia parasitas agarrados na sua pele, absorvendo sua alma; ela tentou tirá-los aos beliscões, até começar a formar graves hematomas. Estevão se viu obrigado a intervir.

Ele também a fazia decorar roteiros. Estava tudo ali: sorrir ao falar sobre as condições e os princípios transmitidos nos acampamentos da Juventude de Pozzi; demonizar o rosto quando falar sobre os nossos inimigos.

A terceira guerra mundial estourara tinha um ano. O Brasil, devidamente engajado na frente ocidental, tinha um papel ativo, mas coadjuvante no andamento das coisas; manifestantes resumiam as atitudes do Brasil como bajuladoras de seus aliados. Eles protestavam, pediam a saída da guerra, a volta das eleições diretas; dali a pouco sumiam. Seja como for, mesmo Carmem, com o pouco de mundo que tinha e a noção muito particular que dava às coisas, podia perceber que algo de errado se passava no mundo. Tudo era cada vez mais silencioso, e quando deixava de ser, só sabia berrar: era uma explosão aqui, uma sirene apressada ali. Até mesmo o silêncio gritava, apenas que usava uma frequência supersônica para tal, uma aflição mutilada.

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⏰ Last updated: Oct 31, 2018 ⏰

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