Escuridão

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Eu abri meus olhos, mas continuava escuro. Estava deitado de barriga para cima. Lembro-me de apalpar o chão procurando alguma coisa e, com isso, acabei sentindo cacos de vidro do meu lado direito. Minhas mãos percorreram, então, pelo lado esquerdo e a ansiedade de me deparar com algo esclarecedor me fez virar o corpo até ficar de bruços e rastejar por aquele chão gelado e molhado.

Percorri um espaço pequeno até sentir algo que parecia ser uma parede. Ela também era gelada, mas parecia ser de metal. Dei pequenas batidas receosas e o som era semelhante a quando batemos em um espelho velho. 

Empurrei com as mãos. Nada. Continuou imóvel pelo o que senti, então a dedução me fez pensar que aquilo poderia mesmo ser uma parede. "Quem sabe nela eu não encontre um jeito de acender uma luz?", pensei.

Arrastei-me de modo a ficar sentado de costas contra a parede metalizada. Decidi colocar-me sobre os pés, mas percebi que só havia um quando tentei. Quase caí. Sentei novamente e apalpei minhas pernas, a esquerda estava íntegra, enquanto que a direita parava no joelho. Eu não me lembrava se eu já era assim antes daquele lugar obscuro ou se aquilo era recente, o que eu sabia é que, felizmente, eu não sentia nenhuma dor na região. Bom sinal.

Tentei sentir algum cheiro do lugar que fosse semelhante, mas algo me dizia que meu nariz não era bom o suficiente para isso e, depois de fungar três ou quatro vezes, tive a comprovação do meu instinto. Eu não sentia nada além de uma dificuldade anormal para respirar.

- Tem alguém aí!? - Gritei. - Me ajudem! - As palavras ricocheteavam no lugar. Não sei se eram ecos ou se eram somente a minha mente perturbada.

- Fala baixinho. Ele vai te ouvir. - Alguém cochichou no meu ouvido.

- Aaaaaaah! - Tampou minha boca.

- Shhhhhhh... Ele vai te ouvir... - Tirei a mão minúscula e congelante do meu rosto. Me dá calafrios só de lembrar.

- Quê!? Quem é você!? Onde eu tô!?

- Shhhhhh... Ele tá pertinho. - A voz estremeceu ao falar. - Depois não diga que eu não avisei. - Senti uma movimentação e depois ouvi passos rápidos indo para longe de mim.

Passaram-se alguns minutos até que eu ouvi um assobio distante, parecia uma canção antiga e conhecida que se aproximava a medida que minha respiração ficava mais forte.

- Eu sinto seu medo daqui, criança. - Tampei meu nariz. - Uma hora ou outra eu vou te achar também...

Fiquei imóvel por muito tempo. Acho que por quase uma hora. O lugar ficou tão silencioso que eu conseguia ouvir meu coração acelerado. Eu estava preso ao medo de me arriscar tentando sair dali ou continuar lá, sentado, esperando ele vir até mim.

Eu não podia mais me apoiar na parede, ela era barulhenta demais. Poderia chamar a atenção das coisas que estavam lá comigo e eu não fazia ideia do quê ou quem eram...

Tudo era apavorante ao extremo, todavia o mais apavorante era não lembrar de nada sobre mim. Eu só tinha uma lembrança de uma senhora sorrindo meio banguela. Uma avó, quem sabe, ou, talvez, algo que vi na TV e minha cabeça defeituosa não quis apagar de teimosia. Era uma droga não lembrar, não saber. Eu sentia a minha força esvaindo-se, e era meu temor pela vida que a consumia.

Eu me deitei novamente de bruços e comecei a rastejar para o lugar onde eu estava quando acordei. O chão ainda estava gelado, mas estava menos molhado. Apesar disso, eu sentia cada vez mais frio, pois tudo o que eu sentia naquele lugar era gelado e estava ficando cada vez mais insuportável.

Quando, finalmente, minhas mãos sentiram os cacos de vidro de novo, parei por alguns segundos. Eu estava na dúvida entre continuar e, possivelmente, cortar meus braços descobertos ou ficar no mesmo lugar esperando.

Deitei-me para cima mais uma vez para pensar. Minha barriga começou a dar sinal de vida e roncou tão alto que todos naquele lugar devem ter ouvido. Já deveria ter passado três horas que eu acordei e eu não havia comido nada. "Um ser humano sobrevive a sete dias sem comer", lembrei dessa frase que eu, presumivelmente, devo ter visto em algum documentário. Eu estava contando que eu não faria o teste para comprovar. Em meio aos devaneios nem me dei conta quando aquela voz começou a cantarolar...

- Meu amor, não deveria estar aqui... Meu amor, deveria estar comigo... - Ela pausou. - Você se esqueceu de mim? - Estava mais perto. - Você não pode se esquecer do que me prometeu! - Meu corpo se enrijeceu quando percebeu que ela estava de frente a mim. - Calma, eu não quero o seu mal. Sou só eu, lembra? - Colocou suas mãos em meu rosto e beijou minha testa. - Eu estou com saudades. - Acariciou meu nariz. - Sai daqui enquanto ainda pode me ver, seu bobo.

Ser chamado de "seu bobo" foi estranhamente familiar e, ainda que aquilo arrepiasse até a perna que eu não possuía, me deu esperança por algum motivo. Eu tinha que sair dali.

Esforcei-me ao máximo e coloquei-me de pé. Fui pulando em direção aos cacos de vidro, torcendo para que não houvesse nenhum buraco no chão.

- Você ainda tá aqui, é? - A primeira voz retornou. - Ele tá quase te achando... - Ainda em cochichos.

A cada pulo que eu dava, eu acertava os cacos com o meu pé e eles se repartiam mais. Eu tentava não fazer barulho, mas não tinha como evitar. Continuei indo para frente e a medida que eu pulava, eu ouvia passos atrás de mim cada vez mais pesados e rápidos.

- Você é presa fácil. - Ele gargalhou e senti a respiração em minha nuca.

Tropecei para frente quando me deparei com um degrau. Era uma escada que parecia ser de madeira. Como caí de frente aproveitei para me rastejar para cima mas, ao mesmo tempo, eu senti as mãos dele segurando minha perna solitária.

- Na-na-ni-na-não. Você vem comigo. - Ele me puxou para baixo. - Não vou deixar você ir com ela. -Ele começou a pressionar meu peito com força e eu não conseguia me soltar dele. Eu tentava me desprender, mas ele era bem mais forte que eu.

Uma forte luz apareceu de cima da escada e, mesmo com os olhos irritados pela claridade, eu pude ver uma silhueta feminina lá. Ela me esperou por alguns segundos, depois me deu "tchau" e fechou a porta. Eu tive certeza ali que era meu fim.

Mas não era.

Quando ela fechou a porta, o escuro deu lugar à uma cozinha de cerâmica antiga e a um menino franzino abraçado a mim, chorando. Ele acabara de me trazer à vida novamente.

- Por que você fez isso? Eu só tenho você! Eu já perdi a vovó, não posso perder você também... - Ele falava em meio aos soluços.

- Isaac, meu neto... Eu te amo muito. Me perdoa. - Eu comecei a chorar. - Mas... é que... eu só queria ficar com ela. Eu... estava... morrendo de saudades... Me perdoa... Me perdoa... Eu te amo muito... - Antes que ele pudesse me responder, a ambulância chegou.

Da maca, pude ver meu menino querido que mesmo sem uma das pernas teve forças pra me tirar de dentro do fogão e me trazer de volta. Por ele e só por ele, eu vou aguentar nem que seja mais cem anos longe de ti, Francisca, minha amada. E, apesar da dor que me consome, prometo novamente cuidar do maior presente que nossa filha nos deu. Amo você.

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