Ouço um toque macabro ao longe e paro. A sala é grande, mas o som é maior ainda, como se ele a envolvesse de uma ponta a outra. É o maldito vizinho de novo, penso. Mas que vizinho?
Eu caminhei de volta ao pé da escada, olhei o espelho novamente. Ele ainda estava lá. Digo, o reflexo.
Bom, deixa eu recapitular. Há dois meses esse reflexo apareceu no espelho. Tudo que ele faz é levantar aquela faca para mim, acho estranho, mas prefiro não questionar o espelho do meu avô, acho que era importante para ele.
Eu caminhei pelo canto e subi até meu quarto tentando não chamar sua atenção, era fácil, já que ele parecia sempre olhar para baixo, como se houvesse algo no chão.
As escadas eram largas e sempre pareciam infinitas para mim, como se eu entrasse em algum tipo de transe enquanto subo e só saísse após uns 10 minutos. Eu fiz o teste, coloquei um cronometro, mas pelo visto é só impressão minha mesmo. Talvez essa casa tenha segredos demais, ou talvez eu esteja ficando louco, mas acho que não tenho para onde ir mesmo.
Lá encima eu encontro meu quarto, me deparei com ele logo de cara, como se ficasse no início do corredor. Mas não ficava, eu sabia disso, estava esquecendo de alguma coisa. Eu peguei minha câmera e meu bloco de notas, era mais fácil de viver quando tinha os dois por perto. Um me ajudava a pensar, outro me ajudava a ver, não sei qual dos dois era mais crucial.
Naquele dia eu saí de casa e caminhei pela calçada. Já que ninguém queria meus serviços, então eu mesmo podia querer, talvez até fosse melhor mesmo, afinal eu era um ótimo cliente.
Tirei fotos de um casal na praça. Eles eram estranhos e mesmo assim bonitos, algo que me fez chorar. Talvez eu nunca fosse encontrar algo assim de novo. Desde que Jane morreu eu só consigo pensar em estar sozinho, mas a verdade é que eu me acho muito melhor com outra pessoa do lado. Mas ela era a única coisa preciosa da qual eu não me cansava de tirar fotos e não sei se posso encontrar outro alguém daquele jeito.
Eu visitei minha tia novamente, ela continuava apática. Tinha aqueles olhos profundos que olhavam para mim de um jeito sincero. Acho que ela nunca gostou muito de mim, mas eu gostava dela, então eu a visitava.
"A senhora precisa de alguma coisa?" Perguntei.
"De paz, menino." Foi a resposta, e eu sentei de seu lado, me achando "paz"
O dia havia sido mais do mesmo. Eu corrigi meus próprios erros do bloco de notas. "Tirar o lixo," já havia feito isso e, no entanto, continuava aparecendo em meu bloco. Acho que eu estava esquecendo de alguma coisa, de novo.
O sol nasceu outra vez, senti a dor percorrer minha boca. Dormi errado na minha cama quebrada. Minha mãe dizia que eu ia acabar me matando, mas por enquanto eu até que estava indo bem.
Lembrei que eu tinha um gato. Não. Eu mencionei que tinha gato? Eu tenho. Difícil lembrar, ele é meio apagado. Eu coloquei água e comida, de novo. Ele miou e comeu satisfeito.
Eu nunca tive nada contra bichos, sempre fui uma pessoa muito descontraída com relação a eles, mas hoje o gato me deu nos nervos, decidi que eu queria um novo. Talvez dois gatos sejam mais interessantes que só um.
Desci para tomar café. A cafeteira fez um trabalho rápido, como sempre, mas eu nunca gostei de café. Eu bebia mais convenção, algo que minha mãe havia implantado em mim. Era bom, afinal eu tinha que me manter acordado, mas o gosto era horrível, principalmente o que eu havia feito hoje. Tomei duas xícaras e fiz mais caretas do que eu normal.
A casa começava a parecer mais vazia ainda e me senti mais só. Olhei pelo canto da janela, de onde eu podia ver o espelho. Ele era grande e largo, começava diretamente depois da escada, nunca fiz ideia do porquê alguém ia querer um espelho logo após a escada.
Logo me veio a ideia. Pelo menos no espelho tem o reflexo. Talvez com um pouco de tempo possamos nos entender. Não é? Digo, eu sempre tive ideias ótimas, talvez seja essa uma delas.
Eu caminhei até lá e ele apareceu de novo. Era lindo, eu diria. Muito parecido comigo, mas diferente em um bocado de coisas, a começar pelo olhar. Ele tinha um olhar de peixe morto. Fora o fato de segurar uma faca, nunca entendi isso.
"Oi!" Eu falei.
"Oi!" Ele disse, quase junto comigo.
"Tudo bem?" Perguntei.
"Só quando eu não apareço. Pode sair um pouco da frente?"
"A gente podia tentar ser amigo." Falei, abrindo um sorriso.
"Já tentamos isso e você estragou tudo."
Cocei a cabeça, novamente parecia que eu estava esquecendo de alguma coisa.
"Mas eu nunca falei com você."
"Exatamente!"
Eu subi as escadas novamente, peguei meu bloco de notas e minha câmera. Tive uma ideia brilhante.
Ao descer, agarrei o reflexo pela mão e tirei fotos com ele. Selfies de todos os jeitos, eu diria. Talvez postar fosse interessante, mas por enquanto ele ainda segurava a faca e eu não queria ser investigado.
"Você acha que as fotos ficaram boas?" Perguntei.
"Não. Elas tem você." Tudo bem, estou acostumado com a mágoa.
Aquele dia foi basicamente isso. Ouvi a mesma música macabra, na sala, mas coloquei uns tampões no ouvido e esqueci. Com o tempo eu esquecia de tudo, até mesmo de mim, olhando para as imagens da Anna. Era boa coisa a Anna, tinha um belo sorriso. Não sei porque ela terminou com o namorado, talvez eu tenha esquecido isso também.
Eu bebi um pouco mais do que deveria hoje. Minha visão tá turva. Meus cabelos parecem desenhados de uma forma antinatural. Acho que eu vou...
"A gente podia ser amigo, não é?"
"É, e eu podia chamar uma ambulância, mas não vou..."
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O Reflexo
Short StoryO que quer o Reflexo? O que quero eu? As fotos ainda valem a pena ou são só o que resta dela? Eu não sei, nem sei se quero descobrir, mas quero descobrir o reflexo.