Rostos Iluminados

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A sensação era de uma tarde monótona, como estas de domingo. Sentado à mesa da sala de sua casa, Wilson encara um relógio que aos sons dos ponteiros dita o ritmo de seus pensamentos. Pensamentos que ocorriam sobre o plano alaranjado de sua visão, banhada por raios de luz do sol poente. Em dados momentos, entre frames da visão orgânica, tons de cinza surgiam como que cortes. Vislumbres estancados, flashes, acompanhados de sons entrecortados, gritos que calavam-se em estampidos, cenas em sequências ilógicas, em caos. A cada badalar do tic e do tac, uma nova sensação, um novo pesar, repetindo para si "um segundo... uma fração de segundo...", resignando-se às lembranças. Os sons do relógio começam a distanciar-se, abafados e mais vagarosos, o laranja vai se esvaindo sendo tomado completamente por tons negros, ausentes de vida: é hora de fechar os olhos.
Já tão familiar sensação, as lembranças que aprisionam pensamentos e emoções tomaram conta da vida de Wilson. A vida pode ser entendida como um conjunto de ciclos, como a fome e a sede, que nos movimentam, nos dão um sentido. Fome e sede, duas contas que devem ser pagas constantemente, várias vezes ao longo do dia e que nos obriga a levantar, andar e ir em busca de saciedade. Para Wilson, porém, o único ciclo que se renova é esse conjunto de lembranças, saciados apenas pela dor e pela culpa, intransigentes a qualquer possibilidade de arrependimento ou de indulgência. Não há mais sede, não há mais fome ou qualquer outro prazer. Há apenas lembranças e dor.
O tempo passa e Wilson vai, aos poucos, emergindo de seus pensamentos. O tic e o tac voltam a ficar mais nítidos. Wilson respira fundo, abre os olhos e retoma a visão, já fracamente alaranjada, escurecida pela noite que avança. Não se trata de um domingo e Wilson começa a notar os sons das ruas, agitadas como um dia de semana, assim como o som da TV, que estava ligada o tempo todo como um tímido esforço para espantar seus fantasmas.
Não há sinais de fome. Wilson sequer se recorda da última vez que se alimentou, mas por um impulso vindo de longe, dos hábitos de uma vida que já não mais o pertencia, pega o casaco, as chaves e sai de casa a esmo, sem rumo certo. No corredor de seu prédio, aguarda o elevador que parece mais demorado nesse dia. Olhos ao chão, sente novamente o aproximar das lembranças que o assombram, como se o preço pago momentos antes não fosse o suficiente. Feito ratos famintos que vão ocupando um armazém escuro, suas lembranças iniciam a incursão de forma tímida, um a um, explorando e roendo aquilo que sobrou de sua consciência. E como que ratos espantados pelo acender das luzes, as lembranças são afastadas pela claridade que vaza por entre as portas do elevador a se abrir.
Wilson entra no elevador, pressiona o botão do térreo e encosta-se na parede, sem dar importância ao seu reflexo produzido pelo grande espelho. Fosse tempos atrás, essa mesma cena se repetiria: o mesmo movimento de entrada no cubículo móvel, o mesmo pressionar de botão, a mesma encostada na parede, mas seus olhos estariam retidos em seu celular. Dessa vez, seu olhar volta-se ao chão, sem ponto fixo, apenas porque os olhos devem apontar a algum lugar. No passado, Wilson estaria abduzido pelas mensagens e postagens das redes sociais, reagindo às fotos de amigos ou conhecidos e mesmo de pessoas que nunca vira na vida. Hoje, Wilson, resignado, abstrai-se para longe, para o vazio, à espera de mais um novo ciclo de lembranças e dor. Desse lugar inóspito da mente, percebe os solavancos do elevador e sua respiração vagarosa, profunda. Nesse cubículo, percebe haver apenas a máquina que desce e a sua presença, insuportável.
Chegando ao térreo, abrem-se as portas ao mundo. Wilson detém-se por um momento antes de sair do elevador. A ação demanda esforço: desacostar-se da parede, impingir ritmo à marcha, olhar à frente. Ao caminhar, nota um aceno do porteiro, mas passa indiferente. Sai à rua já escurecida; pessoas caminham de forma afobada, apressada. Há alguém vindo em sua direção, mas Wilson não toma reação. Um esbarrão de ombros, sutil, mas forte o suficiente para induzir uma resposta autônoma do transeunte, que retira seu rosto de seu celular e o encara, acompanhado de um gesto de desculpas com as mãos. O esbarrão afeta Wilson como um soco no peito que faz sua respiração parar, suas narinas expandirem e seu coração acelerar. Nomes vêm à sua cabeça: Fernando, Laura, pequena Isa, família Nogueira. Seu rosto empalidece; seus olhos mantêm-se abertos, abertos e mais abertos, encarando o responsável pela colisão. Esse, confuso, encara-o por um instante, franze os cenhos e exclama enquanto se afasta, retomando seu olhar ao celular: "Um maluco... uma perda de tempo...".
Deixado na via, perdido em seus pensamentos, em suas lembranças, Wilson agita-se, olhando de um lado para o outro, dividido entre os nomes que passam por sua cabeça, "Fernando", e as pessoas que encara nas ruas. Imagens frias tingidas por sangue invadem sua visão como labaredas de fogo, "Laura", e ao lado vê apenas rostos iluminados em movimento. A falta de ar que sente com cada lembrança sombria, "pequena Isa", e pessoas a caminhar absortas em seus celulares. Todos esses rostos surgem iluminados em sua mente, encarando-o e julgando-o, todos a repetir "família Nogueira", e vê ao seu lado, os mesmos rostos, entretidos nas telas, indiferentes à sua presença.
Cambaleante, Wilson aos poucos retoma o prumo. Escora-se em uma árvore, recupera o fôlego e ensaia atravessar a avenida. Não que tenha um destino em mente, mas seu instinto de sobrevivência o impele a sair dali, do local do esbarrão, da colisão, ou de todo lugar que seu corpo ocupa, a fugir de sua existência.
Ao investir na travessia, porém, as sombras do passado ainda ocupam sua mente. Fernando, Laura, pequena Isa, família Nogueira. A cada passo que avança sobre a avenida, uma recordação: Eram apenas mensagens, algo que sempre fazia ao retornar do trabalho - Wilson avança com um passo - estávamos todos animados, discutindo o final de semana, havia brincadeiras no grupo do futebol - outro passo - uma mensagem da família, fotos do último churrasco a desenhar um pequeno sorriso em seus lábios - outro passo - a visão em movimento, borrada, que parte em velocidade da foto em família ao seu colo e ao volante e ao cruzamento, e que capta um borrão vermelho passando de relance em sua visão periférica enquanto o carro avança a todo prumo pelo cruzamento - as pernas fraquejam, um passo em falso - a imagem dos faróis em sua direção e o barulho da borracha esganiçada pelo asfalto - Wilson cai sobre seus joelhos, entregue, aos prantos - o impacto, os sons e flashes que há dias o consumiam, gritos e o rangir de metais se contorcendo, imagens trêmulas do choque, em câmera lenta, dos corpos envolvidos por ferragens, corpos partidos, corpos estendidos, corpos da família Nogueira, que vinha conduzida pelo outro veículo. As lembranças são afastadas como anteriormente, como que afugentadas momentaneamente pela claridade do mundo real. Wilson, de joelhos, olha seu corpo ganhar luz, que aumenta de intensidade de maneira acintosa. Lentamente, direciona seu olhar para o lado e identifica duas fontes luminosas, que ofendem seus olhos banhados por lágrimas. Confuso entre lembranças e realidade, limpa os olhos em um rápido movimento e identifica dois faróis que vão ao seu encontro de forma determinada, sem hesitação. Com o avançar do veículo, que consome a distância feito um animal feroz, Wilson é capaz de identificar um rosto no interior do carro. Um rosto iluminado, como os outros, sob luzes azuladas de um celular. E nos últimos segundos de suas existências, o condutor retorna sua atenção à via e os olhares por fim se cruzam, "tic!", criando uma forte conexão que dura até o momento da colisão, "tac!". Essas frações de segundo laçam seus destinos, transferindo a sina e encerrando de uma vez seus atuais ciclos de vida. Wilson, por fim, alcança a saciedade eterna de seu ciclo de dor, enquanto ao outro, esse ciclo apenas se inicia.

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⏰ Última atualização: Nov 10, 2018 ⏰

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