As Sereias Escondidas

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Olhei em volta e quanta desgraça. Nossa civilização marítima vivendo nessas águas há milhares de anos e eis que de repente esses humanos começam a jogar detritos aqui embaixo e nunca mais param de fazer isso. Eu me lembro bem, há 150 anos eles não faziam tanta sujeira por aqui. E nem tanto barulho! Como são barulhentos esses humanos e seus barcos, muitos e muitos barcos de tantos tipos diferentes. Durante um bom tempo eram só os barcos até que há algumas décadas começaram os grandes pedaços de metal que caem queimando do céu a grandes velocidades. Fazem um grande escarcéu ao atingirem a água e depois vão parar aqui no fundo do oceano. E finalmente a gota d'água: temos sido inundados por um fluxo incessante e desesperador de plástico.  Plásticos de todos os tipos, formas e tamanhos e cores que chegam por todos os rios, todos os dias e não param de chegar nunca.

Nosso povo aqui embaixo, vivendo nossa própria vida, cuidando das nossas coisas até que a gente percebeu que a nossa sobrevivência começou a ser colocada em risco. Então resolvemos contar nossa história pra ver se as novas gerações de humanos entendem e não repetem os mesmo erros das últimas três ou quatro.

Mas por onde começar a contar uma história de milhares de anos? Uma história que começa com nossos avós ancestrais, os polvos, e continua até hoje com as nossas novas gerações que operam essas naves que conseguem navegar sobre o ar e deixam os humanos tão confusos e acreditando em aliens? Ah, se eles soubessem que os aliens têm mais o que fazer! Que já vieram aqui faz tanto tempo e entenderam como essa sociedade seca ia se desenvolver e perceberam que teriam que esperar mais alguns milhares de anos para, com muita sorte, conseguirem conversar de igual ao invés de serem adorados como deuses. Por outro lado quando desceram para conhecer as vastidões do oceano eles logo entenderam que tinha vida realmente inteligente aqui embaixo e fizeram contato conosco, a civilização das sereias. E tínhamos, e temos, muita coisa pra trocar, muita coisa pra entender e depois de algumas gerações de convívio, eles foram embora de volta pras estrelas pra voltar algum dia.

Sim, nós ficamos amigas dos aliens que os antepassados de vocês acreditavam que eram deuses. Mas não nos atrevemos a tentar fazer amizade com vocês, humanos. Na verdade tentamos sim, mas faz tanto tempo e a reação de vocês foi tão ruim que a gente acabou desistindo. Eu lembro, eu estava lá. A gente aqui embaixo vive muito sabe. A gente fica nesse planetinha feito de água por muito mais tempo do que vocês e talvez por isso mesmo aprendemos rápido que aquilo que acontece com a Natureza também acontece com suas filhas e reverbera por toda a criação.

E lembro muito bem que naquela época não tinha plástico nem nada parecido. Lembro que os navios de madeira afundavam durante as batalhas quando recebiam bolas de fogo e acabavam por afundar enquanto a água invadia e ajudava a separar os pedaços até o barco finalmente naufragar. Ou quando os navios naufragavam simplesmente por descuido ou embriaguez. E quando os muito objetos de barro, de metal, potes, armas, armaduras, móveis, máquinas com engrenagens afundavam junto com os navios e eram esquecidos para sempre por vocês que penam para lembrar das coisas. E escrevem e copiam e multiplicam os escritos mas como não confiam uns nos outros logos essas imagens, escritos e arquivos não valem mais nada e a guerra de vocês continua. Guerra entre iguais, Isso é que mais deixa a nossa grande civilização do mar confusa: como podem seres tão inteligentes serem ao mesmo tempo tão estúpidos?

Então eu peguei pra mim a tarefa de contar a história do meu povo para ver se vocês conseguem finalmente entender. Daí talvez vocês percebam a importância de pararem de brigar entre vocês e resolvam se juntar para sobreviver. Porque eu não sei se já deu pra perceber, mas vocês estão destruindo o ambiente de vocês. E junto com essa destruição estão levando muitas outras espécies pro abismo também. Mas o maior problema é que os mais poderosos de vocês nem entenderam ainda que estão se destruindo. Não conseguem entender que não adianta ser rico em um mundo devastado.

Pra começar, quem somos nós? Essa história é muito longa mas saiba desde já que a nossa civlização está aqui embaixo desde antes de vocês levantarem nas patas traseiras e saírem pra conquistar o mundo todo. Vocês descobriram faz pouco tempo que os polvos, nossos parentes mais antigos, são inteligentes. Faltou só saber (e a gente nunca deixou vocês descobrirem) que uma certa espécie de polvo foi se transformando e gahou características que lembram um pouquinho vocês humanos. E fomos desenvolvendo habilidades sociais e nos multiplicamos e resolvemos nos espalhar pelos oceanos há milhares de anos.

Nós também ocupamos as praias durante muito tempo porém logo percebemos que vocês eram predadores ferozes e estavam desenvolvendo técnicas sofiticadas para nos caçar, ou melhor, pescar. Como tem muito espaço aqui embaixo no oceano a melhor solução pareceu ser apenas nos retirarmos para as profundezas e deixarmos a superfície para vocês.

Infelizmente essa escolha a longo prazo se mostrou um equívoco. Em pouco tempo vocês desenvolveram armas e técnicas muito mais sofisticadas e quase extinguiram algumas espécies de baleias de tanta voracidade que tinham. Daqui de baixo começamos a ouvir os lamentos de nossas primas e em alguns casos conseguimos chegar a tempo de ajudar e afundamos seus navios, gloriosamente. Mas na imensa maioria das vezes não conseguimos chegar a tempo. Em algumas dezenas de anos vocês quase dizimaram as cachalotes e várias outras espécies de peixes e então nós finalmente voltamos a nos preocupar com vocês.

Mas quando tudo parecia ruim ficou ainda pior. Porque vocês inventaram um material que poderia ser maravilhoso se não fosse tão resistente.  Talvez por inveja das pedras e de sua permanência vocês humanos conseguiram inventar uma pedra feita de matéria orgânica morta porém quase indestrutível.  E o plástico não se desfaz completamente mas esfarela,  vira microplástico e fica aí, esfarelando pouco a pouco e poluindo nossas águas,  talvez pra sempre.

Por isso chegou a hora de lançar esse chamado. Contar nossa história. E através dela lançar nosso ultimato. Nossa última tentativa de trazer vocês de volta ao equilíbrio. Voces precisam entender que são filhos da Natureza e não donos dela. Este planeta tem lugar para todos os seres, todas as espécies e a mãe Terra está tentando avisar vocês já faz tempo. Mas é impossível dizer algo para alguém que não quer ouvir.
Então considerem este o último aviso. Estamos escondidas pelo oceano mas somos fortes como a mãe Gaia. Já passou o momento de agir.

Ou vocês mudam, ou serão mudados.

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⏰ Última atualização: May 28 ⏰

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