Capítulo I

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        Meu corpo estava dormente dos pés a cabeça. A única coisa que eu podia sentir eram minhas bochechas tocando algo tão frio quanto o metal e tão áspero quanto a terra. A extremidade da minha cabeça cintilava com pontadas, como uma enxaqueca de outro dia. Abri meus olhos, vislumbrando apenas a escuridão embaçada. Aos poucos meus braços voltavam a estar ali, e eu podia senti-los formigando. Agarrei o chão sentindo algo fino entrepassar pelos meus dedos; pequenos grãos. Os joelhos e os pés ainda estavam dormentes, mas com esforço sentei-me no chão. Agarrei um punhado daqueles grãos com a mão e levantei até o alcance dos meus olhos. Areia. Confirmei. Coloquei a ponta dos dedos na cabeça, sentindo as gotas de sangue já secas — me perguntei a quanto tempo.

    Levantei de pé cambaleando e chutando a areia até que o sangue circulasse e o formigamento sumisse das minhas pernas. Tossi e respirei fundo pois o ar era diferente e puro. Muito mais distinto que o ar que respirávamos na Cidadela, pelo menos o que eu respirava lá. Me lembro muito bem das toxinas do bairro Herm's, os esgotos e a sujeira que frequentemente entrava em nossas casas. Por anos aquilo me fazia questionar: ver os mais ricos desfrutando dos bons e melhores que a Cidadela tinha a oferecer e um governo que centralizava suas forças a essa mesma classe. Aquilo me induzia ao ódio por todos eles e muitas vezes queria eu ter me revoltado contra o sistema, mas como poderia? Sendo nós tão miseráveis era impossível que nos revoltássemos sem que assinássemos nossa morte.

    Fiquei ali de pé por bons segundos pensando em tudo aquilo ao mesmo tempo que olhava para cima e me encantava com os brilhos do céu. Era algo que eu tinha visto poucas vezes desde que deixei a Cidadela; é verdade, mas  me encantava sempre que via as estrelas na calada da noite. Todas elas, ali no alto transpassando sua beleza, serenas. Era algo tão natural e extenso, muito além dos túneis cavernosos em que vivi por anos. Uma brisa forte e gelada bateu em meus ombros fazendo-me acordar daquele transe momentâneo. Me dei conta de que apesar de estar em um lugar tão encantador, eu ainda estava sozinho. Naturalmente, o silêncio e a solidão são coisas que aterrorizam qualquer um, mas eu não sentia dessa forma, na verdade, eu estava longe de sentir esse desespero. Tossi de novo o ar seco de meus pulmões e dei outra olhada ao meu redor, não haviam rastros de nada ali. O próprio vento se calava para mim. 

    Talvez, o mais irônico disso tudo era o fato de não  lembrar exatamente o que havia acontecido; é claro que me esforcei por alguns minutos para tentar lembrar, mas a única coisa que passava de verdade em meus pensamentos era a Cidadela e as pessoas que viviam nela — as quais eu compartilhava apenas desdém  — A pobreza do lugar, as pessoas traiçoeiras, o egoísmo, essa era a Cidadela para mim. Nada além disso.  O restante da minha memória havia sido apagado, sumido. Eu vagamente recordava do meu pai, que também vivia no subúrbio da Cidadela. Torci para que ele estivesse bem àquela altura. Como exatamente cheguei ali naquele lugar sem rumo? Que diabos. Minhas roupas estavam em trapos e minha cabeça sangrando, sem sinais de ninguém por perto. Eram tantas dúvidas, mas nenhuma resposta e ninguém para responde-las. Ergui os olhos para o céu noturno de novo e comecei a caminhar para o horizonte, seguindo o enorme globo prateado no céu e daquele momento em diante; aquele seria o guia para meus caminhos.

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⏰ Última atualização: Mar 24, 2019 ⏰

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