Erotismo e Salvação

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Fazia uma hora que eu esperava Arthur no aeroporto, no sol, parado lá fora. Era incrível como a bolha em pleno 2018 ainda não havia se acostumado com a imagem de uma bixa preta dona de si. Às vezes me irritava os olhares sob mim. Ok, eu disse que não pensaria nisso, pelo menos não aqui.

Acendi um cigarro, havia começado a fumar novamente, socialmente, não lhe dando a chance de me presentear com algum enfisema pulmonar. Quando recebi o convite para participar da peça comprei um maço. Fumei inteiro. Assim que ele mandou o texto, e eu li, imaginei todas as cenas, as falas foram me sugando, a leitura ao passo que chegava no final foi me consumindo, como se eu estivesse por me esgotar. Me esgotei. Era o texto mais difícil e denso que eu já havia lido. Era o texto que podia arruinar a minha vida, mais do que ela já estava arruinada. Era o papel que podia levar o meu rosto aos cartazes dos grandes teatros novamente.

Me coloquei a interpretar. Comecei a destrinchar a personagem na minha cabeça. Fui lhe dando movimento, cabeça, pé, mão, pau, bunda, cu, tudo. Fui vomitando, quebrei muitas coisas de casa que lançava na parede para pelo menos expressar meu ódio, a personagem não vinha. Não tinha rosto. Comecei a chorar desesperado e a ausência sorria em pé na minha frente. Com o corpo tremendo respirei fundo, tentei fingir um autocontrole. Não era para mim, não conseguiria. Uma hora depois mandei e-mail a Arthur, aceitando o trabalho. A peça era intitulada desassossego. Era uma denúncia em forma de espetáculo. No restante do dia fui ao parque, fumei maconha, transei com um casal de caras que moravam perto do meu apartamento, sempre transavamos. Eu gostava, eles sempre surfavam em minhas piras e eu nas deles. Eles também não eram idiotas, as vezes sabiam conversar sobre alguma coisa relevante. Jantei sozinho em um restaurante, fui até a casa de uma amiga, Nataxa, uma mulher trans preta, formada em direito que além de enfrentar dias inacabáveis ainda tinham tempo de ouvir meus choros.

Não podia voltar para casa, ele estava lá, o texto, tomando todo o espaço do meu apartamento. Voltei enfim, contra minha vontade. Abri a porta da sala e visualizei mentalmente onde o deixei. Passei reto seguindo para o meu quarto, tranquei-me.

Arthur havia aparecido finalmente, entrei em seu carro e fomos embora.

-O clima aqui está meio frio meio calor, conhece a cidade.

-Conheço... São Paulo está cinza.

-Obrigado por ter vindo.... Minha mãe vai demorar para se recuperar da cirurgia e quero ficar perto dela. Também poderemos ensaiar em um teatro municipal.

-Eu amo aquele teatro perto do cemitério.

-Pois é. Oni, você está bem?

-Sim, eu aluguei uma casa por um aplicativo. Vou ficar lá perto do teatro.

-Beleza. Já depositei o dinheiro do aluguel inclusive.

-Já podemos sentar nas ruas da bolha e tomar uma cerveja?

-Não, o lugar está todo militarizado, não pode comprar uma cerveja e sentar numa calçada sem ser incomodado pela PM.

-Eu que sou preto então. Bixa e preta, tomei no cu duas vezes. Para azar deles eu gosto.

-Já almoçou?

-Comi um lanche no aeroporto. Podo tocar para o teatro.

-Beleza, Beto já deve estar lá.

Erotismo e SalvaçãoWhere stories live. Discover now