Não era um lugar muito provável para desaparecimentos, ao menos
à primeira vista. A pousada da sra. Baird era igual a milhares de
outros estabelecimentos que ofereciam hospedagem e café da ma-
nhã nas Terras Altas, a região montanhosa da Escócia, em 1945 – limpa
e tranquila, com papel de parede floral desbotado, assoalhos reluzentes e
um aquecedor de água operado com moedas no banheiro. A sra. Baird era
atarracada e afável, e não fazia nenhuma objeção ao fato de Frank cobrir sua
minúscula sala de visitas decorada com raminhos de rosas com as dezenas
de livros e papéis com que ele sempre viajava.
Encontrei a sra. Baird no vestíbulo quando eu estava saindo. Ela me
parou, pôs a mão rechonchuda em meu braço e deu leves toques nos meus
cabelos.
— Nossa, sra. Randall. Não pode sair desse jeito! Vamos, deixe-me
ajeitar aqui um pouco para você. Pronto! Assim está melhor. Sabe, minha
prima estava me falando de um novo permanente que ela fez, fica lindo e
dura que é uma beleza. Talvez devesse experimentar esse tipo da próxima
vez.
Não tive coragem de lhe dizer que a rebeldia dos meus cachos casta-
nho-claros era obra exclusiva da natureza e não devida a qualquer negli-
gência por parte dos fabricantes de permanente. Suas próprias ondas firme-
mente marcadas não sofriam de tal perversidade.
— Sim, farei isso, sra. Baird — menti. — Só estou indo à vila me encon-
trar com Frank. Voltaremos para o chá.
Saí apressadamente pela porta antes que ela pudesse detectar quaisquer
outros defeitos em minha aparência indisciplinada. Após quatro anos como
enfermeira do exército britânico, eu estava livre de uniformes e restrições,
cedendo ao desejo de usar vestidos leves de algodão, vivamente estampados,
totalmente inadequados para as acidentadas caminhadas através das urzes.
Não que eu tivesse originalmente planejado fazer muitas dessas cami-
nhadas; meus pensamentos estavam mais voltados para dormir até tarde
todas as manhãs e passar longas tardes preguiçosas na cama com Frank – e
não para dormir. Entretanto, era difícil manter o adequado estado de espírito lânguido e romântico com a sra. Baird cuidadosamente passando o
aspirador de pó do lado de fora do nosso quarto.
— Esse deve ser o pedaço de carpete mais sujo de toda a Escócia —
observara Frank naquela manhã enquanto estávamos na cama ouvindo o
ronco feroz do aspirador de pó no corredor.
— Quase tão sujo quanto a mente da proprietária — concordei. — Tal-
vez devêssemos ter ido para Brighton, no fim das contas.
Escolhemos as Terras Altas como roteiro de férias antes de Frank assu-
mir o cargo de professor de história em Oxford, considerando que a Escó-
cia de certa forma fora menos atingida pelos horrores físicos da guerra do
que o resto da Grã-Bretanha e estava menos suscetível à frenética alegria
pós-guerra que contagiava pontos turísticos mais populares.
Mesmo sem discutir o assunto, acho que nós dois sentimos que era um
local simbólico para restabelecermos nosso casamento. Nós nos casamos e
passamos uma lua de mel de dois dias nas Terras Altas, pouco antes da de-
flagração da guerra sete anos atrás. Um refúgio tranquilo onde pudéssemos
redescobrir um ao outro, pensamos, sem perceber que, enquanto o golfe e
a pesca são os esportes ao ar livre mais praticados da Escócia, a fofoca é o
esporte de salão mais popular. E do jeito que chove na Escócia, as pessoas
passam muito mais tempo dentro de casa.
— Aonde você vai? — perguntei, quando Frank atirou os pés para fora
da cama.
— Detestaria ver a pobre velhinha decepcionada conosco — respon-
deu.
Sentando-se na beirada da cama antiga, começou a balançar-se devagar
para cima e para baixo, criando um rangido rítmico e penetrante. O ron-
co do aspirador de pó no corredor parou bruscamente. Após um ou dois
minutos balançando-se, ele deu um gemido alto e teatral e deixou-se cair
para trás com uma vibração de protesto das molas. Não pude conter uma
risadinha, abafada no travesseiro para não perturbar o silêncio sepulcral do
lado de fora.
Frank ergueu as sobrancelhas para mim.
— Você deveria gemer em êxtase, não dar risadinhas — repreendeu-me
num sussurro. — Ela vai achar que eu não sou um bom amante.
— Você vai ter que continuar por mais tempo do que isso se espera
gemidos empolgados — respondi. — Dois minutos não merecem mais do
que uma risadinha.
— Que mulherzinha sem consideração. Eu vim aqui descansar, lembra?
— Preguiçoso. Nunca vai conseguir colocar o próximo ramo familiar
em sua árvore genealógica se não mostrar um pouco mais de empenho.
A paixão de Frank por genealogia era outra razão para termos escolhi-
do as Terras Altas. Segundo um dos encardidos pedaços de papel que ele
carregava de um lado para o outro, um antepassado seu tivera alguma coisa
a ver com os acontecimentos naquela região em meados do século XVIII.
Ou seria século XVII?
— Se eu acabar como um toco sem descendentes na minha árvore ge-
nealógica, sem dúvida será por culpa de nossa incansável anfitriã lá fora.
Afinal, estamos casados há quase oito anos. O pequeno Frank Jr. será per-
feitamente legítimo sem precisar ser concebido na presença de uma teste-
munha.
— Se vier a ser concebido — falei, pessimista. Ficáramos decepciona-
dos mais uma vez na semana anterior à partida para nosso retiro nas Terras
Altas.
— Com todo este ar puro revigorante e esta comida saudável? Como
poderíamos falhar?
O jantar na noite anterior fora arenque frito. O almoço fora arenque em
conserva. E o cheiro penetrante que agora bafejava pelo vão da escada suge-
ria, com elevado grau de certeza, que o café da manhã deveria ser arenque
defumado.
— A menos que você esteja pensando em mais uma edificante perfor-
mance para a sra. Baird — sugeri —, é melhor se vestir. Não vai se encontrar
com aquele pastor às dez? — O reverendo Reginald Wakefield, o vigário
da paróquia local, deveria fornecer algumas fascinantes certidões de batis-
mo para inspeção de Frank, sem mencionar a esfuziante perspectiva de que
pudesse ter desenterrado alguns bolorentos despachos do exército ou algo
parecido que mencionassem o tal antepassado famoso.
— Como é mesmo o nome daquele avô do seu tataravô? — perguntei.
— Aquele que andou fazendo besteira por aqui durante uma das rebeliões.
Não consigo me lembrar se era Willy ou Walter.
— Na verdade, era Jonathan.
Frank aceitava placidamente meu total desinteresse por sua história fa-
miliar, mas permanecia sempre alerta, pronto para se aproveitar da menor
expressão de curiosidade como desculpa para me contar todos os fatos co-
nhecidos até a presente data sobre os antigos Randall e suas conexões. Seus
olhos assumiram o brilho febril de professor fanático enquanto abotoava a camisa — Jonathan Wolverton Randall. Wolverton pelo tio de sua mãe, um
cavaleiro insignificante de Sussex. Era, entretanto, conhecido pelo apelido
um tanto arrojado de “Black Jack”, que adquirira no exército, provavelmente
durante a época em que serviu aqui.
Deixei-me cair na cama com o rosto enfiado no travesseiro fingindo
roncar. Ignorando-me, Frank continuou com sua exegese erudita.
— Ele recebeu sua patente oficial em meados dos anos 30, isto é, em
meados de 1730, e serviu como capitão dos dragões. Segundo aquelas cartas
antigas que a prima May me enviou, ele se saiu muito bem no exército. Uma
boa escolha para um segundo filho, como você sabe. Seu irmão mais novo
também seguiu a tradição tornando-se um vigário, mas ainda não encon-
trei muita coisa sobre ele. De qualquer modo, Jack Randall foi altamente
elogiado pelo duque de Sandringham por suas atividades antes e durante a
Conspiração Jacobita de 1745, a segunda, como você sabe — detalhou ele,
em proveito dos ignorantes em sua plateia. Ou seja, eu. — Com o príncipe
Charles Edward e toda aquela gente.
— Não estou totalmente certa de que os escoceses achem que perderam
essa — interrompi, sentando-me e tentando domesticar meus cabelos. —
Ouvi perfeitamente o barman daquele pub ontem à noite se referir a nós
como Sassenachs.
— Bem, por que não? — disse Frank tranquilamente. — Afinal, signi-
fica apenas “ingleses” ou, na pior das hipóteses, “forasteiros”, e é o que nós
somos.
— Sei o que significa. Foi o tom que ele usou que me incomodou.
Frank procurou um cinto na gaveta da cômoda.
— Ele só estava zangado porque eu disse que a cerveja estava aguada.
Eu disse a ele que a verdadeira cerveja das Terras Altas exige que uma botina
velha seja acrescentada ao tonel e que o produto final seja coado por uma
cueca usada.
— Ah, isso explica o total da conta.
— Bem, eu disse isso com um pouco mais de tato, mas só porque a lín-
gua gaélica não possui uma palavra específica para ceroulas.
Peguei as minhas próprias calcinhas, intrigada.
— Por que não? Os antigos celtas da Escócia não usavam roupa de
baixo?
Frank lançou-me um olhar malicioso.
— Nunca ouviu aquela velha canção sobre o que o escocês usa por baixo do kilt?
— Provavelmente não aqueles elegantes calções até os joelhos — res-
pondi secamente. — Talvez, enquanto você fica brincando por aí com vi-
gários, eu saia em busca de algum habitante local usando saiote escocês e
pergunte a ele.
— Bem, tente não ser presa, Claire. O reitor do St. Giles College não iria
gostar nada disso.
Na realidade, não havia ninguém perambulando de kilt pela praça central
ou pelas lojas que a rodeavam. No entanto, havia várias outras pessoas por
lá, a maioria donas de casa do tipo da sra. Baird fazendo as compras diárias.
Eram tagarelas e fofoqueiras, e suas figuras, de vestido estampado, enchiam
as lojas de um calor aconchegante; um antídoto contra a névoa fria da ma-
nhã no lado de fora.
Ainda sem minha própria casa para manter, havia pouca coisa que
eu precisava comprar, mas gostava de dar uma olhada nas prateleiras re-
cém-abastecidas pelo simples prazer de ver muitos artigos novamente à
venda. Fora um longo período de racionamento, de privação de coisas sim-
ples como sabão e ovos, e mais tempo ainda sem os pequenos luxos da vida,
como a água de colônia L’Heure Bleu.
Meus olhos se demoraram numa vitrine repleta de utensílios domésti-
cos — toalhas de chá e paninhos bordados para cobrir bules, jarras e copos,
uma pilha de fôrmas para tortas caseiras e um conjunto de três vasos de
plantas.
Jamais tive um vaso de planta em minha vida. Durante os anos de guer-
ra, vivi, é claro, nos alojamentos de enfermeiras, primeiro no Pembroke
Hospital, depois numa base militar na França. No entanto, mesmo antes
disso, nunca moramos tempo suficiente num só lugar para justificar a com-
pra de um artigo como esse. Se eu tivesse peça assim, refleti, tio Lamb a teria
enchido de cacos de louças muito antes que eu pudesse chegar perto dela
com um buquê de margaridas.
Quentin Lambert Beauchamp. “Q” para seus alunos de arqueologia e
para os amigos. “Dr. Beauchamp” nos círculos acadêmicos em que ele tran-
sitava, lecionava e ganhava a vida. Mas sempre tio Lamb para mim.
O único irmão de meu pai e meu único parente vivo na época se vira de
repente às voltas comigo, uma menina de 5 anos, quando meus pais mor-
reram num acidente de carro. Na época, às vésperas de uma viagem para o
Oriente Médio, ele interrompeu seus preparativos o tempo suficiente para providenciar o funeral, desfazer-se dos bens de meus pais e matricular-me
num internato para meninas. Para o qual me recusei terminantemente a ir.
Diante da necessidade de arrancar meus dedos gorduchos da maçaneta
do carro e me arrastar pelos calcanhares pelas escadas da escola, tio Lamb,
que detestava conflitos pessoais de qualquer natureza, suspirou exasperado,
depois finalmente encolheu os ombros e jogou sua sensata decisão pela ja-
nela, juntamente com meu recém-adquirido chapéu de palha.
— Maldito chapéu — resmungou, olhando pelo espelho retrovisor e
vendo-o rolar alegremente para longe, enquanto o carro continuava des-
cendo o caminho, roncando em alta velocidade. — Sempre detestei chapéus
femininos mesmo.
Fixou em mim um olhar feroz e continuou:
— Só digo uma coisa — disse, em tom ameaçador. — Você não pode
brincar de boneca com minhas estatuetas de túmulos persas. Qualquer coi-
sa, menos isso. Entendeu?
Fiz que sim com a cabeça, feliz. E fui com ele para o Oriente Médio,
para a América do Sul, para dezenas de sítios arqueológicos em todo o mun-
do. Aprendi a ler e escrever com os rascunhos dos artigos científicos, a cavar
latrinas e ferver água e a fazer um sem-número de outras coisas inadequa-
das para uma jovem bem-nascida — até encontrar o historiador atraente, de
cabelos escuros, que tinha ido consultar tio Lamb a respeito de uma questão
da filosofia francesa relacionada à prática religiosa egípcia.
Mesmo depois de nosso casamento, Frank e eu continuamos levando
a vida nômade de um jovem professor universitário, dividido entre con-
gressos pela Europa e apartamentos temporários, até que a deflagração da
guerra o enviou para o Treinamento de Oficiais na Unidade de Inteligência
do MI6 e a mim para o treinamento de enfermeiras. Embora estivéssemos
casados havia quase oito anos, a nova casa em Oxford seria nosso primeiro
lar de verdade.
Enfiando a bolsa firmemente debaixo do braço, entrei com passos fir-
mes na loja e comprei os vasos.
Encontrei-me com Frank no cruzamento da High Street com a Gereside
Road e começamos a subir por esta última. Ele ergueu as sobrancelhas dian-
te das minhas compras.
— Vasos? — Sorriu. — Ótimo. Talvez agora você pare de colocar flores nos meus livros.
— Não são flores, são espécimes. E foi você quem sugeriu que eu me
interessasse por botânica para ocupar minha mente, agora que não sou mais
enfermeira — lembrei a ele.
— É verdade. — Assentiu com bom humor. — Mas eu não sabia que
teria galhinhos e folhas caindo no meu colo toda vez que abrisse uma obra
de referência. O que era aquela coisa horrível, marrom e esfarelada, que você
colocou no meu livro de Tuscum e Banks?
— Sabugueiro. Boa para hemorroidas.
— Preparando-se para a minha iminente velhice, não é? Hum, muito
gentil de sua parte, Claire.
Atravessamos o portão juntos, rindo, e Frank parou para que eu subisse
os estreitos degraus da entrada à sua frente.
De repente, agarrou-me pelo braço.
— Cuidado! Não pise nisso aí!
Parei com o pé cuidadosamente erguido acima de uma grande mancha
vermelho-amarronzada no degrau superior.
— Que estranho — disse. — A sra. Baird esfrega os degraus todas as
manhãs. O que você acha que pode ser isso?
Frank se inclinou sobre o degrau, delicadamente procurando sentir o
cheiro.
— Assim de improviso, eu diria que se trata de sangue.
— Sangue! — Recuei um passo. — De quem? — Olhei nervosamente
para a casa. — Você acha que a sra. Baird sofreu algum tipo de acidente? —
Não podia imaginar nossa imaculada anfitriã deixando manchas de sangue
secando na soleira da porta, a não ser que uma enorme catástrofe tivesse
ocorrido. Imaginei por um instante se a sala de visitas não estaria abrigan-
do um assassino ensandecido, preparando-se naquele mesmo instante para
saltar sobre nós com um grito arrepiante.
Frank balançou a cabeça. Ficou na ponta dos pés para espreitar o jar-
dim do vizinho por cima da cerca viva.
— Acho que não. Há uma mancha igual a essa na entrada da casa dos
Collins também.
— É mesmo? — Cheguei mais perto de Frank, tanto para olhar por cima
da cerca quanto em busca de apoio moral. As Terras Altas dificilmente pare-
ceriam um lugar provável para um assassinato em massa. Por outro lado, eu
duvidava que essas pessoas usassem qualquer tipo de critério lógico ao esco-
lher o local do crime. — Isso é um tanto... desagradável — observei. Não ha-
via nenhum sinal de vida na casa ao lado. — O que você acha que aconteceu? Frank franziu a testa, pensando, depois bateu a mão rapidamente na
perna, como se tivesse uma súbita inspiração.
— Acho que sei! Espere um instante. — Partiu em direção ao portão
e começou a descer a rua quase correndo, deixando-me desamparada na
entrada da casa.
Voltou logo depois, radiante com a confirmação.
— Sim, isso mesmo, tem que ser. Aconteceu em todas as casas deste
lado da rua.
— O quê? A visita de um maníaco homicida? — perguntei um pouco
rispidamente, ainda nervosa por ter sido bruscamente abandonada sozinha,
na companhia apenas de uma grande mancha de sangue.
Frank riu.
— Não, um sacrifício ritual. Fascinante! — Estava de quatro na grama,
examinando atentamente a poça de sangue.
Aquilo não me parecia nada melhor do que um maníaco homicida.
Agachei-me ao lado dele, contorcendo o nariz diante do cheiro. Ainda era
cedo para moscas, mas dois mosquitos das Terras Altas, grandes e lentos,
giravam em torno da mancha.
— O que quer dizer com “sacrifício ritual”? — indaguei. — A sra. Baird
frequenta a igreja, assim como todos os seus vizinhos. Isso aqui não é o
Monte dos Druidas ou algo semelhante, sabe?
Levantou-se, limpando os pedacinhos de grama das calças.
— Você é que não sabe, meu bem — disse ele. — Não há nenhum lugar na
Terra com mais magia e superstições antigas influenciando o cotidiano das pes-
soas do que as Terras Altas. Com ou sem igreja, a sra. Baird acredita nas lendas
dos povos antigos, assim como todos os seus vizinhos. — Apontou para a man-
cha com o bico do sapato perfeitamente engraxado. — O sangue é de um galo
preto — explicou, satisfeito. — As casas são novas, você sabe. Pré-fabricadas.
Olhei-o friamente.
— Se você acha que isso explica tudo, pense melhor. Que diferença faz
a idade das casas? E, afinal, onde está todo mundo?
— No pub, eu acho. Vamos até lá verificar? — Tomando-me pelo braço,
conduziu-me pelo portão e começamos a descer a Gereside Road.
— Antigamente — explicou ele conforme andávamos —, e não faz tan-
to tempo assim, quando construíam uma casa, era costume matar alguém
e enterrá-lo nos alicerces, como uma oferenda aos espíritos da terra. Sabe,
“Ali ele lançará os alicerces em seu primogênito e em seu filho mais novo
erguerá os portões”. Isso é antigo como os montes.
Estremeci diante da citação.
— Nesse caso, suponho que seja bem mais moderno e compreensível
que estejam usando galinhas. Já que as casas são relativamente novas, nada
foi enterrado debaixo delas e os moradores agora estão tentando remediar
a omissão.
— Exatamente. — Frank parecia satisfeito com meu progresso e deu
uns tapinhas nas minhas costas. — Segundo o vigário, muitos dos habitan-
tes locais acham que a guerra foi em parte causada pelo fato de as pessoas es-
tarem abandonando suas raízes e deixando de tomar as devidas precauções,
como enterrar oferendas sob os alicerces das casas ou queimar espinhas de
peixes na lareira. Exceto de hadoques, é claro. — acrescentou ele, contente-
mente distraído. — Sabia? Ou você nunca mais pescará um. Em vez disso,
sempre enterre as espinhas de um hadoque.
— Vou me lembrar disso — prometi. — Diga-me o que se deve fazer
para nunca mais ver um arenque e eu o farei imediatamente.
Ele balançou a cabeça, absorto em um de seus acessos de lembrança,
aqueles breves períodos de êxtase erudito quando ele perdia o contato com
o mundo à sua volta, completamente empenhado em evocar conhecimen-
tos de todas as fontes.
— Não sei nada sobre arenques — disse, distraído. — Mas para ra-
tos, penduram-se ramos de choupo tremedor por toda parte. “Choupo
tremedor na casa, e você nunca verá um rato”, como se diz. Quanto a cor-
pos nos alicerces... é daí que vêm muitos dos fantasmas locais. Conhece
Mountgerald, a casa grande no final da High Street? Há um fantasma lá,
um operário que trabalhava na construção da casa e foi assassinado em
sacrifício para os alicerces em algum momento do século XVIII. Isso, na
verdade, é bastante recente — acrescentou, pensativo.
— Diz-se que, por ordem do dono da casa, uma parede foi construída
primeiro, depois um bloco de pedra foi empurrado de cima da parede sobre
um dos operários. Provavelmente algum sujeito de que ninguém gostava
foi escolhido para o sacrifício. Então ele foi enterrado no porão e o resto da
casa foi construído sobre ele. Agora assombra o porão onde foi assassinado,
exceto na data de aniversário de sua morte e nos quatro Dias Antigos.
— Dias Antigos?
— As festividades dos povos antigos da região — explicou ele, ainda
perdido em suas anotações mentais. — Hogmanay, ou seja, o Ano-Novo,
o Midsummer Day, que é o solstício de verão, o Beltane, festival da prima-
vera, e o All Hallows, que corresponde ao nosso Halloween. Os druidas, os beakers da Idade da Pedra e os antigos pictos… Todos celebravam as festas
dos fogos e as festas do sol, pelo que sabemos. De qualquer modo, os fan-
tasmas estão à solta nos dias sagrados e podem ficar vagando por aí como
quiserem, fazer o bem ou o mal, de acordo com sua vontade. — Esfregou
o queixo ponderando. — Estamos nos aproximando do Beltane, perto do
equinócio da primavera. É melhor ficar de olho da próxima vez que passar
pelo pátio da igreja. — Ele pestanejou e eu percebi que tinha saído do transe.
Dei uma risada.
— Então, há muitos fantasmas locais famosos?
Deu de ombros.
— Não sei. Vamos perguntar ao vigário na próxima vez que o virmos?
De fato, encontramos o vigário pouco tempo depois. Estava no pub,
juntamente com os demais habitantes do vilarejo, tomando uma cerveja
leve e clara em comemoração à nova santificação das casas.
Pareceu um pouco envergonhado ao ser flagrado acobertando atos de
paganismo, por assim dizer, mas minimizou o fato como sendo apenas um
costume local com conotação histórica – como vestir roupas verdes.
— Na verdade, é bem fascinante, sabe — confidenciou ele, e reconheci,
com um suspiro, o canto de um estudioso, um som tão característico quanto
o trinado de um melro. Atendendo ao chamado de um espírito iluminado,
Frank imediatamente entrou na dança de pares da academia e logo estavam
mergulhados até o pescoço em arquétipos e comparações entre superstições
antigas e religiões modernas. Encolhi os ombros e abri meu próprio cami-
nho pela multidão até o bar e de volta, com um drinque em cada mão.
Sabendo, por experiência própria, o quanto era difícil desviar a aten-
ção de Frank desse tipo de discussão, simplesmente peguei sua mão, envolvi
seus dedos em torno da haste da taça e deixei-o entregue a seus próprios
interesses.
Encontrei a sra. Baird em um banco junto à janela, compartilhando
uma amigável jarra de cerveja preta com um senhor idoso que ela me apre-
sentou como sr. Crook.
— É o senhor de quem lhe falei, sra. Randall — disse ela, os olhos bri-
lhantes com o estímulo do álcool e da companhia. — O que conhece plantas
de todas as espécies.
— A sra. Randall se interessa muito por plantas — confidenciou ao seu
acompanhante, que inclinou a cabeça numa mistura de educação e surdez.
— Prensa-as nos livros e tudo o mais.
— É mesmo? — perguntou o sr. Crook, o tufo branco de sobrancelha
erguido em sinal de interesse. — Tenho algumas prensas, as verdadeiras,
veja bem, para ervas e similares. Ganhei-as do meu sobrinho, quando veio
da universidade passar as férias. Ele as trouxe para mim e não tive coragem
de dizer-lhe que nunca uso coisas desse tipo. Deixá-las penduradas é o me-
lhor para as ervas, sabe, ou talvez secá-las em um estrado, dentro de um saco
de gaze ou em um pote, mas por que iria querer esmagar as plantinhas até
ficarem achatadas eu não faço a menor ideia.
— Bem, para olhá-las, talvez — intercedeu a sra. Baird afavelmente. —
A sra. Randall fez lindos arranjos com botões de malva e violetas, que se
pode emoldurar e pendurar na parede.
— Hummm. — Diante dessa sugestão, o rosto sulcado do sr. Crook
pareceu estar admitindo uma duvidosa possibilidade. — Bem, se tiverem
alguma utilidade para a senhora, pode ficar com as prensas, de bom grado.
Eu não queria jogá-las fora, mas confesso que não tenho nenhuma utilidade
para elas.
Assegurei ao sr. Crook que eu ficaria encantada em usar prensas de
plantas e mais encantada ainda se ele me mostrasse onde algumas das plan-
tas mais raras da região poderiam ser encontradas. Fitou-me incisivamente
por um instante, a cabeça inclinada para o lado como um velho falcão, mas
finalmente pareceu decidir que meu interesse era genuíno. Combinamos
que eu deveria encontrá-lo pela manhã para uma excursão aos arbustos lo-
cais. Frank pretendia passar o dia em Inverness para consultar uns registros
na prefeitura de lá, e fiquei satisfeita de ter uma desculpa para não acompa-
nhá-lo. Para mim, os registros eram todos iguais.
Pouco depois, Frank conseguiu se desvencilhar do vigário e caminha-
mos de volta para casa na companhia da sra. Baird. Eu mesma hesitei em
mencionar o sangue de galo na soleira da porta, mas Frank não sofria de tal
acanhamento e interrogou-a avidamente sobre as origens do costume.
— Suponho, então, que seja muito antigo, não? — perguntou, agi-
tando uma vara pelos arbustos ao longo da calçada. O quenopódio e a
cinco-em-rama já estavam florescendo e eu podia ver os botões das gies-
tas-das-vassouras avolumando-se. Mais uma semana e estariam floridos.
— Ah, sim. — Cambaleando, a sra. Baird nos acompanhava a passos
rápidos. — Mais velho do que podemos imaginar, sr. Randall. Anterior à
época dos gigantes.
— Gigantes? — perguntei.
— Sim. Fionn e Feinn.
— Contos folclóricos gaélicos — observou Frank com interesse. — Heróis sabe. Provavelmente de origem nórdica. Há muita influência nórdica
por aqui e ao longo de toda a costa oeste. Alguns nomes dos locais são es-
candinavos, e não gaélicos.
Revirei os olhos, pressentindo uma nova explosão de conhecimento,
mas a sra. Baird sorriu cordialmente e encorajou-o, dizendo que era verda-
de, ela havia estado no norte e visto a pedra Dois Irmãos e isso era escandi-
navo, não era?
— Os escandinavos visitaram a costa centenas de vezes entre 500 e 1300
d.C., aproximadamente — disse Frank, olhando sonhadoramente para o
horizonte, vendo barcos normandos na nuvem varrida pelo vento. — Vi-
kings. E trouxeram muitos de seus mitos com eles. É um bom país para
mitos. As coisas parecem criar raízes aqui.
Nisso eu podia acreditar. O crepúsculo se aproximava, assim como uma
tempestade. Na estranha luz sob as nuvens, até as casas totalmente moder-
nas ao longo da rua pareciam tão antigas e sinistras quanto a desgastada
pedra do povo picto que ficava a uns 30 metros de distância, guardando a
encruzilhada havia mil anos. Parecia uma boa noite para ficar em casa com
as persianas fechadas.
Em vez de permanecer confortavelmente sentada na sala de visitas
da sra. Baird, vendo imagens estereoscópicas de Perth Harbor, entretanto,
Frank preferiu comparecer ao seu compromisso com o sr. Bainbridge, um
tabelião com interesse em registros históricos locais, para tomar um xerez.
Lembrando-me do encontro anterior que tivera com o sr. Bainbridge, resol-
vi permanecer em casa com Perth Harbor.
— Procure voltar antes da tempestade — disse a Frank, dando-lhe um
beijo de despedida. — E dê lembranças minhas ao sr. Bainbridge.
— Humm, sim. Sim, claro. — Cuidadosamente evitando meus olhos,
Frank encolheu os ombros dentro do seu sobretudo e partiu, pegando um
guarda-chuva do suporte junto à porta.
Fechei a porta quando ele saiu, mas deixei-a destrancada para que ele
pudesse entrar ao voltar. Dirigi-me languidamente de volta à sala de visitas,
refletindo que Frank iria sem dúvida fingir que não tinha mulher — uma
farsa à qual o sr. Bainbridge iria se unir alegremente. Não que eu, particular-
mente, pudesse culpá-lo.
No começo, tudo correra muito bem em nossa visita à casa do sr. Bain-
bridge na tarde do dia anterior. Eu me mostrara recatada, bem-educada,
inteligente, mas modesta, elegante e discretamente vestida — tudo que a
mulher perfeita do professor universitário deveria ser. Até o chá ser servido.Agora, virei a minha mão direita, examinando, com tristeza, a gran-
de bolha que se estendia pela base dos quatro dedos. Afinal, não era culpa
minha que o sr. Bainbridge, um viúvo, se contentasse com um bule barato
de metal, em vez de um bule adequado de louça. Nem que o tabelião, pro-
curando ser gentil, tivesse me pedido para servir o chá. Nem que a luva de
panela que ele me deu apresentasse uma parte gasta que permitiu que o
cabo em brasa do bule entrasse em contato direto com minha mão quando
o segurei.
Não, concluí. Deixar cair o bule foi uma reação perfeitamente normal.
Deixá-lo cair no colo do sr. Bainbridge foi apenas um infeliz acidente. Tinha
que deixá-lo cair em algum lugar. Foi minha exclamação “Puta que pariu!”
em voz mais alta do que o berro de dor do sr. Bainbridge que fez Frank me
olhar enfurecido por cima dos pãezinhos.
Quando se recuperou do choque, o sr. Bainbridge mostrou-se muito
gentil, examinando minha mão e ignorando as tentativas de Frank de se
desculpar pelo meu linguajar, alegando que eu servira em um hospital de
campanha por quase dois anos.
— Receio que minha mulher acabou pegando algumas, hum, expres-
sões mais pitorescas dos ianques e de outros — sugeriu Frank com um sor-
riso nervoso.
— É verdade — concordei, cerrando os dentes enquanto envolvia mi-
nha mão com um guardanapo embebido em água. — Os homens tendem
a ser muito “pitorescos” quando se está tirando estilhaços do corpo deles.
Com muito tato, o sr. Bainbridge tentou desviar a conversa para o cam-
po neutro da história dizendo que sempre se interessara pelas variações do
que fora considerado discurso profano através dos tempos. Havia “Gorbli-
mey”, por exemplo, uma corruptela recente da imprecação “God blind me”.
— Sim, é claro — disse Frank, aceitando de bom grado o desvio da
conversa. — Sem açúcar, obrigado, Claire. E quanto a “Gadzooks”? A parte
“Gad” é perfeitamente clara, naturalmente vem de “God”, mas “zook”...
— Bem, sabe — interpôs o tabelião —, às vezes eu acho que possa ser
uma corruptela de uma antiga palavra escocesa, na verdade, “yeuk”. Signifi-
ca “tentação, ânsia, desejo”. Faria sentido, não?
Frank concordou, assentindo e deixando seu pouco erudito topete cair
na testa. Empurrou-o para trás automaticamente.
— Interessante — disse —, toda a evolução da blasfémia.
— Sim, e continua a acontecer — disse, pegando cuidadosamente um torrão de açúcar com a pinça.
— É mesmo? — disse o sr. Bainbridge. — A senhora encontrou algu-
mas variações importantes durante a sua, hum, experiência na guerra?
— Ah, sim — respondi. — A minha favorita eu aprendi com um ian-
que. Um homem chamado Williamson, de Nova York, acho. Ele a dizia toda
vez que eu trocava seu curativo.
— E qual era?
— “Jesus H. Roosevelt Cristo” — disse, deixando o torrão de açúcar cair
cuidadosamente no café de Frank.
Depois de passar algum tempo na sala com a sra. Baird, numa conversa
amena e nada desagradável, subi ao meu quarto para me aprontar antes de
Frank chegar. Sabia que o limite dele era de duas taças de xerez e, portanto,
esperava-o de volta logo.
O vento começava a soprar forte e o ar do quarto estava carregado
de eletricidade. Passei a escova nos cabelos, fazendo os cachos estalarem
com a estática e saltarem, emaranhando-se furiosamente. Meus cabelos
teriam que passar sem as cem escovadelas hoje à noite, decidi. Com as
atuais condições do tempo, iria apenas escovar os dentes. Fios de cabelo
grudavam no meu rosto, agarrando-se teimosamente enquanto eu tentava
afastá-los para trás.
Nenhuma água no jarro. Frank a usara, arrumando-se antes de sair para
seu encontro com o sr. Bainbridge, e não se dera ao trabalho de enchê-lo no-
vamente na torneira do banheiro. Peguei o frasco de L’Heure Bleu e despejei
uma boa porção na palma da mão. Esfregando rapidamente as mãos antes
que o perfume evaporasse, passei-as pelos cabelos. Despejei mais um pouco
na escova e penteei os cachos para trás das orelhas.
Bem. Assim estava melhor, pensei, girando a cabeça de um lado para o
outro para examinar os resultados no espelho manchado. A umidade dissi-
para a eletricidade dos meus cabelos, de modo que eles agora flutuavam em
ondas brilhantes e pesadas em volta do meu rosto. O álcool evaporado dei-
xara um perfume muito agradável no ar. Frank iria gostar, pensei. L’Heure
Bleu era sua colônia favorita.
De repente o clarão de um relâmpago bem próximo, seguido imediata-
mente pelo estrondo de um trovão, fez com que todas as luzes se apagassem.
Praguejando baixinho, comecei a tatear dentro das gavetas.
Em algum lugar, eu vira velas e fósforos; a queda de energia elétrica era
uma ocorrência tão frequente nas Terras Altas que as velas constituíam um suprimento indispensável em todos os quartos de hotéis e hospedarias. Eu
as vira até mesmo nos hotéis mais elegantes, onde eram perfumadas com
madressilvas e apresentadas em castiçais de vidro fosco com pingentes bri-
lhantes.
As velas da sra. Baird eram bem mais utilitárias — velas brancas comuns
—, mas havia muitas delas, assim como três caixas de fósforos. Não estava
inclinada a ser exigente quanto à elegância num momento como aquele.
Coloquei uma vela no suporte de cerâmica azul sobre a penteadeira
iluminada pelo relâmpago seguinte, depois acendi outras pelo quarto, até
que todo o aposento fosse tomado por uma luminosidade suave e bruxu-
leante. Muito romântico, pensei, e com certa presença de espírito desliguei
o interruptor, de modo que a volta repentina da luz não estragasse o clima
em algum momento inoportuno.
As velas não haviam queimado mais do que um centímetro quando
a porta se abriu e Frank entrou como um furacão. Literalmente, porque a
rajada de vento que o seguiu escada acima apagou três velas.
A porta se fechou atrás dele com uma pancada que apagou mais duas.
Esforçando-se para enxergar na escuridão repentina, passou a mão pelos
cabelos desalinhados. Levantei-me e reacendi as velas, admoestando-o
brandamente sobre os modos bruscos de entrar num aposento. Foi somente
ao terminar e me virar para perguntar-lhe se gostaria de um drinque que vi
que ele parecia um pouco pálido e perturbado.
— O que foi? — perguntei. — Viu um fantasma?
— Bem, sabe — disse ele devagar —, não tenho certeza se não vi. —
Distraidamente, ele pegou minha escova e ergueu-a para arrumar seus ca-
belos. Quando a fragrância repentina de L’Heure Bleu atingiu suas narinas,
franziu o nariz e colocou-a de volta sobre a penteadeira, voltando a atenção
para o pente que carregava no bolso.
Olhei pela janela, onde os olmos se agitavam de um lado para outro
como manguais. Uma persiana aberta batia em algum lugar do outro lado
da casa e ocorreu-me que talvez devêssemos fechar as nossas, embora o al-
voroço lá fora fosse interessante de observar.
— Acho que o tempo está um pouco ruim para um fantasma — falei.
— Eles não gostam de noites calmas e enevoadas em cemitérios?
Frank riu timidamente.
— Bem, provavelmente foram apenas as histórias de Bainbridge e um pouco de xerez a mais do que eu deveria ter tomado. Nada de mais. Agora Eu Estava Curiosa.
— O que você viu exatamente? — perguntei, sentando-me no banqui-
nho da penteadeira. Indiquei a garrafa de uísque erguendo uma das sobran-
celhas e Frank imediatamente foi servir dois drinques.
— Bem, na verdade, apenas um homem — começou ele, medindo uma
dose para ele e duas para mim. — Parado na rua lá fora.
— O quê? Do lado de fora desta casa? — perguntei com uma risada. —
Então deve ter sido um fantasma; não posso imaginar ninguém parado por
aí numa noite como essa.
Frank inclinou o jarro de água sobre o copo, depois olhou acusadora-
mente para mim quando não saiu nada.
— Não olhe para mim — disse. — Você usou toda a água. Mas eu pre-
firo o uísque puro mesmo. — Tomei um gole para demonstrar.
Frank pareceu inclinado a dar um pulo no lavatório para pegar água,
mas abandonou a ideia e continuou sua história, tomando pequenos goles
cautelosamente, como se seu copo contivesse ácido sulfúrico em vez do me-
lhor uísque Glenfiddich de puro malte.
— Sim, ele estava na beirada do jardim, deste lado, parado junto à cer-
ca. Eu pensei — hesitou, olhando dentro do copo —, achei que ele estivesse
olhando para a sua janela.
— Minha janela? Que extraordinário! — Não pude conter um ligeiro
estremecimento e atravessei o quarto para fechar as persianas, embora fosse
um pouco tarde para isso. Frank seguiu-me, ainda falando.
— Sim, eu mesmo pude vê-la lá de baixo. Você estava escovando os
cabelos e resmungava porque estavam arrepiados.
— Nesse caso, o sujeito provavelmente estava se divertindo — falei, as-
peramente.
Frank sacudiu a cabeça, embora sorrisse e alisasse meus cabelos.
— Não, ele não estava rindo. Na verdade, parecia terrivelmente infeliz
com alguma coisa. Não que eu tenha podido ver bem seu rosto; foi alguma
coisa na maneira como estava ali parado. Eu fui por trás dele e, quando ele
não se moveu, perguntei educadamente se poderia ajudá-lo em alguma coi-
sa. Primeiro, ele agiu como se não tivesse me ouvido, e eu achei que talvez
não tivesse mesmo, por causa do barulho do vento, então repeti o que disse-
ra e estendi a mão para tocar seu ombro, chamar sua atenção. Mas antes que
eu pudesse tocá-lo, ele girou repentinamente nos calcanhares, passou por
mim e começou a descer a rua.
— Parece um tanto grosseiro, mas não muito próprio de um fantasma
— observei, esvaziando meu copo. — Como ele era?
— Um sujeito grandalhão — disse Frank, franzindo a testa ao se lem-
brar. — E escocês, em trajes completos das Terras Altas, com a bolsa de pe-
los usada pelos escoceses na frente do kilt e um lindo broche de um veado
correndo prendendo o xale xadrez. Quis perguntar-lhe onde o tinha conse-
guido, mas se afastou antes que eu tivesse a oportunidade.
Dirigi-me à escrivaninha e servi outra dose de uísque.
— Bem, não é uma aparência muito estranha para essa região, certo?
De vez em quando, vejo um homem vestido assim na vila.
— Nããão... — Frank parecia duvidar. — Não, não eram suas roupas que
pareciam estranhas. Quando passou por mim, eu poderia jurar que ele esta-
va suficientemente perto para esbarrar na manga do meu casaco, mas não o
fez. Fiquei tão intrigado que me virei para observá-lo conforme se afastava.
Ele desceu a Gereside Road, mas quase ao chegar à esquina, ele... desapare-
ceu. Foi quando comecei a sentir um calafrio na espinha.
— Talvez sua atenção tenha sido desviada por um instante e ele sim-
plesmente tenha mergulhado nas sombras — sugeri. — Há muitas árvores
no fim da rua.
— Posso jurar que não tirei os olhos dele nem por um segundo — mur-
murou Frank. Ele ergueu os olhos subitamente. — Já sei! Lembro-me agora
porque eu o achei tão estranho, embora não tivesse percebido isso na hora.
— O quê? — Eu estava ficando um pouco cansada do fantasma e queria
passar para questões mais interessantes, como a cama.
— Estava ventando forte, mas as pregas, sabe, do kilt e do xale quadri-
culado, elas simplesmente não se mexiam, exceto com o movimento de seus
passos.
Fitamo-nos.
— Bem — falei finalmente —, isso é um pouco arrepiante.
Frank deu de ombros e sorriu de repente, descartando o assunto.
— Ao menos terei alguma coisa para contar ao vigário da próxima vez
que o encontrar. Talvez seja um famoso fantasma local e ele poderá me con-
tar sua história sangrenta. — Deu uma olhada em seu relógio. — Mas agora
eu diria que é hora de ir para a cama.
— É, sim — murmurei.
Observei-o pelo espelho, enquanto procurava um cabide. De repente,
parou enquanto desabotoava a camisa.
— Você teve muitos escoceses sob seus cuidados, Claire? — perguntou
bruscamente. — No hospital de campanha ou em Pembroke?
— Claro — respondi, um pouco intrigada. — Havia muitos Seaforth e Cameron na base militar em Amiens e, um pouco mais tarde, depois
de Caen, tivemos muitos Gordon. Bons sujeitos, na maioria. Muito es-
toicos a respeito de tudo de um modo geral, mas terrivelmente covardes
quando se tratava de injeções. — Sorri, lembrando-me particularmente
de um deles.
— Tivemos um, na verdade um sujeito muito rabugento, um gaiteiro
dos Seaforth, que não suportava injeção, especialmente nas nádegas. Passa-
va horas no mais terrível desconforto antes de deixar que alguém se apro-
ximasse dele com uma seringa e, mesmo assim, tentava nos fazer dar-lhe a
injeção no braço, embora fosse intramuscular. — Ri diante da lembrança do
cabo Chisholm. — Ele me disse: “Se vou ficar deitado de barriga para baixo,
com minha bunda de fora, quero que a garota fique embaixo de mim, não
atrás de mim com uma agulha!”
Frank sorriu, mas pareceu um pouco apreensivo, como sempre aconte-
cia com minhas histórias de guerra menos delicadas.
— Não se preocupe — assegurei-lhe, percebendo sua expressão —, não
vou contar essa na hora do chá na sala dos professores.
O sorriso arrefeceu e ele se aproximou, parando atrás de mim, que esta-
va sentada à penteadeira. Beijou o alto da minha cabeça.
— Não se preocupe — disse. — Os professores vão adorá-la, quaisquer
que sejam as histórias que contar. Hummm. Seus cabelos estão com um
perfume delicioso.
— Gosta?
Em resposta, suas mãos deslizaram para a frente por cima dos meus
ombros, segurando meus seios na camisola fina. Eu podia ver seu rosto aci-
ma do meu no espelho, o queixo descansando sobre a minha cabeça.
— Gosto de tudo em você — disse ele com a voz rouca. — Você fica
linda à luz de velas. Seus olhos são como xerez no cristal e sua pele brilha
como marfim. Uma feiticeira à luz de velas, é o que você é. Talvez eu devesse
apagar as lâmpadas permanentemente.
— Fica difícil ler na cama — disse, o coração começando a acelerar.
— Posso pensar em coisas melhores para fazer na cama — murmurou.
— É mesmo? — indaguei, levantando-me e virando-me para passar os
braços em volta de seu pescoço. — Como o quê, por exemplo?
Algum tempo depois, aconchegados por trás das persianas fechadas, ergui
minha cabeça dos seus ombros e disse:— Por que você me perguntou aquilo? Se eu tive contato com escoce-
ses, quero dizer, deve saber que tive, há todo tipo de homens nesses hos-
pitais.
Ele se mexeu e deslizou a mão pelas minhas costas.
— Humm. Ah, por nada, na verdade. É que, quando vi aquele sujeito lá
fora, ocorreu-me que pudesse ser — hesitou, apertando-me mais um pouco
em seus braços —, hum, você sabe, que pudesse ser alguém de quem você
cuidou, talvez... talvez tivesse ouvido falar que você estava aqui e veio vê-la...
algo assim.
— Nesse caso — disse, de modo prático —, por que ele não entraria e
pediria para me ver?
— Bem — a voz de Frank pareceu muito descontraída —, talvez ele não
quisesse dar de cara comigo.
Ergui-me sobre um dos cotovelos, fitando-o. Havíamos deixado uma
vela acesa e eu podia enxergá-lo bem. Virara a cabeça e olhava distraida-
mente para a cromolitografia do príncipe Charles Edward com a qual a sra.
Baird achara apropriado decorar nossa parede.
Agarrei seu queixo e virei seu rosto para mim. Ele arregalou os olhos,
simulando surpresa.
— Está querendo dizer — indaguei — que o homem que viu lá fora era
alguma espécie de, de... — hesitei, em busca da palavra certa.
— Ligação? — sugeriu, solícito.
— Amorosa de minha parte? — concluí.
— Não, não, claro que não — afirmou de maneira pouco convincente.
Retirou minhas mãos de seu rosto e tentou me beijar, mas agora foi a minha
vez de virar o rosto. Contentou-se em puxar-me de volta para deitar a seu
lado na cama.
— É que... — começou. — Bem, você sabe, Claire, foram seis anos. E nos
vimos apenas três vezes e apenas por um dia na última vez. Não seria extra-
ordinário se... quero dizer, todos sabem que médicos e enfermeiras ficam sob
um terrível estresse durante as emergências e... bem, eu... é apenas que... bem,
eu compreenderia, sabe, se alguma coisa, hum, de natureza espontânea...
Interrompi aquela lenga-lenga desvencilhando-me do seu abraço e sal-
tando para fora da cama.
— Acha que fui infiel a você? — indaguei. — Acha? Porque, se acha,
pode sair deste quarto agora mesmo. Ir embora desta casa! Como ousa insi-
nuar tal coisa? — Eu estava furiosa e Frank, sentando-se na cama, estendeu
os braços tentando me acalmar.— Não toque em mim! — retruquei. — Apenas me diga: você acha,
diante do fato de um estranho estar olhando para a minha janela, que eu
tenha tido algum caso amoroso com um dos meus pacientes?
Frank se levantou da cama e me envolveu em seus braços. Permaneci
petrificada como a mulher de Lot, mas ele insistiu, acariciando meus
cabelos e esfregando meus ombros da maneira que sabia que eu gosta-
va.
— Não, eu não acho nada disso — disse ele com firmeza. Puxou-me
para mais junto dele e eu relaxei um pouco, embora não o suficiente para
abraçá-lo.
Após um longo tempo, murmurou nos meus cabelos:
— Não, eu sei que você nunca faria tal coisa. Só quis dizer que ain-
da que tivesse feito... Claire, não faria nenhuma diferença para mim. Eu
a amo. Nada do que você tenha feito jamais vai me impedir de amá-la.
— Tomou meu rosto nas mãos — apenas dez centímetros mais alto do
que eu, ele podia olhar diretamente dentro dos meus olhos sem dificul-
dade — e disse brandamente: — Me perdoa? — Senti seu hálito quente,
ligeiramente perfumado com o amargor do Glenfiddich, no meu rosto,
e seus lábios, cheios e convidativos, ficaram perturbadoramente próxi-
mos.
Outro relâmpago do lado de fora anunciou o súbito irrompimento da
tempestade e uma chuva estrondosa começou a açoitar o telhado.
Devagar, passei os braços em torno de sua cintura.
— “O verdadeiro perdão não é forçado” — disse —, “mas cai como o
suave sereno do céu...”
Frank riu e olhou para cima; as diversas manchas no teto eram um mau
agouro para as perspectivas de podermos dormir secos a noite toda.
— Se esta é uma amostra do seu perdão — disse ele —, detestaria ver a
sua vingança.
A tempestade ecoou como um ataque de morteiros, como se respon-
desse às suas palavras, e nós dois rimos, descontraídos outra vez.
Somente mais tarde, ouvindo sua respiração regular ao meu lado, foi
que comecei a pensar. Como eu disse, não havia nenhuma prova que impli-
casse infidelidade de minha parte. De minha parte. Mas seis anos, como ele
dissera, era um longo tempo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Viajante No Tempo
RomanceEm 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, a enfermeira Claire Randall volta para os braços do marido, com quem desfruta uma segunda lua de mel em Inverness, nas Ilhas Britânicas. Durante a viagem, ela é atraída para um antigo círculo de pedras, n...