Quando eu dormi - Parte 1

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Desde pequeno, fui abençoado - ou amaldiçoado, a meu ver - com uma mente perturbadoramente criativa. Meus pais eram professores universitários e escritores e, assim como meu pai, absorvi um fascínio por terror e sobrenatural.

Desde novo, li inúmeros livros e contos que tocavam a parte mais sombria da mente, assisti filmes que os mais sensíveis teriam ânsia, ou diriam que é obra do diabo. Eu achava divertido, inspirador. Queria escrever também quando crescesse, como meus pais. Eu já rabiscava uma ou outra linha, minha mente trabalhava no imaginário vinte e quatro horas por dia, infelizmente no mundo negro das histórias pesadas, principalmente para uma criança. O problema começou exatamente aí.

Minha mãe se assustava bastante com meus desenhos e historinhas. Meu pai não, era escritor de suspense e terror como eu, então incentivava porque, para ele, era bom fugir da realidade e, se aquilo me inspirava, que assim fosse. No fundo ele parecia ter orgulho era de si mesmo, ou do fato de que o filho seguira seus passos, como se fosse uma conquista a ser posta em um pedestal e, no meu caso, descobri mais tarde que não era uma conquista do tipo troféu de boliche na estante, estava mais para uma cabeça de alce caçada e decepada pendurada ainda fresca na parede, encarando atônita e sem vida quem entrava pela porta.

Eu os vi brigar, mais de uma vez, por minha causa. Minha mãe confiscou um quadrinho que fiz onde uma mulher era torturada e decepada por um monstro. Ela me deu um esporro grosseiro sobre aquilo, assustada, provavelmente. Ela não parava de repetir que eu só tinha dez anos e crianças dessa idade deveriam estar fazendo histórias de super-heróis ou de cavaleiros. Mas eles eram chatos, certinhos, e nunca perderiam. Eu já sabia que a vida humana valia muito menos que costumávamos achar, e nada do que eu mostrava parecia ser irreal para mim, afinal eu via minhas histórias em muitos lugares. Principalmente as de fantasmas, demônios... Em carne e osso ou não, eram reais. De alguma forma eram reais nas pessoas.

Eu fui para o meu quarto, mas os ouvi gritar. Meu pai... bem, meu pai tinha um probleminha com a bebida, e tinham muitas garrafas vazias em cima da mesa de centro. Ele estava um pouco alterado e isso me assustava, então confesso que me senti aliviado de não ver a cena. Ouvi copos estourando - ou garrafas -, mais gritos... E depois silêncio. Eu era um cagão, verdade seja dita, não queria descer para perguntar nada, então virei e me enrolei no cobertor. Chorei até pegar no sono.

Passei a noite inteira tendo pesadelos, ouvindo gritos. Acordei mais de uma vez suando frio e, como não queria ainda ir até os meus pais devido ao ocorrido não levantei. Ficava congelado, fitando o teto com o grito engasgado na garganta, mas não levantava até pegar no sono de novo. Pela centésima vez acordado, ouvi sirenes, achando que estava dormindo ainda. Sentei na cama, raciocinei - o máximo possível para uma criança - e vi que estava acordado mesmo. Olhei para a janela e ainda estava amanhecendo... Será que alguém tinha passado mal?

Corri e pus minhas mãos no vidro gelado daquela manhã chuvosa... As sirenes estavam na porta da minha casa, uma ambulância e... Polícia?!

Naquele dia eu descobri o monstro.

Desci as escadas correndo e vi meu pai, contorcido, me encarando. A polícia estava com ele de bruços, no chão, um homem sentado sobre ele, o algemando. A blusa dele estava ensopada de sangue, assim como suas mãos. Tentei me aproximar, mas não deixaram - até meu pai parecia implorar que eu não chegasse perto dele, com aquele olhar avermelhado e cheio de lágrimas.

Dali pra frente, tudo é apenas um borrão em minha memória. Os policiais me levando à delegacia sem me deixar ver minha mãe, meu pai sendo colocado numa viatura e levado para onde eu não mais o veria da forma que eu gostaria e uns homens procurando meus familiares próximos para ter onde desovar um pobre menino com uma família problemática.

No fim, ouvi alguém dizer que eu visitaria minha avó Tânia permanentemente. Ela também saberia do monstro da pior forma.








Coletânea - Curtas da Meia-noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora