A tarde já chegava ao seu fim, pela janela da sala do meu psicólogo eu observava o sol se pôr, o céu alaranjado me distraia de qualquer conselho que o Doutor Colm tinha para me oferecer no momento. Os nossos encontros eram semanais, todas as sextas, era parte da minha rotina desde que minha esposa, Mirna, me convenceu que eu precisava me tratar. No começo não me soou bem, ela agia como se eu tivesse algum problema incurável, mas eu tinha certeza de que eram apenas traumas de quando eu vivia com meus pais. Apesar de raramente acontecer, eu devo confessar que, na maioria das vezes em que discutíamos, ela estava certa e eu era incapaz de ficar chateado com a minha ela.
Eu a conheci na faculdade, ela fazia Ciências Sociais e eu cursava Jornalismo, hoje eu tenho trinta e dois anos e ela trinta, e mesmo assim, nunca consegui ficar mais de vinte e quatro horas chateado com essa mulher. Seu coração sempre fora o mesmo. Desde que a vi pela primeira vez, recolhendo suprimentos para pessoas necessitadas, sabia que ela tinha alguma coisa de especial. Era como se uma aura de ternura e gentileza emanasse de cada movimento que ela fazia. Dava pra ver que ela amava estar ali. Sempre foi assim. Nos dias atuais ela cuidava do "Mãos que Acolhem", projeto que visava construir abrigos para alimentar sem tetos em partes menos privilegiadas da cidade.
Já havia se tornado uma figura conhecida na nossa cidade pelos projetos que participava e já tinha uma imagem construída dessa pessoa caridosa e simpática que todos adoravam.
Eu digo tudo isso pois devo ressaltar que você, que está lendo isso, nunca conhecerá a Mirna que eu conheci. Você não verá, nesses relatos em que escrevo, esse lado dela.Algo a perturbou. Um mar pacífico se transformou em um mar cheio de ondas perigosas.
Eu nadava nesse mar.
A dúvida que sempre rodeava minha mente era o porquê dela ter se tornado desse jeito. As idas ao psiquiatra e ao psicólogo ajudaram ela, por um tempo bastava pra manter seus ataques de pânico, ansiedade e pequenas conversas consigo mesmo, mas chegou em um ponto que aquilo não era o suficiente, os remédios começaram a ser necessários.
Duas semanas depois de começar a tomar a Sertralina, os tremores aumentaram, as tonturas eram mais frequentes e ela parecia exausta. Eu tentava conversar com ela, às vezes eu conseguia, mas nunca comentava sobre aquela noite, certamente algo estranho havia acontecido, mas ela continuava sem contar nada.
"Se alguém acreditasse em mim, respirar seria fácil."
Foi o que ela disse quando decidiu que não iria continuar seus tratamentos.
Foi quando eu decidi que precisávamos de uma mudança.
- Por que essa mudança de repente, Liam? - perguntou Dr. Colm
Sua voz terna me passava confiança.
- Está me matando vê-la daquele jeito.
As malas estavam prontas, ela estava me aguardando sozinha na sala de espera. Iríamos para Inishmaan, é a menor da ilhas Aran, a população é pequena, achei que era um ótimo jeito de fugir da vida moderna. Era o que ambos precisávamos.
Ou parecia que sim.
Alguns minutos depois, eu e Mirna estávamos dentro do Uber, seguindo viagem em direção ao aeroporto. Ela tem talassofobia, então não poderíamos ir de balsa.
Sobre Mirna
Ela era adorada por toda a vizinhança, doava para caridades e adorava fazer trabalhos voluntários. Eu sinto falta da velha Mirna. A bipolaridade a consume às vezes, então é difícil manter uma conversa longa.
Sobre Liam
Eu? Eu era um escritor. Diferente dela, eu era mais quieto, era ela quem ia me contagiar com toda sua positividade e mesmo nas piores situações sabia como manter a calma. Eu sinto que trocamos de papel.
Não que eu tenha me tornado alguém mais sociável.
Eu só quero compensar tudo o que ela fez por mim, é minha vez de estar ali por ela.
Ao chegarmos na pequena ilha, alugamos uma charrete que nos levou à residência. Era uma casa velha mas aconchegante, já estava mobiliada e tudo estava de acordo com o planejado. A casa era grande, talvez espaço demais para nós dois, mas Mirna sempre gostou de lugares espaçosos.
Após colocar todas as malas no quarto, fui falar com ela, a brisa levava seus cabelos claros enquanto ela se encontrava na beirada da sacada, encarando de longe os penhascos de Moher.
- Espero que as coisas melhorem aqui - me aproximei, ficando ao seu lado.
Ela me encarou com seus olhos esmeraldas e concordou com a cabeça. Percebi que sua boca estava seca.
- Vá beber um pouco de água, sua boca está ressecada de novo.
- Parece que voltamos séculos e agora estamos no passado, esse lugar é lindo. - sua voz doce condizia com sua aparência naquele exato momento, ela estava calma, leve.
Esbocei um sorriso quando ela se virou e saiu do quarto.
Logo me dei a liberdade de explorar mais a casa. Em um dos longos corredores achei uma entrada para o sótão. Subi a pequena escada e encontrei diversas caixa empoeiradas, iluminadas somente com a luz do pôr do sol que penetrava por uma janela redonda. Mais a frente, encontrei um livro, parecido com um diário. Sua primeira página carregava quatro palavras em destaque, em um sopro, toda a poeira que tomava aquele livro foi aos ares.
Os sons da montanha
A curiosidade me tomou por completo, a maior vontade que eu tinha no momento era ler sobre o que se tratava. Ah, a leitura sempre me fascinou, achar aquele livro explicaria muito sobre o que estava por vir.
Coloquei-o debaixo dos meus braços, desci as escadas e fui direto ao primeiro andar, onde vi que Mirna estava lendo um livro qualquer.
- Quer sair pra conhecer a ilha? - perguntei interrompendo sua leitura
Negou com a cabeça sem tirar os olhos do livro.
- Tudo bem, pode ser outro dia, se precisar de qualquer coisa eu estou no escritório trabalhando.
Subi as escadas novamente e fui ao meu novo escritório que ficava logo ao lado do nosso quarto, coloquei o livro na escrivaninha e abri o meu notebook (trouxe ele apenas para continuar trabalhando em uma obra não terminada), mas antes mesmo de começar a escrever, o livro novamente prendeu minha atenção, dessa vez não me contive e decidi começar a ler.
O que é que me prendia àquele livro?
Eram apenas frases e palavras soltas de alguém que já viveu nessa ilha, mas foi um trecho específico que chamou a minha atenção.
"Eu escutei eles me chamando de longe, então peguei minhas coisas e corri, corri para longe de todos os problemas que causei com minhas duas mãos."
Isso me trouxe dúvidas, como quem seriam "eles"? Quais problemas essa pessoa havia causado?
- Liam? - a voz baixa de Mirna tirou-me do meu devaneio
Ela carregava um semblante aterrorizado, seus cabelos estavam grudados em seu rosto por causa do suor que escorria constantemente
- O que houve? - me levantei em um pulo e me aproximei, segurei suas mãos trêmulas e frias.
- Depois de todo esse tempo, você ainda acredita em mim? Se eu disser, que as vozes estão voltando, você acreditaria em mim?
Assenti com a cabeça.
- O que elas dizem? - perguntei segurando suas duas māos
- Elas querem que eu vá embora, os gritos parecem todos iguais.
Foi assim que o tormento voltou, tão de repente, quebrando uma calmaria que seguia intocável por dias, era só o começo e parte de mim sabia que nossa paz não duraria por muito tempo, eu ainda me pergunto se tinha algo que eu pudesse ter feito pra evitar tudo isso.
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Os Sons da Montanha
Short StoryLiam Ward é um escritor irlandês que decide se mudar para uma pequena ilha ao leste em busca de uma vida melhor para sua esposa, Mirna Byrne, que sofre com diversos transtornos psicológicos, mas quando ele descobre um livro misterioso, a situação de...