Capítulo 1

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Termino de arrumar o coque, passo as mãos pela lateral da cabeça e torno a conferir a aparência. Como de costume, impecável.

Desde muito pequena aprendi que a imagem de uma mulher é fundamental para sua aceitação em um círculo social. Por isso a escolha do penteado é imprescindível em meu trabalho.

Lido no ramo de artes, em uma galeria conceituada de São Paulo, e levando em conta que convivo com pessoas da mais pura nata, estar à altura é fundamental, sem parecer audaciosa demais e muito menos trivial.

Um coque perfeitamente alinhado me garante um ar elegante, profissional e, principalmente, casto. Isso não inibe os inúmeros flertes que recebo dos homens, mas assegura a seriedade que preciso passar perante suas esposas.

As pobres e coitadas que vivem a ilusão de um casamento sacramentado nas leis divinas ou que simplesmente se tornam cegas para tudo que o companheiro faz. Nos dois sentidos chegamos ao mesmo denominador comum: o preço para aquilo que se quer, leva a sacrifícios questionáveis.

Aceitar ou não, na maioria dos casos, não está em questão. Todas elas fizeram suas escolhas quando fisgaram o pote de ouro no fim do arco-íris e, como diria minha mãe, "a vida é baseada em prioridades e, inevitavelmente, cada uma traz sua consequência".

Estico meus lábios e deslizo o pincel do batom cor nude que uso na maioria dos dias. Minha boca não é tão grossa, tenho um traço marcante em seu contorno e isso a torna diferenciada. Sutil e delicada na medida certa para atrair a atenção masculina.

O lado direito dos lábios repuxa em um sorriso sacana, o qual não consigo evitar quando me lembro das incontáveis vezes que fui elogiada pela minha boca bem delineada.

Um presente da genética familiar e que tão cedo minha mãe ensinou-me a valorizar. Minha beleza natural era o cartão de visitas para tudo que eu quisesse conquistar e, claro, uma inteligência perspicaz que me direcionaria sempre ao caminho certo.

Estou longe de ser mais uma dama da sociedade que combina os tons pastéis em sua casa, assim como em seu guarda-roupas, a fim de se enquadrar em um velho padrão ridículo. Fui educada para ser uma dama, mas acima de tudo, fui ensinada a cativar o meio para me tornar referência.

Não quero ser uma esposa troféu. O que busco vai muito além.

Quero ser a esposa modelo. Sendo admirada e servindo de exemplo para todas as outras. Cobiçada pelos homens e voz ativa dentro do leito familiar que vier a escolher. Não quero o vazio de uma mansão. Pelo contrário. Desejo uma parceria sólida com um companheiro selecionado a dedo e, principalmente, que culmine a admiração alheia.

Fecho a maleta de maquiagem e a guardo no lugar, conferindo mais uma vez minha aparência no espelho do banheiro e voltando para o quarto. Visto a roupa do dia. Uma saia social creme e camisa de seda preta com manga três quartos, num estilo clássico e alinhado. Acrescento um scarpin preto envernizado, deixando minha postura altiva e minhas pernas ainda mais longas.

Tenho altura acima da média feminina, mas nada que me torne fora de contexto e sim, a medida que me faz destaque onde quer que esteja. Como eu já disse, a genética fez um bom trabalho comigo.

Recolho a bolsa de ombro preta e a pasta executiva que larguei displicentemente na cadeira de descanso do quarto. Cheguei tão cansada ontem que deixei de lado minha mania por organização e simplesmente me despi, tomei uma ducha e deitei, caindo em sono profundo.

Ontem tive uma tarde perturbadora com a família Valêncio, mais especificamente com o Sr. Valêncio pai.

O homem não conhece o significado da palavra "não" e nem mesmo tem qualquer senso pudoroso e de respeito. Se ao menos fosse seu filho que estivesse acariciando minha perna em um chá com toda sua família, poderia ter facilitado as coisas. Mas um velho rabugento que cheira a mofo é impossível de engolir.

[Degustação] Sórdida: entre a razão e o coraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora