Prólogo e até o capítulo I

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Prólogo

Consigo ouvi-los do outro lado das paredes, os pés arqueados se arrastando. Eles estão próximos. Muito mais perto do que eu gostaria. Não tenho alternativa senão esperar anoitecer para deixar esta sala. Apesar do mofo e da falta de móveis, foi o único lugar que encontrei para tentar passar para o papel o que está acontecendo desde o último verão.

Estou na total escuridão, tentando escrever com base somente no tato. Não posso me arriscar a acender qualquer luz aqui. Eles farejam a luz. Clara me ensinou isso da pior maneira possível. Por isso vedei todas as frestas da porta.

Vou tentar me concentrar ao máximo e transmitir toda informação que puder. Se você está lendo este manuscrito, pode ser que ainda haja alguma esperança. Eles não estão aqui para brincar. Eu já senti na pele do que eles são capazes.

Já faz algum tempo, não sei quanto ao certo. A certeza que tenho é que começou no verão de 1994, em Santa Clara da Paciência, minha cidade natal, de onde tento fugir desde o dia do meu aniversário de 40 anos.

Meu nome é Adalberto Flores Masseiro, e eu era apenas um comerciante feliz com meu trabalho, bem-sucedido, de poucos amigos e satisfeito com a vida. Hoje sou um maltrapilho. Visto calças surradas, uma camisa rasgada, e apenas um pé do último par de tênis em que consegui pôr as mãos, carregando em uma mochila tudo o que encontro no caminho que possa vir a ser útil.

Tenho um plano que pode me custar tudo, mas antes quero deixar registrado como cheguei a esse ponto.


I – Espelhos

Eu estava no balcão da minha loja naquela manhã, olhando para as prateleiras à minha frente, pensando em quais produtos eu deixaria expostos durante a semana. Era o primeiro dia da promoção de aniversário, e eu não poderia deixar de aproveitar a oportunidade para mostrar algumas das mais recentes aquisições. Apesar da distância em relação às cidades "grandes", eu me orgulhava em manter a doceria muito bem sortida de importados e com uma variedade que impressionava até mesmo os visitantes mais exigentes.

Estava no meio desses pensamentos, quando entrou Carlinhos apressado como sempre. Ele vestia o uniforme da escola municipal, com a blusa manchada do chocolate que trazia nas mãos e parecia que sabia exatamente o que iria levar. Pegou algumas moedas do bolso, e veio até a registradora trazendo uma caixa de balas gel com formato de bichos.

— Bom dia, seu Beto! — Exibiu um sorriso doce e manchado.

— Bom dia, Carlinhos. Está com pressa, hein, atrasado para a escola? — Entreguei o troco, deixando prevalecer um suave tom de repreensão na voz.

— Tô sim, mas não podia ir pra aula sem passar aqui. Queria ser o primeiro a dizer feliz aniversário pro senhor!

— Tá bom, obrigado, seu espertinho. — Não pude deixar de sorrir, agradecido. — Você sabe como comprar as pessoas. Tome aqui. Leve de brinde essa barrinha e depois me diga o que achou, ok? Estou pensando em começar a vender esta marca, mas quero antes saber a opinião de alguns dos meus melhores clientes. — Pisquei, com ar de cumplicidade.

— Pô, brigadão, seu Beto! Eu só vou comer depois da merenda, mas passo aqui mais tarde e digo se é boa. Até logo, e diga pro carinha de frente pra vitrine, que ficar olhando direto pra lâmpada faz mal. Minha mãe me disse isso!

Antes que eu pudesse responder, ele saiu correndo na direção da escola. Olhei para a vitrine, tentando identificar o possível cliente do lado de fora, aficionado pelas luzes. Não havia ninguém. Até mesmo a rua estava absolutamente deserta. Naquele horário todos, ou já estavam em aula, ou em seus respectivos trabalhos, restando somente poucas pessoas em trânsito. Mesmo assim, resolvi ir até a frente da loja verificar o movimento.

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