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Quando cheguei no céu pela primeira vez, pensei que todo mundo
via o que eu via. Que no céu de todo mundo tinha traves de
futebol ao longe e mulheres lançando pesos ou dardos em
câmera lenta. Que todos os prédios se pareciam com ginásios suburbanos do nordeste americano construídos nos anos 60. Prédios grandes e atarracados espalhados por terrenos arenosos com projetos paisagísticos ruins, e anexos e espaços abertos para fazê-los parecer modernos. Minha parte preferida era como os blocos coloridos eram turquesa e cor de laranja, iguaizinhos aos blocos do científico de Fairfax. Algumas vezes, na Terra, eu fazia meu pai passar de carro na frente científico de Fairfax para poder me imaginar estudando lá. 
Depois da sexta, sétima e oitava séries do ginásio, o científico teria sido um novo começo. Quando eu chegasse no científico de Fairfax, insistiria para ser chamada de Suzanne. Usaria os cabelos escovados à Ia Farrah Fawcett ou presos em um coque.Teria um corpo que os meninos desejassem e as meninas invejassem, mas seria também tão legal que eles se sentiriam culpados por fazer qualquer outra coisa a não ser me adorar. Eu gostava de pensar em mim mesma — depois de chegar a uma espécie de status de rainha— protegendo alunos desajustados no refeitório. Quando alguém gozasse de Clive Saunders por andar feito uma menina, eu o vingaria imediatamente chutando as partes pudendas do gozador. Quando os meninos provocassem Phoebe Hart por causa de seus peitos grandes, eu faria um discurso sobre porque piadas de peito não eram engraçadas. Precisava esquecer que eu também tinha feito listas na margem do meu caderno quando Phoebe passava: tetas, marquises, peitarras. No final dos meus devaneios, eu estava sentada no banco de trás do carro enquanto meu pai dirigia. Tinha feito tudo certo. Eu passaria pelo científico em questão de dias, não anos, ou, inexplicavelmente, ganharia um Oscar de Melhor Atriz no primeiro ano. Eram esses meus sonhos na Terra.


 

Depois de alguns dias no céu, percebi que as lançadoras de dardos e de pesos e os meninos jogando basquete no asfalto rachado estavam todos em suas próprias versões do céu. Só que as deles combinavam com a minha— não a duplicava exatamente, mas tinha uma porção das mesmas coisas acontecendo.
Conheci Holly, que virou minha colega de quarto, no terceiro dia. Ela estava sentada no balanço. (Não questionei o fato de um científico ter balanços: era isso que fazia aquele lugar ser o céu. E não eram balanços defundo chato—todos tinham braços e eram feitos de uma borracha preta duraque envolvia o corpo e sobre a qual se podia pular um pouco antes de balançar.) Holly estava sentada lendo um livro em um alfabeto estranho que associei ao arroz com carne de porco que meu pai trouxe para casa do Hop Fat Kitchen, um restaurante do qual Buckley adorava o nome, adorava tanto que gritava "Hop Fat!" com toda força. Agora sei o que é um vietnamita, e sei que Herman Jade, dono do Hop Fat, não era vietnamita, e que Herman Jade não era o nome verdadeiro de Herman Jade e sim um nome que ele tinha adotado ao chegar nos Estados Unidos vindo da China. Holly rne ensinou tudo isso.
—Oi— disse eu. —Meu nome é Susie.
Mais tarde ela me diria que tirou seu nome de um filme, Bonequinha de luxo.
Mas naquele dia ela apenas disse o nome naturalmente.
—Meu nome é Holly — disse ela. Já que no céu dela ela não queria ter nenhum sotaque, não tinha. Fiquei olhando para seus cabelos negros. Brilhavam como as promessas das revistas.
—Há quanto tempo você está aqui? —perguntei.
—Três dias.
—Eu também.
Sentei no balanço ao seu lado e virei meu corpo várias vezes para enrolara corrente. Depois soltei e girei até parar.
—Você gosta daqui? —perguntou ela.
—Não.
—Nem eu.
Foi assim que começou.
No nosso céu, nossos sonhos mais simples tinham sido realizados. O colégio não tinha professores. Nunca tínhamos de entrar a não ser para a aula de artes no meu caso e para tocar na banda de jazz no caso de Holly. Os meninos não beliscavam nossa bunda nem nos diziam que cheirávamos mal; nossos livros-texto eram as revistas Seventeen, Glamour e Vogue.
E nossos céus se expandiam à medida que nosso relacionamento crescia.
Queríamos muitas das mesmas coisas.
Franny, minha orientadora de recepção, tornou-se a nossa guia. Franny tinha idade suficiente para ser nossa mãe— quarenta e poucos anos — e Holly e eu levamos um tempo para perceber que isso era uma das coisas que queríamos: nossas mães.
No céu de Franny, ela prestava serviços e era recompensada com resultados e gratidão. Na Terra, tinha sido assistente social para os sem-teto e os pobres. Trabalhava para uma igreja chamada Santa Maria que servia refeições só para mulheres e crianças, e fazia tudo ali, desde operar os telefones até matar as baratas — usando golpes de caratê. Ela levou ura tirona cara de um homem que procurava a mulher.
Franny foi falar com Holly e eu no quinto dia. Ela nos estendeu dois copos descartáveis de refrigerante de lima e nós bebemos.
—Estou aqui para ajudar —disse ela.
Olhei para seus pequenos olhos azuis rodeados por rugas de expressão e disse-lhe a verdade.
—Isto aqui está um tédio. 
Holly estava ocupada tentando esticar a língua longe o bastante para verse tinha ficado verde.
—O que vocês querem?— perguntou Franny.
—Não sei—disse eu.
—Tudo o que precisam fazer é desejar alguma coisa, e se desejarem o bastante e realmente souberem por quê, a coisa vai se realizar.
Parecia tão simples, e era. Foi assim que Holly e eu conseguimos nosso duplex.
Eu odiava nossa casa na Terra. Odiava os móveis dos meus pais e o jeito como nossa casa tinha vista para outra casa e outra casa e mais outra —Um eco da mesma coisa se repetindo até o outro lado do morro. Nosso duplex tinha vista para um parque, e ao longe, perto o suficiente para sabermos que não estávamos sozinhas, mas não perto demais, podíamos ver as luzes de outras casas.
Depois de algum tempo comecei a desejar mais. O que achei estranho foi o quanto eu desejava saber o que não sabia na Terra. Queria poder crescer.
— As pessoas crescem vivendo — disse eu a Franny. —Eu quero viver.
— Isso está fora de cogitação — disse ela.
—A gente pode pelo menos olhar os vivos?—perguntou Holly.
—Já estão olhando— respondeu ela.
—Acho que ela quer dizer vidas inteiras— disse eu— do começo ao fim, para ver como é. Conhecer os segredos. Assim a gente pode fingir melhor.
—Vocês não vão viver essas coisas — esclareceu Franny.
—Obrigada, sabichona— disse eu, mas nossos céus começaram acrescer.
Ainda havia o científico, toda a arquitetura de Fairfax, mas agora havia estradas saindo de lá.
—Sigam as estradas—disse Franny — e encontrarão o que precisam. Foi então que Holly e eu começamos. Nosso céu tinha uma sorveteria em que, quando pedíamos picolé de hortelã, ninguém nunca dizia: "Não está na época"; tinha um jornal em que nossas fotos apareciam sempre e nos faziam parecer importantes; tinha homens de verdade e belas mulheres também, porque Holly e eu adorávamos revistas de moda. Algumas vezes Holly parecia não estar prestando atenção, e outras vezes quando eu ia procurá-la ela havia sumido. Era quando ela ia a uma parte do céu que não compartilhávamos. Eu sentia saudade dela nessas horas, mas era uma saudade estranha porque a essa altura eu já conhecia o significado de para sempre. 
Eu não podia ter o que mais queria: o Sr. Harvey morto e eu viva. O céu não era perfeito. Mas passei a acreditar que, se observasse com atenção, e desejasse, poderia mudar as vidas das pessoas que amava na Terra.

 
Foi meu pai quem recebeu o telefonema no dia 9 de dezembro. Era o começo do fim. Ele informou à polícia meu tipo sanguíneo, teve de descrever a alvura da minha pele. Eles lhe perguntaram se eu tinha algum sinal particular. Ele começou a descrever meu rosto em detalhes, perdendo-se na descrição. O inspetor Fenerman o deixou continuar, já que a notícia seguinte era horrível demais para que ele o interrompesse com ela. Mas então ele disse:
—Sr. Salmon, nós só achamos um pedaço de corpo. Meu pai estava em pé na cozinha e foi tomado por um calafrio nauseante. Como poderia dizer aquilo para Abigail?
—Então não pode estar certo de que ela está morta? — perguntou ele.
—Nada nunca é certo — disse Len Fenerman.
Foi essa frase que meu pai disse à minha mãe: "Nada nunca é certo."
Durante três noites, ele não tinha sabido como tocar minha mãe nem o que dizer. Antes, eles nunca tinham ficado arrasados juntos. Geralmente era um precisando do outro, mas não os dois precisando um do outro, e assim tinha sido possível, tocando-se, tomar emprestado a força do mais forte. E eles nunca tinham compreendido, como compreendiam agora, o significado da palavra horror.
—Nada nunca é certo — disse minha mãe, agarrando-se a isso como ele esperava que ela fosse fazer. 
Minha mãe era a pessoa que conhecia o significado de cada amuleto da minha pulseira — onde os tínhamos comprado e por que eu gostava deles. Ela fez uma lista meticulosa do que eu estava carregando e vestindo. Se fossem encontradas a quilômetros de distância isoladas em alguma estrada, essas pistas poderiam levar um policial de lá a relacioná-las com a minha morte.
Na minha mente, eu oscilava entre a alegria doce e amarga de ver minha mãe enumerar todas as coisas que eu carregava e amava e sua esperança fútil de que essas coisas tivessem importância. De que um desconhecido que encontrasse uma borracha com um personagem de quadrinhos ou um broche de um astro de rock fosse entregá-los à polícia.
Depois do telefonema de Len, meu pai estendeu a mão e os dois ficaram sentados juntos na cama, olhando fixamente para a frente. Minha mãe agarrando-se entorpecida àquela lista de coisas, meu pai com a sensação deter entrado em um túnel escuro. Em determinado momento, começou a chover. Nesse instante pude sentir os dois pensando a mesma coisa, mas nenhum dos dois falou. Que eu estava em algum lugar lá fora, na chuva. Que eles esperavam que eu estivesse bem. Que estivesse em algum lugar seco e quente. 
Nenhum dos dois soube quem dormiu primeiro; com os ossos doendo de exaustão, eles caíram no sono e acordaram culpados ao mesmo tempo. A chuva, que havia mudado várias vezes conforme a temperatura caía, agora era granizo, e seu barulho, o barulho de pedrinhas de gelo batendo no telhado acima deles, os acordou juntos. 
Eles não falaram. Olharam um para o outro na luz tênue produzida do abajur deixado aceso do outro lado do quarto. Minha mãe começou Chorar e meu pai a abraçou, enxugou suas lágrimas com os polegares enquanto segurava seu rosto, e a beijou com muita delicadeza nos olhos. Desviei os olhos deles enquanto se tocavam. Voltei meus olhos para o milharal, vendo se havia alguma coisa que a polícia pudesse encontrar de manhã. O granizo vergava os pés de milho e fazia todos os animais entrarem em seus buracos. Não tão fundo debaixo da terra estavam os túneis dos coelhos selvagens que eu tanto adorava, os coelhinhos que comiam os legumes e flores pelo bairro e que algumas vezes, sem saber, levavam veneno de volta para os ninhos. Então, debaixo da terra e muito longe do homem ou da mulher que havia posto iscas de veneno no seu jardim, uma família inteira de coelhos se encolhia e morria.

 

Na manhã do dia 10, meu pai derramou o uísque na pia da cozinha, Lindsey lhe perguntou por quê.
—Tenho medo de beber — disse ele.
—Que telefonema foi aquele? — perguntou minha irmã.
— Que telefonema?
—Ouvi você dizer aquilo que sempre diz sobre o sorriso da Susie. Sobre extrelas explodindo.
—Eu disse isso?
—Você ficou esquisito. Era um policial, não era?
—Sem mentiras?
—Sem mentira — concordou Lindsey.
—Eles encontraram uma parte de um corpo. Pode ser da Susie. Foi um violento soco no estômago.
—O quê?
—Nada nunca é certo
—tentou meu pai. Lindsey se sentou à mesa da cozinha.
—Eu vou passar mal — disse ela.
—Querida?
—Pai, quero que me diga o que eles encontraram. Que parte do corpo, e depois vou precisar vomitar. 
Meu pai pegou uma grande tigela de metal. Levou-a até a mesa e a colocou ao lado de Lindsey antes de se sentar.
—Está bom— disse ela. —Fala.
—Foi um cotovelo. O cachorro dos Gilbert encontrou.
Ele segurou a mão dela e então, como tinha prometido, ela vomitou dentro da brilhante tigela prateada.

 

Mais tarde naquela manhã o tempo clareou, e não muito longe da minha casa a polícia isolou o milharal e começou sua busca. A chuva, o gelo, a neve e o granizo derretidos e misturados tinham deixado o chão empapado; mesmo assim, havia uma área visível onde a terra havia sido recentemente mexida. Eles começaram por ali e cavaram.
Em alguns lugares, conforme o laboratório descobriu mais tarde, havia uma densa concentração do meu sangue misturada com a terra, mas na hora a polícia foi ficando cada vez mais frustrada, vasculhando o chão molhado e frioà procura de uma menina. 
Junto à beirada do campo de futebol, alguns dos meus vizinhos mantinham uma distância respeitosa da fita da polícia, perguntando-se o que faziam aqueles homens, vestidos com pesadas parcas azuis, manejando pás e ancinhos como se fossem instrumentos médicos.
Meu pai e minha mãe ficaram em casa. Lindsey ficou no quarto. Buckley estava ali perto na casa de seu amigo Nate, onde passava bastante tempo ultimamente. Eles tinham dito a ele que eu estava dormindo na casa da Clarissa por alguns dias. 
Eu sabia onde meu corpo estava, mas não podia dizer a eles. Fique olhando, esperando para ver o que eles iam achar. Então, como um raio, o final da tarde, um policial levantou o punho envolto em lama e gritou:
—Aqui!— disse ele, e os outros oficiais correram para rodeá-lo. Os vizinhos tinham ido para casa, com exceção da Sra. Stead. Depois de confabular em volta do policial descobridor, o inspetor Fenerman quebrou sua rodinha escura e se aproximou dela.
—Sra. Stead?— disse ele por cima da fita que os separava.
—Sim.
—A senhora tem um filho no colégio?
—Tenho.
—Poderia vir comigo, por favor? Um jovem oficial conduziu a Sra. Steadpor baixo da fita da polícia e pelo milharal esburacado e revirado até onde estava o resto dos homens.
—Sra. Stead — disse Len Fenerman —, isso lhe parece familiar?
—Ele levantou um exemplar de Não matem a cotovia.—As crianças leem isso no colégio?
—Leem — disse ela, com o rosto perdendo a cor enquanto pronunciava aquela palavra curta.
—Se importa se eu lhe perguntar... — começou ele.
—Oitava série — disse ela, olhando para os olhos cor de ardósia de Len Fenerman.—Na série da Susan.—Ela era terapeuta e confiava em sua capacidade para ouvir notícias ruins e discutir racionalmente os detalhes difíceis da vida de seus pacientes, mas se viu apoiando-se no jovem policial que a havia conduzido até ali. Eu podia ouvi-la desejando ter voltado para casa junto com os outros vizinhos, desejando estar na sala de estar junto como marido, ou lá fora no quintal dos fundos com o filho.
—Quem é o professor da turma?
—A Sra. Dewitt — respondeu a Sra. Stead.— As crianças estão achando isso um tremendo alívio depois de Otelo.
—Otelo!
—É — disse ela, com suas informações sobre o colégio adquirindo subitamente extrema importância —e todos os policiais escutando.
—A Sra.Dewitt gosta de modular sua lista de leitura, e logo antes do Natal dá um grande estirão com Shakespeare. Depois dá Harper Lee como recompensa. Se a Susie estava carregando Não matem a cotovia na bolsa, isso quer dizer que ela já deve ter entregado o trabalho sobre Otelo. 
Tudo isso foi confirmado.
A polícia deu telefonemas. Eu vi o círculo se abrir. A Sra. Dewitt estava com o meu trabalho. Acabou devolvendo-o aos meus pais, sem nota, pelo correio. "Pensei que gostariam de ficar com isso", escreveu a Sra. Dewitt em um bilhete que mandou junto com o trabalho. "Sinto muitíssimo." Lindsey herdou o trabalho porque lê-lo era doloroso demais para minha mãe. "O ostracizado: O homem só" era como eu o havia intitulado. Lindsey tinha sugerido "O ostracizado" e eu inventei a outra metade. Minha irmã fez três furos na lateral e prendeu cada página cuidadosamente manuscrita em um caderno vazio. Guardou-o no armário debaixo do estojo da Barbie e da caixa que continha seus bonecos Raggedy Ann e Andy em perfeitas condições que eu tinha invejado. 
O inspetor Fenerman ligou para meus pais. Eles haviam encontrado um livro de colégio que, segundo acreditavam, poderia ter-me sido entregue naquele último dia.
—Mas poderia ser de qualquer um — disse meu pai para minha mãe enquanto eles começavam outra vigília inquieta.—Ou ela poderia ter deixado cair pelo caminho. 
As provas estavam se acumulando, mas eles se recusavam a acreditar. 
Dois dias depois, no dia 12 de dezembro, a polícia encontrou minhas anotações da aula do Sr. Botte. Os animais tinham tirado o caderno do lugarem que ele havia sido enterrado inicialmente — a terra não correspondia às amostras próximas, mas o papel pautado, com anotações das teorias que eu nunca conseguia entender, mas mesmo assim registrava diligentemente, tinha sido encontrado quando um gato derrubou um ninho de corvo. Havia pedaços do papel entre as folhas e gravetos. A polícia separou o papel pautado, junto com pedaços de outro tipo de papel, mais fino e rugoso, sem pauta.
A menina que morava na casa em que ficava a árvore reconheceu a
caligrafia. Não era a minha caligrafia, mas sim a do menino que estava a fim de mim: Ray Singh. No papel de arroz especial de sua mãe, Rav tinha me escrito um bilhete de amor, que eu nunca li. Ele o tinha colocado dentro do meu caderno durante nossa aula de laboratório da quarta-feira. Sua caligrafia era característica. Quando os oficiais chegaram, tiveram de destrinchar os fragmentos do meu caderno de biologia e do bilhete de amor de Ray Singh.
—O Ray não está se sentindo bem — disse sua mãe quando um inspetor telefonou para sua casa e pediu para falar com ele. Mas descobriram que queriam saber graças a ela. Ray assentiu quando ela repetiu as perguntas que o policial queria fazer a seu filho. Sim, ele tinha escrito um bilhete de amor para Susie Salmon. Sim, ele o tinha colocado dentro do seu caderno depois de o sr. Botte ter pedido a ela para recolher o teste-surpresa. Sim, ele tinha chamado a si mesmo de Mouro. 
Ray Singh se tornou o suspeito número 1.
—Aquele menino adorável? — disse minha mãe a meu pai.
— O Ray Singh é legal — disse minha irmã durante um jantar monótono naquela noite.
Eu via minha família e sabia que eles sabiam. Não era Ray Singh. 
A polícia foi até a casa dele e o interrogou com mão pesada, insinuando coisas. Eram estimulados pela culpa que liam na pele escura de Ray, pela raiva que sentiam diante de seus modos, e por sua mãe bela e, no entanto, exótica e indisponível demais. Mas Ray tinha um álibi. Todo um batalhão de nações podia ser chamado para depor a seu favor. Seu pai, que lecionava história pós-colonial em Penn, tinha chamado o filho para representar a experiência adolescente em uma palestra que deu na International House no dia em que eu morri.
De início, a ausência de Ray do colégio tinha sido vista como prova de sua culpa, mas quando a polícia recebeu uma lista dos quarenta e cinco presentes de que haviam escutado Ray falar em "Subúrbios: A experiência americana" foi obrigada a reconhecer sua inocência. Do lado de fora da casa dos Singh, a polícia retirou pequenos gravetos das cercas-vivas. Teria sido tão fácil, tão mágico, como se a resposta literalmente caísse do céu de uma árvore no colo deles. Mas os boatos se espalharam e, no colégio, o fraco progresso social que Ray tinha feito se reverteu. Ele começou a voltar para casa imediatamente depois da aula. 
Tudo isso me deixou louca. Ver tudo e não ser capaz de guiar a polícia em direção à estufa tão perto da casa dos meus pais, onde o Sr. Harvey sentado esculpia ornamentos para uma casa de bonecas gótica que estava construindo. Ele ouvia o noticiário e examinava os jornais, mas vestia a própria inocência como um confortável casaco velho. Houvera uma rebelião dentro dele e agora ele estava calmo. 
Tentei encontrar consolo em Holiday, nosso cachorro. Sentia sua falta como ainda não tinha me permitido sentir da minha mãe e do meu pai, da minha irmã e do meu irmão. Aquele tipo de saudade significaria a aceitação deque eu nunca mais estaria com eles; podia parecer bobo, mas eu nãoacreditava nisso, jamais acreditaria. Holiday passava as noites com Lindsey, e ficava ao lado do meu pai toda vez que ele abria a porta para um novo estranho. Participava alegremente de qualquer alimentação clandestina da minha mãe. Deixava Buckley puxar seu rabo e suas orelhas dentro da casa de portas trancadas.

 

Havia sangue demais na terra. 
No dia 15 de dezembro, em meio às batidas na porta alertando minha família que ela precisava se anestesiar ainda mais antes de abrir a casa a desconhecidos — os vizinhos gentis, mas pouco à vontade, os repórteres hesitantes, mas cruéis —, veio a batida que finalmente fez meu pai acreditar.
Era Len Fenerman — que tinha sido tão gentil com ele — e um oficial uniformizado.
Eles entraram, a essa altura conhecendo a casa o suficiente para saber que minha mãe preferia que entrassem e dissessem o que tinham a dizer na sala íntima para que minha irmã e meu irmão não escutassem.
—Encontramos um objeto pessoal que acreditamos ser da Susie — disse Len. Len era cuidadoso. Eu podia vê-lo pesando as palavras. Ele fez questão de ser preciso para meus pais descartarem seu primeiro pensamento — que a polícia tinha encontrado meu corpo, que eu estava, com certeza, morta.
—O quê?— perguntou minha mãe, impaciente. Ela cruzou os braços e se preparou para outro detalhe inconsequente ao qual as outras pessoas atribuíam significado. Ela era um muro. Cadernos e romances não eram nada para ela. Sua filha podia sobreviver sem um braço. Muito sangue era muito sangue. Não era um corpo. Jack tinha dito e ela acreditava: nada nunca é certo. 
Mas quando eles suspenderam o saco plástico com meu gorro dentro alguma coisa nela se partiu. O fino muro de cristal pesado que tinha protegido seu coração—que a tinha anestesiado de alguma maneira, fazendo-a não acreditar— se esfacelou.
—O pompom— disse Lindsey. Ela havia entrado em silêncio na sala de estar vinda da cozinha. Ninguém a tinha visto chegar a não ser eu. 
Minha mãe emitiu um som e estendeu a mão. O som era um ganido metálico, o som de uma máquina humana se quebrando, emitindo os últimos sons antes de o mecanismo inteiro travar.
—Nós testamos as fibras — disse Len.
—Parece que quem quer que tenha abordado a Susie usou isso durante o crime.
—O quê? — perguntou meu pai. Ele estava impotente. Estavam lhe dizendo algo que ele não conseguia compreender.
—Para fazê-la ficar calada.
—O quê?
—O gorro está coberto com a saliva dela — esclareceu o oficial uniformizado, que até agora havia guardado silêncio.—Ele o usou como mordaça. 
Minha mãe arrancou o gorro das mãos de Len Fenerman, e os sininhos que ela havia costurado no pompom reuniram quando ela caiu ajoelhada no chão. Ela se inclinou sobre o gorro que tinha feito para mim. 
Vi Lindsey se retesar na porta. Nossos pais estavam irreconhecíveis para ela; tudo estava irreconhecível. 
Meu pai conduziu o bem-intencionado Len Fenerman e o oficial uniformizado até a porta da frente.
—Sr. Salmon — disse Len Fenerman —, com a quantidade de sangue que encontramos, e a violência que ele parece implicar, assim como outros indícios materiais sobre os quais conversamos, devemos trabalhar com a suposição deque a sua filha foi morta. 
Lindsey ouviu o que já sabia, o que já sabia havia cinco dias, quando meu pai lhe falou sobre meu cotovelo. Minha mãe começou a chorar.
—Daqui para a frente vamos trabalhar com o caso como uma investigação de assassinato — disse Fenerman.
—Mas não tem corpo— tentou dizer meu pai.
—Todos os indícios apontam para a morte da sua filha. Eu sinto muito. 
O oficial uniformizado tinha o olhar fixo à direita dos olhos suplicantes do meu pai. Eu me perguntei se aquilo era alguma coisa que eles aprendiam no colégio. Mas Len Fenerman olhou meu pai nos olhos.
—Mais tarde vou telefonar para saber como vocês estão—disse ele. 
Quando meu pai se virou de volta para a sala de estar, estava arrasado demais para chegar perto da minha mãe sentada no carpete ou da forma tensa da minha irmã ali perto. Não podia deixar que elas o vissem. Subiu as escadas, pensando em Holiday no tapete do escritório. Ele o tinha visto pela última vez ali. Na densa juba de pelos em volta do pescoço do cachorro, meu pai se permitiria chorar.

 

Os três passaram aquela tarde caminhando na ponta dos pés, como se o som de seus passos pudesse confirmar a notícia. A mãe de Nate bateu na porta para devolver Buckley. Ninguém respondeu. Ela se afastou, sabendo que alguma coisa tinha mudado dentro da casa, que se parecia exatamente com as outras ao seu lado. Ela se tornou a co-conspiradora do meu irmão, dizendo-lhe que iam sair para tomar sorvete e arruinar seu apetite. 
As quatro, minha mãe e meu pai se viram juntos no mesmo cômodo no térreo. Haviam entrado por portas opostas. 
Minha mãe olhou para meu pai:
—Mamãe—disse ela, e ele aquiesceu. Ele deu o telefonema para minha única avó viva, a mãe da minha mãe, vovó Lynn.
 
Fiquei preocupada que, se a deixassem sozinha, minha irmã fizesse alguma coisa impensada. Ela ficava sentada em seu quarto no velho sofá do qual meus pais haviam desistido e fazia o possível para se endurecer. Respire fundo e prenda a respiração. Tente ficar parada por períodos cada vez pais longos. Torne-se pequena e como uma pedra. Dobre as suas extremidades para dentro e esconda-as onde ninguém possa ver.
Minha mãe tinha lhe dito que ela podia decidir se queria voltar ao colégio antes do Natal— faltava só uma semana— mas Lindsey decidiu ir.
Na segunda-feira, na sala de chamada, todo mundo a encarou enquanto ela se aproximava da frente da sala.
—O diretor gostaria de ver você, querida — confidenciou-lhe a sra.Dewitt em um tom contido.
Minha irmã não olhou para a Sra. Dewitt enquanto ela falava. Estava se aperfeiçoando na arte de conversar com alguém olhando através da ressoa. Essa foi minha primeira pista de que alguma coisa teria que acontecer. A Sra. Dewitt também era a professora de inglês, mas o mais importante era que ela era casada com o sr. Dewitt, o técnico de futebol dos meninos que tinha incentivado Lindsey a tentar entrar para o time. Minha irmã gostava dos Dewitt, mas naquela manhã começou a olhar nos olhos apenas das pessoas com quem podia brigar. 
Enquanto juntava suas coisas, ouviu sussurros por toda parte. Tinha certeza de que logo antes de ela deixar a sala Danny Clarke havia sussurrado alguma coisa para Sylvia Henley. Alguém deixou cair alguma coisa perto do fundo da sala. Eles faziam isso, pensava ela, para, ao se abaixarem para pegar o objeto e tornarem a se levantar, poderem dizer uma ou duas palavras para o vizinho sobre a irmã da menina morta. 
Lindsey percorreu os corredores e entrou e saiu do meio das fileiras de escaninhos — esquivando-se de qualquer pessoa que pudesse estar por perto. Eu queria poder andar com ela, imitar o diretor e o jeito como ele sempre iniciava as reuniões no auditório: "O diretor é um amigo seu com princípios!", gemia eu em seu ouvido, fazendo-a começar a rir. 
Mas embora ela tenha sido abençoada com corredores vazios, ao chegar à sala da diretoria foi amaldiçoada com os olhares vazios de secretárias consoladoras. Não importava. Ela havia se preparado em casa, no quarto.Estava armada até os dentes contra qualquer ataque de simpatia.
—Lindsey — disse o diretor Caden —, eu recebi um telefonema da polícia hoje de manhã. Sinto muito pela sua perda. 
Ela olhou bem para ele. Não era bem um olhar, e sim um raio laser.
—Qual é exatamente a minha perda? 
O Sr. Caden achava que precisava tratar diretamente questões ligadas a crises dos alunos. Ele saiu de trás da mesa e conduziu Lindsey até o que era conhecido pelos alunos como O Sofá. Ele acabaria substituindo O Sofá por duas cadeiras, depois que a política se espalhou pelo distrito do colégio e lhe disse: "Não é bom ter um sofá aqui— cadeiras são melhores. Sofás passam a mensagem errada."
O sr. Caden se sentou no Sofá e minha irmã também. Gosto de pensar que ela estava um pouco animada, naquele momento, por mais que estivesse abalada, por estar sentada no verdadeiro Sofá. Gosto de pensar que não atinha privado de tudo.
—Estamos aqui para ajudar de todas as maneiras que pudermos — disse o Sr. Caden. Ele estava se esforçando ao máximo.
—Eu estou bem— disse ela.
—Quer conversar a respeito?
—De quê? —perguntou Lindsey. Ela estava sendo o que meu pai chamava de "petulante", como quando dizia: "Susie, não fale comigo nesse tom petulante."
—Da sua perda—disse ele. Estendeu a mão para tocar o joelho da minha irmã. Sua mão era como um ferro em brasa marcando sua pele.
—Eu não sabia que tinha perdido alguma coisa— disse ela, e com um esforço hercúleo fez os gestos de apalpar a saia e examinar os bolsos. 
O Sr. Caden não soube o que dizer. No ano anterior, Vicki Kurtz havia uma crise. Tinha sido difícil, sim, mas agora, retrospectivamente, Vicki Kurtz e sua mãe morta pareciam uma crise administrada com habilidade. Ele tinha levado Vicki Kurtz para o sofá—não, não, Vicki apenas tinha andado direto para lá e se sentado — e dito: "Sinto muito por sua perda", e Vicki Kurtz tinha desatado a chorar como um balão superinflado. Ele a abraçou enquanto ela soluçava sem parar, e naquela noite levou o terno para o tintureiro.
Mas Lindsey Salmon era um caso totalmente diferente. Ela era boa, inteligente, um dos vinte alunos de seu colégio selecionados para o Simpósio dos Talentos estatal. A única mancha em sua ficha era uma pequena altercação no início do ano quando uma professora a tinha repreendido por levar literatura obscena— Medo de voar— para a sala de aula. 
"Faça-a rir", eu queria dizer para ele. "Leve-a para ver um filme dos irmãos Marx, sente-se em uma almofada que peida, mostre-lhe a cueca samba-canção que está usando, estampada com diabinhos comendo cachorro-quente!" Tudo o que eu podia fazer era falar, mas ninguém na Terra conseguia me ouvir.


 

O distrito escolar fez todo mundo fazer testes e depois decidiu quem era inteligente e quem não era. Eu gostava de aconselhar Lindsey, que ficava muito mais puta com seus cabelos do que com minha condição de burralda. Nós duas tínhamos nascido com fartos cabelos louros, mas os meus rapidamente caíram e foram substituídos por ralos tufos castanhos claros. Os de Lindsey ficaram e passaram a ocupar uma espécie de lugar mítico. Ela era a única verdadeira loura da nossa família. 
No entanto, uma vez chamada de inteligente, isso a havia levado a fazer jus ao nome. Ela se trancava no quarto e lia livros grossos. Enquanto eu lia Você está aí, Deus? Sou eu, Margaret, ela lia Resistência, rebelião e morte, de Camus. Pode não ter entendido a maior parte, mas carregava o livro para cima e para baixo, e isso fez as pessoas —incluindo os professores— começarem adeixá-la em paz.
—O que estou dizendo, Lindsey, é que todos sentimos falta da Susie—  disse o sr. Caden. Ela não respondeu.
—Ela era muito inteligente...— insistiu ele. 
Ela ficou olhando para ele com uma expressão vazia.
—Tudo depende de você agora. —Ele não fazia ideia do que estava dizendo, mas pensava que o silêncio pudesse significar que estava chegando a algum lugar.—Você agora é a única menina Salmon.
Nada.
—Sabe quem veio me ver hoje de manhã?—O Sr. Caden tinha guardado seu grand finale,que estava certo de que ia funcionar.—O Sr. Dewitt. Ele esta pensando em treinar um time feminino— disse o Sr. Caden.—A ideia toda surgiu por sua causa. Ele viu como você é boa, tão competitiva quanto os meninos dele, e acha que outras meninas a seguiriam se você desse exemplo. O que me diz?
Lá dentro, o coração da minha irmã se fechou como um punho.
—Eu diria que seria bem difícil jogar futebol no campo que fica a mais ou menos seis metros de onde minha irmã foi supostamente assassinada.
Gol!
A boca do Sr. Caden se abriu e ele a ficou encarando.
—Mais alguma coisa?—perguntou Lindsey.
—Não, eu... —O Sr. Caden tornou a estender a mão. Ainda havia um fio— um desejo de entender.—Quero que você saiba o quanto lamentamos— disse ele.
—Estou atrasada para o primeiro tempo— disse ela. 
Naquele instante ela me lembrou de um personagem dos filmes de faroeste que meu pai adorava, daqueles filmes a que assistíamos juntos na televisão tarde da noite. Havia sempre um homem que, depois de atirar, levava o revólver aos lábios e assoprava o cano. Lindsey se levantou e saiu da sala do diretor Caden devagar. As horas em que se afastava eram seus únicos momentos de descanso. Do outro lado da porta havia secretárias, na frente da turma havia professores, havia alunos em todas as carteiras, em casa havia nossos pais, e a polícia passava lá. Ela não se deixaria abater. Eu a observava, sentindo as frases que ela não parava de repetir para si mesma. Tudo bem. Está tudo bem. Eu estava morta, mas era uma coisa que acontecia o tempo todo—as pessoas morriam. Ao deixar a sala da diretoria naquele dia, ela parecia estar olhando as secretárias nos olhos, mas na verdade estava prestando atenção em seu batom borrado ou em seu terninho de crepe estampado.
Em casa, à noite, ela se deitava de costas no chão do quarto e prendia os pés debaixo da escrivaninha. Fazia dez séries de abdominais. Depois se preparava para fazer flexões. Sem ser do tipo para meninas. O Sr. Dewitt tinha lhe falado sobre as flexões que fazia no exército, com a cabeça levantada, ou com uma mão só, batendo palmas entre uma e outra. Depois de fazer dez flexões, ela ia até a estante e escolhia os dois livros mais pesados — seu dicionário e um almanaque do mundo. Fazia flexões de bíceps até seus braços doerem. Prestava atenção apenas na respiração. Inspira. Expira.
 

Sentada no mirante da praça principal do meu céu (nossos vizinhos, os O'Dwyer, tinham um mirante; eu tinha crescido morta de vontade de ter um),eu via minha irmã se encher de raiva.
Horas antes de eu morrer, minha mãe pendurou na geladeira um desenho que Buckley tinha feito. No desenho, uma grossa linha azul separava o ar do chão. Nos dias seguintes, vi minha família passar inúmeras vezes na frente daquele desenho e me convenci de que aquela grossa linha azul era um lugar real — um Meio-Termo, onde o horizonte do céu se encontrava com o da Terra. Eu queria entrar lá, no azul-violeta do Crayola, no azul-vivo, no turquesa, no céu.
 

Muitas vezes eu me via desejando coisas simples e conseguindo-as.
Tesouros em pacotes peludos. Cachorros. 
Todos os dias no meu céu cachorros pequenos e cachorros grandes, cachorros de todos os tipos, corriam pelo parque do lado de fora do meu quarto. Quando eu abria a porta via cachorros gordos e felizes, magros e cabeludos, e até esbeltos e pelados. Pitbulls rolavam pelo chão, com as tetas das fêmeas inchadas e pretas, implorando para seus filhotes virem mamar, felizes ao sol. Bassês tropeçavam nas próprias orelhas, tentando andar, cheirando o traseiro dos daschunds, os tornozelos dos galgos e as cabeças dos pequineses. E quando Holly pegava seu sax tenor, ia se sentar do lado de fora da porta que dava para o parque e tocava blues, todos os cachorros corriam para formar seu coro. Eles se sentavam e ficavam uivando. Então outras portas se abriam, e mulheres saíam de onde moravam sozinhas ou com companheiras de quarto. Eu também ia lá para fora, e Holly continuava tocando sem parar, com o sol se pondo, e todas dançávamos com os cachorros — todas nós juntas. Corríamos atrás deles, eles corriam atrás de nós. Corríamos em círculos. Usávamos vestidos de bolinhas, vestidos floridos, vestidos listrados, lisos. Quando a lua estava alta, a música parava. A lança parava. Nós congelávamos. 
A Sra. Bethel Utemeyer, a mais velha moradora do meu céu, trazia seu violino. Holly tocava seu sax de leve. Elas faziam um dueto. Uma mulher velha e silenciosa, a outra mulher ainda uma menina. Sua música ia e vinha, criando um alívio louco e dissonante. 
Todos os dançarinos entravam lentamente. A música reverberava até Holly, pela última vez, passar a melodia para a Sra. Utemeyer que, silenciosa, ereta, histórica, terminava com um ritmo animado.
A essa altura a casa já dormia; essas eram as minhas Vésperas.























uma vida interrompida: memórias de um anjo assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora