1º capítulo

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Trilha: Elza Soares - Mulher do Fim do Mundo

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Laura: a violação da alma

Deixei de lado o profissionalismo assim que sentei naquela cadeira, na varanda para ouvi-la. Naquele momento eu era apenas a sua neta, um ombro amigo ou uma confidente. Era o que ela precisasse que eu fosse. 

Ela estava ali, diante de mim, mas não exatamente como todas as outras vezes. Suas mãos estavam mais trêmulas do que jamais estiveram em qualquer outro encontro que tivemos. Seus cabelos brancos deixavam evidente que já tinha vivido muito e que aqueles mesmos olhos inquietos e distantes já haviam presenciado mais do mundo do que as palavras se fariam suficientes para expressar.

Laura estava pronta para me contar cada parte de sua história, cada parte que a sua memória já um tanto quanto traiçoeira lhe permitiria compartilhar comigo.

E a casa era assim – começou ela - paredes de madeira velha. Algumas já até apodrecidas pelo tempo. O piso era de chão batido e tínhamos poucos cômodos na casa, onde eu e a minha família dávamos um jeito de nos amontoar. Essa história não tem nada de mágica. Não surgirá nenhuma vassoura encantada, nenhuma varinha mágica, nenhum deus grego ou bruxa decrépita. Essa é uma história de Zé ninguéns.

Em frente ao fogão a lenha, cozinhando o pouco que tínhamos na nossa dispensa improvisada, encontra-se minha mãe, Aruana. Uma mulher baixa, pele cor de cuia e cabelos negros que ficavam apenas dois dedos abaixo do seu ombro. Ela é a única heroína dessa história.

Meu pai, Vicente, um homem alto e forte, pele tão clara que de tanto trabalhar sob o sol forte ficava vermelha como um pimentão. Dono de um bigode devidamente aparado, olhos azuis e um carpinteiro com dons de marceneiro. Esse mesmo homem estava trabalhando na lavoura de algum fazendeiro que não sei o nome. Mais tarde, eu e meus sete irmãos ajudaríamos ele na nossa pequena roça, que é de onde tiramos mais algum dinheiro e um pouco mais de comida para completar o quase nada que tínhamos.

Minha família é tipicamente brasileira, como pode perceber. Uma mistura de descentes de índios com imigrantes europeus, mas isso pouco importa porque somos pobres e com muitas bocas para alimentar. A casa onde moramos e a terrinha onde plantamos é arrendada pelo fazendeiro para quem o meu pai trabalha. Vi meus pais discutirem várias vezes sobre a casa e o patrão do meu pai. Minha mãe não acreditava que o patrão do meu pai arrendava a casa e a terra por um preço tão abaixo do que é pedido por ai, e tudo isso sem esperar nada em troca. Pelo o que me lembro, meu pai apostava na bondade do seu patrão e também amigo.

Laura respirou fundo, quase como se buscasse forças pra continuar. Permaneci em silêncio, esperando por ela. Endireitou-se na cadeira, bebeu um pouco do chá e por fim, fechou os olhos e recomeçou.

Meu pai era muito ingênuo. – sorriu com amargura – O nosso relógio de parede tinha o ponteiro menor quebrado no meio. Ele era um "presente" de uma mulher que a minha mãe limpou a casa. Não tinha mais utilidade pra ela. Será que tu já sabes como são as pessoas? Já descobriu como gostam de dar esses tipos de presentes para demonstrar a sua enorme generosidade? Eu vivi muito às custas dessa falsa solidariedade.
Lembro-me bem, quando marcou 12h30, meu pai surgiu na porta. Tirou seu chapéu e o colocou em um dos pregos na parede que usávamos como chapeleiro - ele achava falta de respeito entrar na casa usando o chapéu. E sentou na cadeira que ficava na ponta da mesa, era o seu lugar. O lugar do homem da casa.

Posso te dizer que era um dos poucos momentos que todos se reuniam. Na maior parte do tempo, estávamos todos ocupados em dar um jeito de sobreviver a toda a miséria que nos cercava. Não era só comida, roupa e dinheiro que faltavam ali. Quando digo miséria não é só financeira ou material, minha querida Cecília. Existem outros tipos de misérias no mundo. A pobreza de espírito é a pior de todas.

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⏰ Última atualização: Jun 29, 2020 ⏰

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