Poderia ser um fim de tarde como qualquer outro.
Poderia ser uma sexta-feira normal e trivial. Eu sairia do estúdio e de carro faria o caminho de poucas quadras até minha cafeteria predileta.
Como sempre, pediria um chocolate quente cremoso com muito chantilly e canela.
Porém, especialmente naquele dia, tudo ocorreu fora do normal. Uma confusão total, começar do momento em que caí da cama e percebi que estava atrasado.
O despertador não tocou. Eu nunca me atrasava. Um britânico nunca se atrasa. Mesmo que eu não fosse britânico, jamais me atrasaria.
No estúdio, todos chegaram ainda mais atrasados que eu. Todos mal humorados, estressados e sem nenhum pingo de inspiração que nos ajudasse.
A chuva era torrencial do lado de fora, sendo assim, ninguém se atrevia a sair. Todos estavam obrigatoriamente presos dentro do estúdio.
Lá pela hora do almoço, a chuva cessou com sua revolta, talvez com muito boa vontade nos ouvidos, uma melodia surgiu aleatoriamente das cordas do meu violão. Alguns tentaram me ajudar, sugeriram letras e refrões, porém nada harmonizava.
Havia algo errado com todos nós.
Faltava alguma coisa. Faltava alguém.
- Alex! - me chamou Jhon, vocalista e guitarrista de uma das bandas que eu produzia.
Ele era um popstar perfeito, tinha boa aparência e um talento nato para música.
Eu estava totalmente focado em tentar criar algo que, sem perceber, tinha entrado em um mundinho só meu por alguns instantes.
- Sim, dude. Chega aí! - indiquei a cadeira ao meu lado.
O rapaz de cabelos encarnados e lisos, tímido e desajeitado, com roupas estilosas e as mãos guardadas nos bolsos de sua calça jeans de grife preferiu se encostar na bancada onde ficava os comandos de P.A. frente à cabine de som.
- Dia ruim, não é mesmo? - começou Jhon.
- As vezes isso acontece... Não somos máquinas. - ri simpático.
- Cara, já são cinco da tarde. Se não conseguimos nada até agora, duvido que conseguiremos mais tarde. - tirou as mãos dos bolsos e cruzou os braços - Estamos bem adiantados.. Acho que poderíamos nos dar uma folga essa noite.
- Isso não é totalmente uma má ideia.
- Então, vamos descansar. Nosso último show da turnê é amanhã, vamos comemorar isso desde já.
- Tem razão, garoto. O2 arena espera por vocês amanhã.
Me senti aliviado em poder sair daquele estúdio.
Guardei meus materiais na bolsa e o violão no case, me despedi dos rapazes e os desejei boa sorte. O dia seguinte seria cheio e emocionante.
O final da tarde tinha aquele ar úmido e frio, calçadas molhadas, mulheres de cardigan e crianças de galocha. Todos buscavam um lugar ao qual se abrigar, fosse uma cafeteria ou qualquer outro lugar aquecido.
As ruas tinham um pouco de trânsito, e o caminho que julguei curto e rápido, demorou mais do que eu imaginava.
Aumentei o volume do rádio quando ouvi o novo single dos garotos tocar e me senti orgulhoso de todo o trabalho que havíamos feito e continuávamos a fazer ao longo do tempo.
O sininho anunciou minha chegada à cafeteria ao abrir a porta. O cheiro maravilhoso de café invadiu meu olfato como um doce afago, o ambiente era reconfortante e as pessoas pareciam felizes lá dentro, sendo rindo acompanhadas por um grupo barulhento de amigos, ou apenas caladas e reflexivas com a beleza da vida enquanto apreciavam um gole fabuloso de seus chocolates quentes com raspas de limão.
- Um chocolate quente cremoso com chantilly e canela, por favor. Ah, e uma porção de cookies tradicionais. Obrigada.
A garçonete anotou o pedido e se distanciou em direção ao balcão.
Aquele foi o momento em que relaxei, lembrei de bons momentos e deixei que um leve sorriso surgisse em meus lábios, desejando a companhia de uma bela garota à qual pudesse compartilhar risadas.
Observei os quadros na parede, o movimento das pessoas entrando e saindo. Olhei para o chão, vários pares de pernas debaixo das mesas e... Sob uma das mesas havia um par de pernas femininas com o pé direito chacoalhando de modo ritmado e frenético. Peculiar como alguém que conhecia. Aliás, só havia uma pessoa no mundo inteiro que balançava o pé daquela forma. Mas não podia ser... Olhei de novo aquele par de botas pretas. Subi os olhos, o cabelo castanho lustroso e de pontas onduladas batia na cintura, tinha obviamente um livro em mãos e os olhos me encaravam desafiadores, escuros e profundos, do mesmo jeito em que os conheci muitos anos atrás.
- Helena Holloway... - sussurrei surpreso.
- Alex Dallas. - cumprimentou, sorriu e me jogou uma piscadela.
Subitamente, meu coração acelerou e meu corpo esquentou.
Era ela.
A garota que foi minha melhor amiga desde a creche. A garota à qual fui apaixonado o colegial inteiro. A garota que há anos não via.
Mais linda do que nunca.
Minha única resposta foi sorrir.
Helena se levantou e, sem nenhuma cerimônia, sentou-se à mesa comigo. Sempre com o mesmo ar audacioso e confiante. Sempre exalando o mesmo perfume francês com essência floral e cítrica.
E eu ainda era apaixonado por ela.
Apaixonado pelo sorriso escancarado, a risada mais engraçada que a piada, os olhos indecifráveis, as bochechas macias, o cabelo cheio de ondas perfumadas e a voz... A voz de um anjo.
- Me diga, o que faz por aqui, Alex? - indagou Helena.
Por um momento esqueci como se falava. Esqueci do mundo, porque tudo o que havia era Helena, e eu não acreditava que ela realmente estava ali, bem na minha frente.
Voltei à realidade em um estalo.
- Ahn... Bem, tomando um café depois de um dia de trabalho. Você acredita que quando entrei aqui, lembrei muito de você? - respondi finalmente.
- Acredito. Nós adorávamos ir à cafeterias quando morávamos em Los Angeles.
- Você ainda é tão viciada em café quanto naquela época?
Helena riu. E isso foi como ressuscitar. O doce som de sua risada.
- Você nem imagina o quanto!
- Meu Deus, Hell! - ri.
- Nossa, Alex! Dez anos que não ouço esse apelido? - riu - Só você me chamava assim, e eu odiava.
- Justamente, por isso a chamava assim.
- Bons tempos, Dallas.
Nossos pedidos chegaram ao mesmo tempo.
Eu odiava café e amava chocolate. Ela amava café e odiava chocolate.
Ainda éramos a mesma antítese que se completava.
Após um longo gole de seu café expresso, Helena disse:
- Você continua um franguinho que toma chocolate quente. - provocou com um sorriso de canto.
- E você continua a mesma louca, fascinada por café. - bebi o chocolate - Porém, está muito mais linda do que eu lembrava.
Por um momento ela ponderou se diria algo, suas bochechas coraram e Helena apenas sorriu ao agradecer:
- Obrigada, Alex.
Então, me observou profundamente:
- Você também não está nada mal. - gargalhou - Gostei do corte de cabelo, parece ter mais músculos do que me lembro e deixou de usar óculos. Seus olhos são lindos, não lembrava disso.
- Por que nunca mais nos falamos? Como isso aconteceu?
Helena suspirou.
- Bem, nos formamos, fomos ao baile de inverno juntos... Depois disso, você foi aceito logo no primeiro semestre de Juilliard, eu recebi uma carta de aprovação para Arts College of London... Nos vimos uma única vez no feriado de natal daquele ano, desde então, nunca mais.
- De vez em quando via notícias suas na internet.
- Eu que o diga. Você sempre está na internet, senhor famoso.
- Vejamos, você se formou em artes cênicas três anos depois, no mesmo ano conseguiu um papel incrível em um filme incrível e ganhou muitos prêmios como atriz revelação por causa da atuação. Lançou um livro no ano seguinte e foi considerado best-seller pelo The New York Times. Criou sua própria grife. Gravou um clipe de caridade para Comic Relief e foi para Gana. Atua em uma das melhores séries de TV atualmente e está sempre em tapetes vermelhos promovendo seus filmes e recebendo prêmios.
Helena estava pasma com meus conhecimentos, riu incrédula e endireitou a postura.
- Ok - riu - Você se formou, conseguiu um contrato na Capitol Records e regressou à LA. Um ano depois ganhou um Grammy por compor a melhor música do ano. Recebeu uma proposta de Simon Cowel e assinou com a Sony Music como produtor, compositor e engenheiro musical. Você se deu tão bem que hoje é dono de sua própria gravadora, dono dos melhores selos e tem seu império. Ah, e é jurado do British Got Talent.
- Wow... Você sabe mesmo das coisas - ri.
- De um jeito ou de outro, você nunca esteve longe de mim.
- Você também não, Hell.
Helena buscou minha mão sobre a mesa e a afagou. A mão macia sobre a minha, o toque quente.
Àquela altura o café já havia acabado.
- Você está livre essa noite? - perguntou ela.
- Vai me convidar para uma aventura?
- Como nos velhos tempos. - sorriu.
Levantei a chave do carro e pagamos a conta.
Segurei a mão de Helena e partimos. Do lado de fora do estabelecimento o frio nos afogou, a temperatura havia baixado alguns graus.
- Venha - abri os braços - Me dê uma abraço.
Helena nos guiou até um ringue fechado de patinação.
- Vamos! Vamos nos divertir! - cantarolava Hell.
- Let's do this, girl! - entoei.
Ela alugou patins para nós e entrou na pista antes de mim.
Ela patinava muito bem, adorava se exibir com manobras e passos de dança sobre as rodas do patins. Eu fazia o que sabia.
- Lembra dessa música? - questionou enquanto rodopiava perto de mim.
- Claro, você me fez aprender a coreografia - ri.
O som de LA LA LAND ecoou por toda a arena.
- Ainda consegue fazer a coreografia?
Agarrei sua cintura e a conduzi de acordo com o som.
Todos se afastaram para nos olhar, alguns filmavam, outros aplaudiam.
"You and me in la la la la land..."
E assim a música acabou e nós paramos no tempo certo, ofegantes.
Recebemos mais aplausos e ela me abraçou.
Depois de mais meia hora patinando, conversando e rindo, uma ideia me ocorreu.
Ofereci a mão e a levei.
***
- Alex, o que estamos fazendo na O2 Arena?
- Só vem! - ri.
- Por que trouxe o violão?
- Ah, meu Deus! Algumas coisas nunca mudam, e você continua uma matraca.
Gargalhamos.
As portas se abriram diante de nós em uma imensidão vazia.
Os milhares de assentos estavam desocupados, o palco iluminado para teste e vez ou outra se via um funcionário perambular pelos arredores executando alguma função, preparando a arena para o grande show do dia seguinte.
Caminhamos de mãos dadas até próximo ao palco e ela parou o passo. Voltei o olhar para seu rosto e captei o momento exato em que uma lágrima de emoção escorreu por sua bochecha.
- Eu não acredito que vai fazer isso... - sussurrou Helena.
- Eu vou realizar seu sonho, Hell. - sequei seu rosto.
- Não consigo acreditar que ainda se lembra disso... Nós tínhamos doze anos.
- Como eu esqueceria? Eu jurei trazê-la à este lugar, prometi que cantaria em uma arena vazia, para que apenas eu a ouvisse, para que se sentisse como a estrela solitária que sempre visitou seus sonhos.
- Alex, eu não sei o que dizer...
- Não diga nada, guarde sua voz. Agora, vá! Suba no palco e me espere.
Subi as escadarias da arena correndo, cumprimentando aqui e ali alguém da equipe de turnê.
A cabine de som estava vazia. Ótimo.
Ativei os comandados, regulei como pude os graves e agudos, liguei o microfone principal do palco, o violão... Voalá! Tudo pronto.
Havia um único holofote ligado sobre o palco, iluminando apenas Helena. O pedestal estava lá à sua espera.
- Vá. - entreguei-lhe o violão.
Ela o recebeu, meio desajeitada se posicionou, dedilhou alguns acordes, enquanto me sentei em um dos assentos da primeira fileira.
- Essa música é pra você, Alex - a voz de Helena inundou a arena - Na realidade, é a nossa música. A música que sempre tocou pra mim, a mesma que cantei para você quando nos despedimos... Misguided ghosts.
Helena tocou tão bem a introdução da canção que duvidei se realmente era ela à tocar.
Mas é claro que era. Mais real do que nunca.
Observei cada detalhe seu, os olhos viajando pela grandeza do lugar, a maestria ao tocar o instrumento, o jeans desbotado, as botas pretas, o cabelo brilhante como um manto escuro a lhe cobrir, a liberdade que sentia.
"I'm going away for awhile, but I'll be back, don't try to follow me, cause I'll return as soon as possible.
See I'm trying to find my place, but it might not be here where I feel safe, and we all learn to make mistakes, and run from them, from them... With no conviction.
We'll run from them, from them, with no direction.
Because I'm just one of those ghosts, travelling endlessly.
Don't need no road, in fact they follow me... And we just go in circles.
Now I'm told that this is life, the pain is just a simple compromise.
So we can get what we want out of it.
Someone cared to classify, a broken heart, a trusted mind. So I can find someone to rely on and run to them, to them... Force speed ahead.
Oh you are not useless, we are just... Misguided ghosts, travelling endlessly.
The ones we trusted the most, pushed us faraway.
And there's no one road we should not be the same. Cause I'm just a ghost, and still they echo me... They echo me in circles. "
Eu era o único a expectar o momento. O único à aplaudi-la. Porém, de alguma forma, aquilo foi suficiente para Helena, pois o sorriso emocionado em seu rosto foi impagável.
Ela parecia sentir-se completa, eufórica.
Ainda sentado, eu me sentia fora de órbita, em algum lugar indescritível da galáxia, viajando pela beleza do universo.
A voz de Helena ainda ressoava em meus ouvidos, fluida e doce, como favos de mel. Ela parecia ser paciente ao cantar, demonstrava a mais alta paciência e calma ao atingir cada nota, ao brincar com seus melismas e breves falsetes, ao baixar o tom.
Helena continuava a ter a voz que mexia com a capacidade dos meus neurônios trabalharem em paz... Ela me deixava de joelhos.
Meu estado de êxtase foi interrompido quando ela desceu do palco, segurou minha mão e disse:
- Você continua o mesmo louco, Alex Dallas. Eu não sei como te agradecer por isso. - pôs a alça do violão no ombro, me abraçou e repousou a cabeça em meu peito. - Alex?
- Sim, Hell.
- Eu... Eu estou com fome.
Esse foi momento que explodimos em risos.
- Subway? - sugeri.
Helena me fitou com um olhar apaixonado e disse com voz doce:
- Isso foi como ouvir um pedido de casamento.- riu.
***
Após disputarmos quem comia mais rápido um sanduíche de trinta centímetros, a fome foi saciada. Todavia, ambos de nós ainda queria a companhia um do outro por mais algumas horas.
Fomos à London Eye, andamos de mãos dadas sem nenhum constrangimento, como se o tempo jamais tivesse passado. Falamos de nossas vidas, contamos piadas sem graça que naquele momento nos arrancaram risos de tirar o fôlego, olhamos o céu, sentimos a brisa fria sobre a ponte, andamos por calçadas movimentadas.
Voltamos à rua principal e nos escoramos no parapeito, o rio à poucos metros debaixo de nossos pés, as lanchas iluminadas passavam deixando a melodia de alguma música no ar.
O frio havia se intensificado.
- Me sinto com dezessete anos outra vez. Você faz com que eu me sinta assim, eufórico. - sorri ao ver seu sorriso.
- Me sinto infinita. - disse escancarando um sorriso brincalhão.
- Citar The perks of being a wallflower não vale... Clichê demais para alguém como você. - retorqui no mesmo tom.
- Você que é clichê, Dallas. - riu.
Helena checou o relógio de pulso.
- Meia noite em ponto, Dallas. Faça um pedido.
Um trovão ressonou no céu, um vento muito forte nos atingiu.
- Me diga um desejo seu que ainda não realizou, Hell.
- Nunca beijei na chuva. - sorriu.
Levantei meus olhos ao céu e disse:
- Hoje é seu dia de sorte, garota.
Outra lufada de ar frio nos envolveu com enorme força, os cabelos de Helena se agitaram ao redor do seu rosto e, lentamente, uma chuva de pingos grossos caiu sobre nós. À princípio fraca, intensificando-se a cada instante, ensopado nossos cabelos e encharcando cada camada de nossas roupas.
- Esse é aquele momento em que você me beija? - perguntou Helena.
A puxei pela cintura até que seu corpo estivesse totalmente colado ao meu e olhei no fundo dos olhos castanhos que eu tanto me derramava.
- Esse é o momento que digo à você que minhas mãos foram feitas para encaixassem em sua cintura, que seu corpo foi talhado para juntar-se ao meu, que meus olhos foram projetados para fitarem os seus, que você foi feita pra mim e que minha boca foi feita para beijar a sua.
Senti os braços de Helena envolverem meu pescoço. Nossos rostos se aproximaram até que nossas respirações falhadas se tornassem uma só.
- O tempo não passa para nós dois, Hell. - sussurrei aos seus lábios.
- Esse é o momento em que me beija, Dallas. - afirmou em um sussurro quase inaudível.
Segurei seu rosto com uma das mãos e, finalmente, a beijei.
Beijei como se tivesse toda a eternidade para beijá-la.
Seus lábios eram tão doces quanto sua voz e tínhamos o encaixe perfeito.
Éramos nossa própria antítese e, talvez, tivéssemos realmente uma eternidade só nossa para viver o nosso próprio tempo.FIM