Capítulo Único

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Acordo e em cinco segundos a verdade vem à tona como uma bomba nuclear pronta para matar milhares de pessoas de uma vez. Seu cheiro, suas roupas, suas maquiagens, tudo está ali, menos ela.

— Você vai mesmo ficar aqui? — pergunto virando o rosto para o outro lado da cama vendo seu fantasma — Você não pode falar comigo? Como consegue ser tão bonita mesmo morta?

Morta.

A palavra que evitei por uma semana, mas que começava a fazer sentido em minha mente, mas nunca faria em meu coração porque poderiam passar mil anos e nunca aceitaria sua morte, mesmo com seu fantasma me acompanhando até nossa cozinha.

— Sabe, eu queria poder dormir de verdade e não apagar quando o cansaço me vencer, porque sei que sonharia com você me dizendo que ficarei bem. — comento pegando uma panela da pia para lavá-la pela primeira vez desde o dia que ela se foi.

Meu coração está num buraco ou tem um buraco no meu coração, ainda não consegui me decidir quanto a isso. 

Estive ocupado demais ignorando o mundo ao chorar ou adormecer e as vezes fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, mas hoje é dia da limpeza e ela sempre me fazia acordar bem cedo para limparmos nossa casa.

Eu penso em comer, mas como comer sabendo que ela nunca mais colocará alimento algum em sua boca?

Vejo seu fantasma translúcido me observar lavando a louça suja do nosso último café da manhã juntos, a última xícara manchada com seu batom vermelho e sinto que poderia explodir em amor, ódio e lágrimas, tudo ao mesmo tempo.

Quem sabe assim eu possa chegar até ela...

O mais odioso não era sua imagem ter começado a me perseguir quando o médico contou que ela tinha me deixado, mas sim o fato de seu fantasma não ter nem um pouco de maquiagem e que aquele vestido branco e longo nunca seria usado por ela no mundo real.

Porque é assim, nunca mais ela será do mundo real, seu corpo já foi enterrado por seus pais, seu emprego já a tinha substituído e ninguém nunca mais ouviria falar de Lilian Mendes. Simples assim. Até sábado passado ela existia em um minuto e no outro não.

Tudo por culpa de uma bala perdida.

UMA MALDITA BALA PERDIDA.

Limpei a cozinha no automático e meu coração se encheu de esperança quando voltei ao nosso quarto e pensei ter visto seu vulto, mas o fantasma ao meu lado me fez voltar à realidade. Podia ter alguns fios de cabelos negros e enrolados dela no ralo, alguns sapatos ao lado da cama e a camisa Zepplin, que ela usou para fugirmos e casarmos, na porta do guarda-roupa, mas eram apenas resquícios da sua vida. E agora eu os limpava incessantemente porque quando a pedi em casamento sua única exigência, além do meu amor eterno, foi limparmos nossa casa todo o sábado.

E eu vou cumprir. As duas promessas.

— Lembra quando nossos pais disseram que éramos jovens demais? — Encarei seu fantasma tentando evitar que mais lágrimas caíssem, mesmo que duvidasse ainda ter alguma — Que éramos burros demais para saber coisas sobre o amor?

Ela não respondeu, mas se sentou na cama e arqueou as sobrancelhas enquanto eu guardava seus sapatos.

De que adianta arrumar tudo se a bagunça continua crescendo dentro de mim?

De que adianta conversar com seu fantasma se eu sei que ela não vai responder?

Meu celular toca e fico aliviado por não ser a campainha dessa vez. Acho que a minha mãe finalmente entendeu que eu só preciso ignorar o mundo — que dolorosamente e irritantemente caminha do mesmo jeito sem minha esposa — por um tempo, mas não se contentou e agora vai ficar ligando de hora em hora.

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