Parte I

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Olhei ao redor duas vezes. Talvez três, antes de encaixar meu carro perfeitamente no cubículo destinado a ele. As vagas haviam sido sorteadas novamente, a pedido da maioria dos condôminos, que reclamavam que as melhores vagas pertenciam às pessoas com menos necessidade de espaço – pessoas como eu, que tinha um pequeno Ford K ao invés dos reclamões que dirigiam enormes SUVs. Não que eu me importasse; para ser sincera, a vaga isolada veio a calhar em um bom momento.

– Emília? – fechei meus olhos em pesar antes mesmo de trancar o carro. Maldita hora que decidi fazer as compras do mês em mercado que não era 24 horas. Só porque o quilo do tomate estava mais barato e eu simplesmente não consigo viver sem minha fruta favorita. – Emília, do 151A?

Prazer, meu nome é Emília. Emília do 151A. Também conhecida como a guru do amor. Pelo menos é assim que as pessoas se referem a mim.

Se você me perguntar, lhe direi que sou mais uma amaldiçoada.

Minha família tem um dom. Veio de mãe para filha. Filha mais velha, considerando que sou a primeira de quatro garotas, e minha mãe é a mais velha de duas.

Nós, como meu pseudônimo diz (o segundo, não o que informa o número do meu apartamento), trazemos o amor que a pessoa deseja. Não é como aqueles anúncios "TRAGO SEU AMOR IMEDIATO" ou qualquer outra farsa que as pessoas inventam para abusar das mais, hum, sensíveis.

Meu dom é bem simples. As pessoas trazem a foto de quem quer que se apaixone por elas, eu visualizo a foto, dou algumas dicas do que a pessoa tem de fazer – só para ela não se sentir excluída do processo todo – e jogo um pó produzido por uma árvore de cerejeira que cresce na fazenda dos meus avós. A árvore, mágica, é sempre muito eficiente em proliferar seus pólens e produzir mais árvores, de modo a acompanhar as gerações da nossa família.

Uma vez por ano, no dia de São Valentin, ao invés de sair em encontros com meus amores (nunca tive um), devo comparecer ao ritual de renovação de votos, onde eu, mamãe e vovó prometemos usar o pó para benefício geral, não próprio. Como qualquer coisa que se parece com uma profissão, há regras a serem seguidas:

1. Não desacreditar no poder do amor;

2. Quando lançar a magia, exalar os sentimentos mais sinceros (é bem difícil, mas com o tempo a coisa vai se tornando mais automática);

3. Não desejar o mal do casal a ser unido;

4. Nunca negar atendimento a um(a) necessitado(a) (o ser que criou essa regra não sabe quão importuno foi);

E, o mais importante:

5. Não quebrar a corrente do amor.

Não ache que a cada vez que atendemos uma pessoa, ganhamos algo em troca. Não podemos cobrar pelo serviço, já que a regra fundamental da magia de San Valentin diz que cada vez que cobrarmos, perderemos um item importante de nossa vida. Contudo, se as pessoas, por vontade própria, querem me dar um agrado, não preciso recusar, já que gratidão para muitos significa bens materiais. Além disso, vovó costuma dizer que San Valentin nos presenteia com itens valiosos, de modo a nunca deixar que passemos por dificuldades, afinal, o Santo também entende que seres humanos precisam ser recompensados. Isso pelo menos garantiu que eu nunca tivesse problemas financeiros ou em qualquer outra área que não fosse o amor. Não que eu tenha sorte e seja rica. Eu só não tenho o azar de perder um emprego e não encontrar outro, ou morar em um lugar legal, com um proprietário gente boa. Ou ganhar quilos desnecessários. Posso comer muita coisa e não engordar tanto.

A Maldição de San ValentinOnde histórias criam vida. Descubra agora