Neste momento de epílogo, uma segunda-feira enevoada, lembro-me da minha primeira viagem de barco na região amazônica. Durou um 'século' de dias, imaginava-me como Caronte indo para as profundezas do Submundo, pronto para levar as almas em troca de óbolos. Meu destino: o Leprosário San Pablo de Loreto. Graduei-me como médico na Universidade do Brasil e fui aluno do professor Carlos Chagas, o descobridor do 'mal' que acomete quase todo um continente. Um ser minúsculo com o nome em homenagem icônica a um grande médico e mentor, que faz o coração crescer até explodir, além de tirar todo o vigor de uma vida produtiva. A imagem do professor me assombra e me cativa. Senti um arrepio congelante na espinha quando o vi na sala de aula. Vi a presença de homem negro dançando, coberto de um cobertor de palha da cabeça aos pés, que lhe cobria as feridas sangrantes de seu corpo. Nasci em um município do Recôncavo Baiano, família de boas posses e tradicional. Meu avô, deputado estadual, sempre quis que seu único neto fosse advogado ou médico. Mas não fui me fazer médico na faculdade de Medicina em Salvador, pedi para ir à capital federal. Algo me puxava para as águas frias da Guanabara.
Adolescente, senti que seria médico quando pisei na primeira vez em um terreiro. Aquele homem negro dançando. Dancei envolto nele, e no final o mesmo me carregou em seu colo sem dificuldades, me colocou sentado em uma cadeira e me deu uma coroa de espinhos. A última parte eu não entendi, mas tinha a certeza de uma profissão para o resto da vida. Mas nunca vi o outro, o necessitado, o paciente. Não tive a experiência do cuidado, mas em meus sonhos, aquele homem negro de aparência igual a São Lázaro me falava que as feridas estavam em mim, não no outro. Minha relação com os orixás vem de família e da cultura em que estamos embebidos. Minha mãe, embora branca, falava que minha tataravó era uma hauçá vinda escrava de terras nigerianas, que fez-se encantar com um dos herdeiros da família Dias d'Ávila. O resto é história.
Tive vários encontros com esta figura mítica, e me lembro quando me deparei na minha primeira aula com o Drº Carlos "Chagas". Foi dali que me vi como médico de doenças tropicais e parasitárias. Depois da faculdade, já nos estudos mais avançados no Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, encontrei-me novamente com o professor 'Chagas' nos funerais do mestre Oswaldo Cruz. Todos o viam como sucessor da grande lenda sanitarista, que contra tudo e contra a todos, salvou a capital federal de um desastre epidêmico. Vendo aquele homem franzino, amigo e conhecido de vários cientistas de reconhecimento mundial, era difícil acreditar de como era injustiçado e não devidamente reconhecido e nem festejado por ser, apenas, brasileiro. Antes de me despedir de meu mestre, ele me fez um convite. Queria que eu fizesse um trabalho de campo em um dos rincões amazônicos da América do Sul e que achasse evidências científicas da existência endêmica do 'mal' o qual batizou com o seu nome. Aceitei e perguntei o porquê e o objetivo. E ele me respondeu: "Quero achar as evidências da existência deste 'mal' não só nesta região, mas em quase todo continente americano. Tenho pesquisadores na Bolívia, nas Guianas, no Caribe, na América Central e no México. Disseram que não mereci o 'Nobel' por conta de uma doença encontrada apenas no território brasileiro. Veremos!" Indaguei-o novamente se isto era pelo 'Nobel', e ele foi enfático: "Não! Devemos saber de sua abrangência, e saber trata-la! É o que importa! O 'Nobel' se vier, será por consequência!"
Peguei o vapor até Buenos Aires, e de lá uma viagem de quase quinze dias em um cargueiro chileno até Lima. De trem da capital peruana até Madre de Dios, terminando a viagem de barco pelas águas turvas amazônicas até a região onde se encontra o Leprosário. Vinte e dois meses depois, não cuidava apenas de pacientes acometidos com lepra, mas de outras doenças tropicais como leshimaniose, malária, além de pneumonias, tuberculose, acidentes ofídicos, e um outro tipo de 'mal sin fiebre' que os locais conheciam muito bem. Mandava as amostras destes pacientes da tal doença estranha para Lima, antes da chegada de materiais que pedi ao meu mestre como microscópio, outros apetrechos e equipamentos. 36 casos confirmados do 'mal' de 'Chagas', tal qual igual aos do Brasil. A mesma ocorrência da doença foi observada e certificada nos demais lugares mais remotos das Américas. Era o ano de 1921, e os doutores e laureados do 'Nobel' indagaram os dirigentes do governo brasileiro sobre os trabalhos de meu mestre. Todos na expectativa do prêmio em que o professor 'Chagas' colocaria, também, os nomes de todos os integrantes de sua equipe, inclusive o meu.
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Omulu Injustiçado
Historical FictionConto sobre uma personalidade brasileira, fazendo alusão aos orixás.