Vida Incerta (ou Morte Certa)

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Ele estava confiante, inabalável, sem medo do improvável.

Só se esqueceu que o improvável não é impossível.

E num procedimento de rotina, numa tarde aparentemente tranquila, dentro de uma nave revisada há pouco, ele viajava, sereno. Mas no meio da tranquilidade contagiante, eis que surge uma onda eletromagnética, vinda sabe se lá de onde. E tão improvável quanto chineses e russos terem formado um único império no século XLII, tais frequências perigosas alcançaram o motor da nave, onde a comunicação do MDC (Manual Direction Control) com os propulsores foi interrompida por interferência.

Por 30 minutos ele nada percebeu.

"45º à esquerda, por favor", ele pediu, num tom até educado demais para falar a uma máquina.

Como já sabemos, não foi atendido.

"45º à esquerda", pediu novamente, bem rude desta vez (mesmo sendo uma máquina).

Mais uma vez, seus esforços foram em vão.

Na tela, piscou a mensagem: "MDC unresponsive".

"Desligar propulsores", com a calma de quem deseja pensar com clareza.

Sua ordem finalmente fora respeitada.

Ele parou e refletiu. Porém não havia solução prática disponível a seu ver. Este modelo ainda não possuía auto reparo, pois só era usado para vigia de perímetro, operação de curta duração e distância. Estava jogado, portanto, à sorte da inércia, que o manteve em velocidade constante de 6200 km/h rumo ao desconhecido.

Percebeu quão errada foi a decisão de aceitar aquele trabalho. Vigiando um satélite distante como este, qualquer sinal de ajuda levará dias, talvez semanas, até ser recebido, e então pode já ser tarde demais. Ainda assim, sem saída, emitiu um SOS em todas as direções, para qualquer nave ou estação espacial próxima.

Por 30 dias ele, ainda que com medo, viveu.

Na tela, piscou a mensagem: "Asteroide a 110.000 m".

Não fosse esta uma nave tão obsoleta, seu sistema ADC (Automatic Direction Control) já teria iniciado o desvio de rota automático assim que a colisão fosse prevista. Mas não, ele tinha apenas um absurdo MDC a sua disposição, que agora não funcionava.

Instantes depois ouviu o alerta sonoro da nave: "60 segundos para o impacto".

Antes apenas com medo, agora o terror absoluto o possuiu. A mera ideia de morrer esmagado na superfície de um asteroide e nunca ser encontrado, esquecido num canto do espaço a mais de dois milhões de quilômetros de casa, era desesperadora. Logo, vivenciava a sua própria marcha fúnebre, a quase 2 km/s, num canto desconhecido de nossa galáxia.

"50 segundos para o impacto".

Como sua esposa reagirá ao seu desaparecimento? E suas filhas então? Tais pensamentos póstumos ocupavam completamente sua mente, o deixando imóvel em seu assento de comando. Lembrou-se do cachorro, que o recebia alegremente todos os dias, e que agora ficaria na espera. Lembrou-se da conta em aberto na cantina da ISS (International Space Station), onde ninguém sabia que ele sequer tinha família, e que agora ficaria sem pagar. Mal sabia ele que, alguns meses atrás, sua mulher e suas filhas tinham sido removidas da Terra. Os 3 anos de solidão sem comunicação são um preço caro a se pagar ao participar de uma missão da Aliança Militar. A vida de piloto espacial paga bem, porém é proibido ter família. E se agora descobrissem, investigando sua vida mais a fundo? A sensação de culpa e de arrependimento substituía aos poucos o terror em sua mente.

"40 segundos para o impacto".

3 de novembro de 4968. Sessenta anos recém-completos, e finalmente ele poderia se alistar para a carreira que sempre quis: piloto da Aliança Militar. Apesar de todas as suas limitações, são os empregos mais bem remunerados disponíveis para quem só estudou até o Nível 5. Já planejava isso desde quando se casou, 5 anos atrás: união apenas religiosa, para garantir que nada a respeito constasse nos registros oficiais. Juntou suas economias e partiu à base Daniel Johnson, na superfície lunar, para o alistamento. Passou fome nos dias que se seguiram, mas sobreviveu bravamente todo o período de seleção, o suficiente para ser convocado e poder se recuperar nos quartéis antes de começar seu treinamento. Pelos próximos 8 anos treinou arduamente, tanto suas habilidades básicas quanto as específicas para o cargo de piloto que tanto almejava. Depois desse tempo de isolamento na base, ele finalmente ganhou permissão para retornar brevemente à Terra, onde ficou com sua esposa sem ninguém desconfiar. Voltando ao serviço, foi nomeado Ajudante de Mecânico, cargo onde mostrou tamanha competência e determinação que em dois anos e meio já estava sendo promovido a Supervisor de Reparos. Claro que a rápida ascensão de um funcionário promissor causou a reação costumeira daqueles que não se empenham tanto, mas isso não o abalou nem um pouco. Na década de 80 passou por muitas boas histórias e algumas poucas situações de risco de vida, e teve algumas oportunidades para ver sua esposa, nos feriados mundiais de anos ímpares. Enquanto seus colegas se embriagavam e curtiam a vida noturna, ele passava todo o tempo com sua esposa, sob a desculpa de que ia ver os pais no interior. Foi recebido em 4988 com o que tanto sonhava: o cargo de Piloto Oficial de Carga.

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⏰ Última atualização: Jan 07, 2019 ⏰

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