Após as adversidades caídas sobre sua família, Silas andejou, em silêncio e solidão, por tempos incontáveis. Em algum momento, deparou-se com infindáveis arvoredos protegidos por uma névoa sempre presente que, ouviu falar durante sua jornada, era conhecida por Floresta dos Compungidos.
O homem, com seus cabelos ondulados que desciam até os ombros, barba crescida como que não é aparada há meses e uma grande mochila que levava tudo que julgava precisar, adentrou pelo vasto campo verde jade, sem destino. Tocava os troncos com as mãos nuas, mesmo com o intenso frio que fazia. Caminhou por horas, mas nem sentiu, pois a tranquilidade que repousava sobre ele era inédita em anos. Soube, naquele momento, que era o lugar onde deveria estar.
Em sua mochila trazia, entre outras coisas, uma barraca de acampar. Achou um local adequado, montou seu leito e repousou.
Nos dias e meses seguintes, empenhou-se em construir uma cabana. Pequena para não ser facilmente encontrada, grande o bastante para que coubesse lá ele e suas coisas, como o machado, o rifle, ou os alimentos que conseguisse.
Fez da floresta seu lar.
Ficou muito tempo lá. Não tinha calendário, mas sentia que sua vivência entre as árvores já era tão grande quanto o tempo que andejou pelas estradas. E foram anos.
Mesmo que as folhas balançando e a névoa insistente lhe trouxessem alguma paz, as lembranças ainda o machucavam. Era melhor assim, Silas não queria esquecer.
Durante o dia o homem caçava ou coletava frutas, passava a maior parte do tempo longe de sua choupana. Voltava sempre perto de anoitecer, já com algumas lenhas em mãos. Fazia uma fogueira e sentava ao seu pé para esquentar-se. Toda noite encarava dois seres de cabelos dourados numa foto polaroid que guardava no bolso esquerdo da calça. Os lábios finos e o nariz ligeiramente redondo eram de sua esposa. Seus olhos verdes, que na foto estão semicerrados, pareciam saber o que Silas estava pensando no momento. A filha era como uma cópia da mãe, a pele tão branca e pálida quanto, apenas seu cabelo ondulado e curto na altura da nuca a diferenciava de sua progenitora e seus longos cabelos lisos.
Como um ritual, colocava a foto em sua frente, quase encostando nas chamas que queimavam à sua frente. As labaredas do presente pareciam transportar-se para aquele pedaço do passado.
À noite, as únicas coisas que se ouviam era o vento percorrendo as copas das árvores, o estalar da fogueira do homem da floresta, e seu choro contido, pedindo desculpas a quem cujas carnes há muito foram deixadas para trás, mas seus fantasmas ainda se faziam presentes na memória de um solitário.
Certo dia, como outro qualquer, saiu para caçar. Pretendia ir longe, por isso não levou muito peso, apenas o rifle, um facão, uma garrafa com água e uma bolsa vazia, para trazer a caça. Apesar da névoa, sentia um pouco do brilho do sol que tentava atravessar a densa mata. O vento soprava pelas incontáveis folhas de forma tão bela, que era como uma melodia, mas apenas para quem soubesse, ou conseguisse, apreciar.
Vagou por horas floresta adentro. O cansaço já batia, não comera nada pela manhã. Começava a ficar desanimado quando avistou um cervo ao longe. Animal magrinho, até ele deveria estar com fome. Mas era o cervo ou o homem, e este, escolheu a si. Lembrou que, infelizmente, ele já fizera uma escolha assim antes.
Como Silas, seu alvo estava parado próximo a uma árvore. O animal mastigava alguns caules de flores, como quem experimenta uma comida estranha apenas por estar com muita fome. Devia estar a pelo menos trinta metros do caçador. Silas levantou e apontou o rifle, respirou fundo e pôs o dedo da mão direita no gatilho. Subitamente o animal correu, saindo da mira. O homem, confuso, observou ao redor sem saber o que exatamente queria procurar. Latidos e chiados caninos tomaram conta da floresta. Repousou a arma na cinta que envolvia seu ombro e se agachou. Viu então alguns lobos, contou pelo menos meia dúzia.
Arregalou os olhos. A dor de uma série de objetos duros e pontiagudos perfurando o braço direito, próximo do ombro, o fez gritar. Um lobo o atacou por trás e tentava imobilizá-lo. Não conseguiu pegar a faca nem o rifle, a primeira estava no lado direito de sua cintura, e seu braço imobilizado era inútil, o segundo estava repousado na cinta em suas costas, onde o animal o atacara . Sem muitas opções, cerrou o punho esquerdo e desferiu uma série de pancadas no focinho adversário. O lobo grunhiu. Desprendeu suas presas do ombro e daria outra investida, mas o caçador o surpreendeu virando-se rapidamente de frente e lhe aplicando um chute que o afastou desnorteado.
- Não serão meros animais os algozes dos meus pecados! - Exclamou o caçador, ainda no chão, colocando a mão esquerda sobre o ferimento.
Percebeu que outro lobo vinha em sua direção, assim como o que o mordera. Empunhou seu rifle e atirou nos animais. O mordedor foi atingido e caiu desfalecido, o segundo tiro arrancou lascas de um tronco, fazendo o outro lobo recuar e se esconder atrás de uma árvore.
Silas aproveitou o momento, levantou-se e correu sem calcular o destino. Ele agora era o cervo, e o lobos escolheram a si.
Ofegante, corria por entre as árvores, desviando de pedras e demais obstáculos. Sentia a presença cada vez mais próxima de seus predadores. Ouvia o respirar da alcateia, seu desejo por encontrar carne fresca se externalizava pelo volume cada vez mais alto dos passos, rosnados e demais sons dos animais.
O terreno não favorecia Silas, estava descendo muito, o equilíbrio quase não era possível. A névoa, que banhava a floresta, deixava as pedras, o chão, e mesmo os troncos, escorregadios. Deu alguns tiros para trás, para cima, para os lados, procurando assustar os lobos, mas não funcionava.
Em um dos ataques aleatórios o recuo do tiro foi muito forte, o chão mais íngreme e liso, o fez ceder. Vinha correndo, então não só caiu, rolou. Seu corpo se chocava em pedras, grandes, pequenas, duras, algumas pontudas; galhos de árvores, secos e quebráveis, resistentes e perfurantes.
De repente sentiu como se voasse. Despencou de onde rolava. Silas girava sem controle atravessando a copa de uma árvore, batendo em seus rijos galhos, às vezes quebrando alguns, até quando finalmente chegou no chão, quando sua cabeça chocou-se contra uma rocha.

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Floresta dos Compungidos
Mystery / ThrillerO passado de um homem o fez vagar por anos em solidão. Em dado momento, ele cessou sua jornada e fez de uma floresta nebulosa sua casa. Porém, um acontecimento enquanto caçava o fez conhecer uma pessoa que lhe trouxe reflexões e sensações sobre esse...