1980

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Ibirá, assim como uma boa parte das cidadezinhas do noroeste paulista, era economicamente nutrida por duas grandes potências: mão-de-obra agrícola e fofoca. A primeira se resumia à cana de açúcar e plantações de frutas, a segunda, porém, era rudimentarmente proferida pelos cidadãos em um grande tráfego boca-à-boca.
Edgar Castro era o fazendeiro mais rico da região, e sustentava a conta bancária com a venda de suas lavouras. Embora fosse conhecido pela posição social que sua família havia forjado, a reputação de “velho birrento” era sua principal placa de identificação.

- Bom dia, Sr. Castro - disse Joaquim, empuleirando-se na caçamba da camionete.

- Quantas vão ser hoje, afrescalhado? Essa é a melhor remessa de agosto. - respondeu, dando uma cuspidela, de qualquer coisa que estivesse mastigando, no chão.

Joaquim, 21, era um rapaz mirrado, vestia-se com roupas largas e jamais abandonava seu chapéu de palha queimada.

- O Sr. continua rancoroso, precisa se casar outra vez.

- Pois caia fora daí, seu tagarela. Vê se dessa vez compra mais de meia dúzia.

O Sr. Castro riu, dando uma gargalhada rouca. Os dentes amarelos saltavam da boca quando ele a abria, fazendo encalço pra barba mal lavada. Seu rosto era pálido, o que destacava a escuridão de seus olhos. Na flor da idade, houve boatos que aquele olhar atraiu muitos corações, mas no auge de seus quarenta e seis os únicos sentimentos que causava era desprezo e medo, inclusive nas crianças da Rua 4 que insistiam em invadir sua plantação de melancias para banharem-se no Mococa, o rio que ficava atrás da fazenda. Havia outros caminhos, mas aquele era o melhor atalho.

- As vendas têm caído, meu amigo - disse Joaquim - tô tendo que comprar a prazo. Ernesto já nem me dá mais crédito, aquele mesquinho.

- E de onde saiu aquele potrinho que tu comprou? Barato num foi.

- Oxi, homem, tinha minhas economias. Foi minha mulher quem o quis, disse que quer aprender a montar.

- Então se adiante, vá - bravejou Castro dando duas batidas na lataria da camionete. - ainda tenho muito o que fazer.

Joaquim saltou da traseira com duas melancias no braço, unindo às três do chão. Enfiou a destra no bolso da calça jeans e atirou sete grandes moedas para o Sr. Castro, que partiu deixando um pequeno rastro de fumaça. Pelo retrovisor esquerdo o velho viu o nome “Mercearia do Joaquim" desaparecer em meio às árvores da rua Benjamin Machado.
Naquela manhã, Edgar rodou toda a cidade abastecendo cada feira, mercado e quitanda com suas frutas gigantes. Cento e cinquenta cruzeiros cada. A noitinha voltou pra casa, com a caçamba vazia e o bolso cheio.

O velho estacionou em frente ao barracão, deixando o farol aceso por mais alguns minutos enquanto bebericava de seu cantil. A viuvez trouxe-lhe dois maus hábitos: beber em excesso e dormir sem tomar banho.

- Eita, égua - disse, esfregando a mão sobre o painel do automóvel ao derramar bebida. Um segundo depois arrepiou até a espinha, ao ver um vulto passar pela luz.
O velho puxou uma arma do porta-luvas e abriu a porta devagar.

- Suas pestes, eu já não disse que quero vocês fora da minha propriedade? Vou pendura-los no celeiro de cabeça pra baixo.

Ele entornou seu cantil mais uma vez e disparou um tiro pra cima. A mão estava trêmula, mas firme o suficiente para puxar o gatilho quantas vezes fosse preciso.
Mais a frente, próximo a cerca que dava vazão ao Mococa, a vegetação se moveu bruscamente, como se algo (ou alguém) estivesse se esforçando para sair dali.
Mais um tiro, e dessa vez Edgar ouviu um grito. Humano demais para ser um animal, encorpado demais para ser uma criança.

MococaOnde histórias criam vida. Descubra agora