3. A Notificação

2 0 0
                                    

Não existe sensação igual a entrar no seu apartamento depois de um dia cansativo, mesmo se esse apartamento se parecer com um campo de guerra arrasado por décadas de combate injusto. Chutando as roupas e tudo mais espalhado pelo chão, eu me aproximei da mesa e liguei o computador, num ritual tão automático quanto meu reflexo patelar. Joguei o pen-drive sobre a mesa e pensei no choque que alguém sentiria se fizesse a mesma viajem que eu, da casa arrumada do Picerni pra dentro da desolação do meu lar envelhecido e descuidado.

Depois de vestir o pijama, sentei na frente do computador pra terminar de escrever o site, mas antes de começar, uma notificação do Google+ apareceu na minha caixa de entrada. A princípio eu ignorei, já que era só mais uma dessas porcarias sociais que tentam fisgar o público pra depois revender pros anunciantes, mas então reparei no nome. Para minha surpresa, era um aviso de que a Clarice me adicionou em seus “círculos”, seja lá o que isso signifique. Depois de passar alguns segundos tentando decifrar o significado desse gesto, percebi que eu seria arrastado de volta pra esse buraco negro de constrangimento que são as redes sociais, das quais eu me aposentei depois de protagonizar mais desentendimentos do que eu gostaria de admitir.

Eu já tive minha cota de situações embaraçosas lá nos tempo de Orkut, que no começo parecia uma boa ideia, mas logo se tornou um espetáculo de caipirice típica dos brasileiros. O Google até hoje deve odiar o Brasil por causa daquela invasão tupiniquim, que de repente fez a “outra” rede exclusiva dos universitários riquinhos dos EUA muito mais atraente do que o festival de cucarachas do Orkut.

Mas enfim, o problema de receber uma mensagem ou notificação dessas é que você nunca sabe o que realmente isso quer dizer. Na sua mente, um milhão de possibilidades aparecem quando você se pergunta qual é a real intenção da pessoa. Eu juro, se você não tomar cuidado, pode ficar maluco tentando ler nas entrelinhas algo que provavelmente existe só na sua cabeça.

Decidi pensar que a Clarice apenas esbarrou no botão de adicionar – é isso, foi só um acidente. E com essa brilhante dedução, comecei a modorrenta tarefa de convencer as pessoas que a coleta seletiva vai salvar o planeta e todos nós viveremos felizes e saudáveis num futuro tecnológico onde plantas verdinhas crescem nos subúrbios e ninguém morre de fome na África.

Ela enviou a notificação antes de ir pra tal festa? Que estranho. Mas foi só um esbarrão, então não é estranho. Certo, vamos lá, separar o lixo é algo importante. Pra alguém, em algum lugar. Nesse exato momento ela deve estar numa dessas boates escuras com som ensurdecedor, sendo atazanada por vários playboyzinhos com cérebro de minhoca e bolso forrado com o dinheiro dos pais. E que não reciclam o lixo, porque são ricos e não precisam descer ao mundo dos meros mortais que se preocupam com o meio-ambiente.

Que sensação agradável esta de ficar acordado até tarde escrevendo coisas entediantes, com os olhos secos e a mente viajando por onde não deveria.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Aug 30, 2014 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

MemorabiliaOnde histórias criam vida. Descubra agora