Lá estava eu, fitando o uniforme do colégio pelo espelho. Até que era bonitinho, mas não era pra mim, eu não estava nem um pouco preparado pra tudo aquilo.
Suspirei e coloquei os livros dentro da mochila, coloquei meus óculos no rosto depois de vestir um moletom e deixei a alça da mochila sob um ombro. Você vai conseguir, Renjun, tenta não se desesperar, me encorajei. Era difícil saber que eu estava num ambiente totalmente diferente do de antes, e que Park não estaria lá na porta do colégio me esperando pra aula de química.
Park era meu melhor amigo. Uma pessoa incrível. Quase tudo o que sei veio dele, talvez pelo fato de termos crescido juntos e ele ter sido o meu único amigo "fixo". Sentia saudades do que éramos, mas antes dele ter se tornado um bêbado doente de duas-caras - isso porque longe de seus pais, ele se tornava outra pessoa. Mas, na verdade, a culpa era toda deles, ambos eram muito rígidos com o garoto, então ele não via outra alternativa a não ser o filho perfeito que eles queriam; quando longe, ele podia enfim mostrar toda a podridão que continha dentro de si.
Tentei afastar todos aqueles pensamentos, de qualquer forma, eu não gostava de lembrar de Park, isso só me frustrava mais e mais.
O colégio era bonito por dentro, também tinha um clima bom. O corredor principal tinha aqueles armários estilo "High School Musical", e também, perto da sala da direção, havia uma daquelas redomas de vidro na parede com vários troféus - não parei pra ler do que eram, mas havia de vários tamanhos, até medalhas.
Até então não tinha muita gente lá, confesso que fiquei feliz por isso, afinal, seria horrível andar no meio daquele monte de adolescentes de nariz em pé me julgando. "Olha só pra esse garoto, parece um passarinho que a mãe jogou pra fora do ninho", "E esse tique que ele tem nas mãos? Será que não consegue agir normalmente? Parece que vai sair um rio de suor pelas suas mãos, credo", "Volta pro Japão", "Blah blah blah olho-puxado blah blah blah" e mais um milhão de apelidinhos xenofóbicos. E se eles descobrissem algo sobre mim? Ou, sobre Park... corri para o banheiro.
E o café da manhã foi direto pro esgoto, o que deixou minha boca com um gosto ácido terrível. Precisava aprender a controlar meus pensamentos. Saí da cabine e me assustei com minha imagem no espelho; estava muito pálido. Lavei o rosto, peguei minha base na mochila e passei no rosto pra disfarçar. Bem que minha mãe avisou que não seria fácil. E não se passara nem metade do dia.
Fui até a sala da direção e peguei a chave do meu armário, conversei um pouco com o diretor, que me dera boas vindas junto com um abraço esquisito e uns tapinhas nas costas.
A primeira aula era de geografia, então tratei de ir logo pra sala e me sentei na primeira mesa do canto, onde chamava menos atenção pra toda minha esquisitice asiática. Logo, metade da sala foi ocupada, e aparentemente não chegaria mais ninguém. O professor, sr. Harry, felizmente não me fez passar vergonha logo cedo, apenas disse pros outros que eu era novo e pediu para que fossem legais comigo, o que me fez pensar que eu estava certo em esperar que eles não fossem bonzinhos, já que o próprio professor teve que pedir...
Fiquei menos nervoso em saber que tinha uma quantidade razoável de alunos asiáticos ali, pelo menos não me senti um peixe fora d'água. Como sempre, haviam os grupinhos de patricinhas, os esquisitos, os esportistas, nerds e os normais, era um pouco raro ver algum gótico ou algo do tipo, mas também tinha. Eles não eram "separados" como em filmes, tinha uma mistura engraçada. Tipo, vi que uma menina que aparentava ser patricinha era bem próxima de uma "gótica"; ouvi falar que um dos esportistas namorava um dos nerds; isso era legal.
Até a terceira aula, ninguém chegou a fazer alguma piadinha e nem me apelidou, mas na aula de história atiraram uma bolinha de papel contra minhas costas e logo em seguida ouvi umas risadinhas, só que não me dei o trabalho de pega-lo e muito menos olhar pra trás, apenas fingi que não era comigo.
No intervalo tentei aparecer o menos possível, sentei em uma mesa afastada, comi o pêssego que trouxera e quando terminei, peguei um caderninho que usava para desenhar e rabisquei coisas aleatórias, só pra passar o tempo sem ter que olhar pra todo mundo e nem parecer um retardado encarando o nada. Estava quase finalizando um esboço de um pássaro quando um garoto de cabelos verdes me tirou a concentração com um "Você desenha bem. Por que não entra pra aula de artes?" , pensei em responder: porque o mínimo de tempo que eu passo aqui, já é mais que sufocante, mas o que saiu da minha boca foi:
— Obrigado. Bom, talvez porque hoje seja o meu primeiro dia aqui.
— Ah, isso não é problema. Entra! Eu te garanto que pode ser divertido, você até pode ensinar algumas coisas que sabe. O que acha?
— Hm, vou pensar no caso. Prometo. Seu nome é...? — olhei pro seu rosto, dessa vez, e seus olhos, bem, eram como os meus, não idênticos, mas denunciavam totalmente sua genética asiática.
— Isso! — assentiu o menino com um sorriso animado, mostrando seu eye-smile — Chenle, e o seu?
— Prazer, me chamo Renjun — sorri de volta — parece que temos algo em comum, né?
— O prazer é meu — fez uma reverência um pouco exagerada. Ele parecia ser bem agitado — Sim!!
O sinal tocou e ele apenas me lançou um "podemos conversar mais na saída, até mais!" enquanto corria pra algum lugar. Pelo menos eu podia orgulhar minha mãe me gabando por ter tido ao todo um total de uma conversa de um minuto com um aluno.
As outras aulas foram tranquilas, consegui absorver pelo menos setenta porcento de tudo o que os professores passaram. Eu costumava ser um bom aluno – isso antes de ter tido alguns problemas psicológicos – e todos os professores me adoravam onde estudava há uns dois anos.
Não vi nenhum resquício de cabelo verde na saída, então fui pra casa. Devia demorar uns 15 minutos da escola até lá, isso a passos largos e apressados, mas eu não estava com tanta pressa.
Ao chegar, tomei um banho quente, coloquei um dos vários moletons extremamente confortáveis guardados no armário e me joguei na cama. Fiquei olhando pra natureza que envolvia a cidade e as construções, era muito bonito mesmo, bem mais do que por foto. Depois parei de prestar atenção na paisagem, mas ainda a olhando, passei a pensar em várias outras coisas até que peguei no sono.
Por volta das seis da tarde minha mãe me acordara para tomar café com ela, como de costume.
— Como foi a aula? Fez amigos? – seu olhar não desviava do pão que estava cortando.
— Foi normal, só fiquei nervoso... A senhora achou mesmo que eu ia fazer algum amigo no primeiro dia de aula? Eu? Seu filho, Huang Renjun? – peguei um pão, estava tão quentinho que a manteiga chegou a derreter quando a passei.
— Filho, não pense assim. Não chegou a falar com nem uma pessoa sequer?
— Não, só um garoto puxou assunto comigo no intervalo, mas nem dá pra chamar aquilo de conversa — dei de ombros, logo dando uma mordida no pão.
— Por que? — me olhou parecendo confusa enquanto tomava um gole no seu café.
Desde que desenvolvi certos problemas psicológicos, ela passou a se preocupar mais comigo; se tornou mais presente, me chamava pra conversar sempre que podia, pra falar sobre qualquer coisa, às vezes era até insuportável porque mesmo se eu não quisesse conversar de jeito nenhum, ela tentava dar um jeito para que eu falasse alguma coisa . De qualquer forma, isso me ajudou bastante, mesmo que eu não tenha melhorado 100% ainda.
— A gente só se apresentou, ele nem deve ter feito pra de fato querer saber sobre mim ou ser meu amigo, deve fazer isso com todos os calouros.
— Tente ser mais positivo, meu amor. Foi só o primeiro dia, pode ser que amanhã vocês conversem mais — disse e piscou logo em seguida pra me animar. Não deu certo.
— Que seja, pelo menos ninguém caçoou de mim, já é ótimo.
— Viu? Eu disse que não seria horrível.
Assenti e comi o pão em silêncio, deixando o chá por último. Eu costumava deixar por último as partes que eu mais gostava em uma refeição. Aliás, chá era minha bebida preferida no universo, me acalmava bastante.
— Quer assistir um filme? Eu aluguei algumas fitas...
— Sério? — ela provavelmente vira um brilho nos meus olhos, que a fizera sorrir satisfeita — Quero!
— Então vamos, me ajude a tirar a mesa e podemos fazer uma maratona.
Me levantei junto a ela e a ajudei às pressas, enquanto eu lavava a louça, ela preparava as fitas. Fazia tempo que não fazíamos uma maratona de filmes, eu tinha certeza de que como ela sabia que eu adorava, não queria fazer sempre para que não perdesse toda a magia de fazê-lo uma vez na vida e outra na morte.
Quando cheguei na sala, minha mãe já havia colocado.
— E então? O que vamos "maratonar" dessa vez? — me joguei no sofá totalmente esparramado, enquanto ela estava deitada com toda a graciosidade.
— Meu favorito.
Ah não.
Harry Potter, mais uma vez.
Eu até gostava um pouco, mas nunca tive paciência o suficiente pra ver todos os filmes na linha certa e muito menos todos. Já minha mãe era uma potterhead de primeira, parecia uma adolescente; não que exista um limite de idade para ser fã de alguma coisa.
— Mas a gente já assistiu um milhão de vezes... — reclamei.
— A gente vírgula, você sempre dorme. Dessa vez é pra assistir tudo, vamos. São só três deles, os primeiros. Amanhã a gente assiste os outros, ou semana que vem, eu quando preferir.
— Que tal nunca? — larguei a cabeça no encosto do sofá — Mãe, demora muito...
— Para de reclamar e vamos assistir logo — colocou a fita pra rodar.
Fui desumanamente obrigado a assistir todos os três. Harry Potter e a Pedra Filosofal; Harry Potter e a Câmara Secreta; e Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban. Até que não são ruins, se eu pudesse me explicar para a personificação dos filmes, diria "não é você, sou eu". Talvez eu fosse burro demais pro universo cinematográfico de Hogwarts.
Confesso que por alguns minutos eu cheguei a ficar totalmente alheio, pensando em várias coisas aleatórias, me peguei pensando em até coisas que eu nem tinha parado pra reparar desde o dia cujo intitulei de "pior dia da minha vida".
— Aposto que não foi tão sacrificante assim pra você — disse minha mãe assim que começaram a rolar os créditos.
— Imagina...
— Agora vá pra cama, já ta bem tarde, você precisa ir pro colégio amanhã.
Resmunguei e levantei do sofá, dei boa noite e fui pro meu quarto após ser abordado com um beijinho de boa noite na testa.
Liguei as luzinhas de natal que eu havia pendurado na parede e assim as deixei. Subi os degraus da escadinha que dava pra minha cama e, antes de me deitar, deixei os óculos debaixo do travesseiro, como de costume. Eu gostava de dormir com o quarto iluminado pelas luzinhas brancas, bem fraquinhas; também gostava de dormir com as cortinas da janela abertas, ali no caso, da sacada, pra que eu pudesse admirar a vista. E era linda.
Puxei o cobertor grosso e me enrolei nele, tentando me esquentar só mais um pouquinho já que minhas mãos e pés pareciam pedras de gelo, mesmo com moletom e meias.
Cantarolei um trecho de Black Mountain, uma música que eu costumava ouvir bastante, até que dormi sem nem perceber.
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nefasto
RomanceO cheiro de café e livros novos o fazia se lembrar como era a sensação de estar vivo e apaixonado; o de álcool, amaciante e luzes da cidade de madrugada lhe embrulhavam o estômago, memórias que jamais poderiam ser apagadas. Para Renjun, recomeç...