2. A Cobra de Fogo

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Pouco antes de desfalecer por completo, Fernando ouviu um agradável som. Era uma voz, mas soava como a leve melodia produzida por uma flauta doce, um delicado som como ele nunca havia experimentado e entrou como mel em seus ouvidos.

Como que por mágica, uma fina chuva começou a cair ao passo que a criatura começou a gritar como louca soltando Fernando.

Caído, enquanto a consciência voltava para si, o rapaz viu o gigante correr fugindo para longe, aparentemente sofrendo enquanto sua pele esfumaçava, como se queimasse ao toque da chuva.

— O que pensa que está fazendo aqui, jovem? Está atrapalhando minha tarefa.

Fernando ouviu a repreensão na voz aveludada, enquanto uma delicada porem forte mão o colocava de pé.

Diante dele, havia uma mulher de pele negra e cabelos esverdeados em tom bem escuro, olhar firme, constituição forte, voz doce e belas feições. Era baixa, quase da altura de Fernando, mas era adulta. Vestia roupas verdes, escuras, e dessas roupas via-se apenas uma grossa capa, agora encharcada pela chuva, que envolvia seu corpo.

Ela murmurou uma rápida canção, e Fernando se sentiu revigorado de imediato. O que era aquilo? Seria magia?

— Vá embora, jovem. Tem coisas aqui bem piores do que aquele Gorjala. – ela ordenou.

— Gorjala? – gaguejou ele. E apontou para onde o gigante fugiu – Aquele gigante? O que era aquilo? Quem é você?

Deixando de responder, ela sussurrou mais uma canção em leves murmúrios, e a bicicleta foi arremessada como que por uma lufada de vento da poça de lama onde estava na direção de Fernando.

Antes que ele pudesse falar alguma coisa em meio às dezenas de perguntas que surgiam em sua cabeça, a mulher murmurou novos e também inteligíveis versos.

Na velocidade de um piscar de olhos o rapaz já estava montado na bicicleta, descendo a ladeira em direção à estrada que o esperava algum lugar lá embaixo – estrada que o levaria para a cidade, para casa.

Fernando sentiu como se despertasse de um sonho. Novamente em seu caminho para casa, perguntava-se se havia sonhado com o gigante e a mulher. Se debruçou sobre esta questão por alguns minutos, até ver um ponto de luz no meio estrada de terra, metros à frente.

Antes que pudesse fazer algo, o ponto de luz arremessou-se em sua direção violentamente, ganhando forma.

A forma não poderia ser pior do que uma cobra gigante, a maior sucuri que ele seria capaz de imaginar em seus piores pesadelos, dessas que poderiam engolir um homem grande, quanto mais um rapaz magricela.

A imensa sucuri estava em chamas, mas não se contorcia e não sofria, como se aquele fosse seu estado natural.

— Mãe! – gritou o menino à flor dos pulmões, esbugalhando os olhos e derrapando com a bicicleta para dar meia volta.

Entretanto a serpente estava ciente de sua presença e já havia dado o bote, errando o menino que derrapou e virou a bicicleta, mas segurado com fortes presas a roda traseira da bicicleta em movimento, arremessando Fernando à frente e fazendo-o chafurdar na terra molhada novamente.

— Boitatá! – gritou o incrédulo menino, rastejando espalhafatosamente em profundo desespero e com os olhos saltando das órbitas, enquanto a gigantesca serpente cuspia a bicicleta de lado e já se arrastava na direção dele.

O sibilar de uma serpente de tamanha proporção era assustador e Fernando lacrimejava de desespero, gritando sem parar enquanto corria, escorregava e caia na lama. E novamente se levantava, corria, escorregava e repetia o ciclo.

A colossal serpente em chamas se aprontou para dar o bote no rapaz que só conseguia gritar e chorar de desespero, protegendo o rosto com as mãos durante o salto da serpente, aguardando o golpe que não veio, pois uma audível canção em murmúrios chegou aos ouvidos de Fernando.

A serpente sibilou agudamente, contorcendo-se, quando uma centena ou mais de galhos das árvores próximas foram arrancados pelo vento e subiram ao céu, vindo ao chão furiosamente como uma chuva de verão, mas na forma de afiadas estacas que feriram seu colossal corpo em vários pontos.

Enquanto o rapaz tentava assimilar a informação, a mulher que vestia a capa verde estava do seu lado, levantando-o com energia.

Fernando reparou que ela arfava como quem fez grande esforço, e não tirava os olhos da serpente imóvel, provavelmente temendo que voltasse a atacar.

— O Boitatá veio atrás de você. – disse ela, com aquela voz aveludada e expressão serena, mas com energia. E virando Fernando para que ficasse de frente para ela, olhou no fundo dos olhos dele e acusou – Esses seres podem sentir a energia, a magia do amuleto e por isso o seguem. Querem destruí-lo para me deixar indefesa. – e, estendendo a mão para ele, diz - Você está com o Muiraquitã vivo. Ele escapou da minha mão quando o relâmpago caiu e voou moro abaixo, na sua direção. Dê para mim.

— E-Eu? – disse o menino, com expressão confusa, sem conseguir se situar – Eu não sei, eu...

— Não minta para mim! .– disse a mulher entredentes e com expressão serena, mas olhos urgentes – O Muiraquitã vivo é um amuleto minúsculo, mas muito poderoso, uma herança dos que ocupam minha posição em dias mais antigos. Sem ele eu não vou conseguir conter os inimigos, essas criaturas que você viu hoje. Eu preciso dele para a minha magia.

Fernando vacilou. Não entendia aquela loucura. Como poderia acreditar em magia e amuletos mágicos?

Levando as mãos à cabeça, se recorda que Boitatá é apenas uma lenda contada para assustar crianças.

E como ele havia visto um então?

Todas as lendas eram verdadeiras?

A Canção do MuiraquitãOnde histórias criam vida. Descubra agora