Levine não sabia se era tarde, se era cedo. As velas estavam quase consumidas. Dolly acabava de entrar no escritório e pedira ao médico que fosse descansar um pouco. Levine, sentado, ouvia o médico contar façanhas de um charlatão magnetizador, enquanto fitava a cinza do cigarro. Houvera um período de acalmia, e chegara a distrair-se... Esquecera-se por completo do que estava a acontecer. Ouvia o médico e compreendia o que ele dizia. De repente, soou um grito. Foi tão terrível que Levine nem sequer fez menção de se levantar; apenas olhou, desfalecido, para o médico, numa expressão entre aterrada e interrogativa. Piotre Dimitrievitch apurou o ouvido, com a cabeça inclinada para
o lado e depois sorriu, satisfeito. Tudo era tão extraordinário que já nada surpreendia Levine. "Naturalmente assim tem de ser", pensou, e permaneceu sentado. Quem gritara daquela maneira? Levine acabou por levantar-se e em bicos de pés penetrou, apressado, no quarto de Kitty; depois de passar junto de Elizabeth Petrovna e da princesa, foi colocar-se à cabeceira da cama, no seu lugar costumado. O grito desvanecera-se, mas alguma coisa mudara. Não via nem compreendia o que fosse, nem sequer desejava sabê-lo. Contudo, isso mesmo se lia no rosto de Elizabeth Petrovna, séria e pálida. Conquanto mantivesse a mesma expressão resoluta, tremiam-lhe ligeiramente os maxilares, de olhos cravados em Kitty. Esta, com o rosto congestionado, atormentado, coberto de suor, com uma madeixa de cabelos colada à testa, voltada para Levine, procurava-lhe o olhar. Erguendo as mãos, pedia-lhe as dele; e ao receber nas suas, suadas, as mãos frias de Levine, apertou-as de encontro à face.
- Não te vás embora! Não te vás embora! Não tenho medo, não tenho medo! - pronunciou, precipitadamente. - Mãe, tira-me os brincos. Incomodam-me. Tens medo? Pronto, Elizabeth Petrovna, pronto!
Kitty falava com precipitação: quis sorrir. Mas, subitamente, o rosto desfigurou-se-lhe e repeliu Levine.
- Oh! Isto é horrível! Vou morrer! Vou morrer! Vai-te! Vai-te! - exclamou, e de novo se ouviu o grito medonho.
Apertando as mãos na cabeça, Levine saiu do quarto.
- Não é nada, não é nada! Tudo vai bem! - disse-lhe Dolly, quando ele passou por ela.
Mas, dissessem o que dissessem, naquele momento tinha a certeza de que tudo estava perdido. Ficou no quarto contíguo, a cabeça apoiada no gonzo da porta. Continuava a ouvir o tal grito, que mais parecia um uivo, um grito como nunca ouvira outro igual, e quem gritava daquela maneira, sabia-o, era a sua Kitty. Havia instantes já que não desejava o filho. Agora odiava tal criatura. Nem sequer queria que salvassem a vida de Kitty; desejava muito simplesmente que aqueles terríveis sofrimentos acabassem de vez.
- Doutor! Que é isto? Que é isto? Meu Deus! - exclamou, pegando na mão do médico, que entrava naquele momento.
- Está tudo a acabar - replicou este. Tão severa era a sua expressão ao dizer isso que Levine entendeu que ao dizer "está tudo a acabar", o médico significava que era a morte que chegava.
Fora de si, entrou impetuoso no quarto de dormir. A primeira coisa que viu foi a fisionomia de Elizabeth Petrovna, mais sombria e grave do que nunca. No lugar onde estivera o rosto de Kitty surgia agora qualquer coisa de horrível, tanto pela desfiguração em que estava como pelo alarido que fazia. Levine apoiou a cabeça à cabeceira da cama, sentindo que o coração lhe estalava no peito. Aquele terrível grito cada vez se fazia mais lancinante. De súbito, porém, extinguiu-se, como se tivesse atingido o mais alto grau do horror. Levine parecia duvidar dos seus ouvidos; mas não havia dúvida: o grito cessara. Apenas se percebiam ruídos macios e roupas revolvidas, respirações cansadas e, por último, a voz de Kitty entrecortada, a sua voz viva e suave, cheia de felicidade, que dizia: "Acabou!"
Levine ergueu a cabeça. Com os braços caídos, desfalecidos, em cima da colcha, Kitty, extraordinariamente bela e serena, olhava-o em silêncio, desejando sorrir, mas ainda sem poder.
Subitamente, Levine sentiu-se transportado, daquele mundo misterioso e terrível em que vivera as últimas vinte e quatro horas, ao seu mundo habitual, ao mundo anterior, resplandecente agora de uma felicidade tão radiosa que a não pôde suportar. Os soluços e as lágrimas de alegria com que ele próprio não contava abalaram-lhe o corpo com tal ímpeto que durante longo espaço de tempo lhe foi impossível falar.
De joelhos ao lado da cama, tinha a mão de Kitty próxima dos lábios e beijava-a, embora ela apenas lhe correspondesse com um débil toque de dedos. Entretanto, aos pés da cama, nas mãos da hábil Elizabeth Petrovna, como a chamazinha de uma vela, vacilava a vida de um novo ser, que não existia antes, mas que passaria a viver com os mesmos direitos dos demais, tão importante como qualquer outro e como qualquer outro gerando seres semelhantes a ele.
- Está vivo! Está vivo! E é um rapaz! - ressoava aos ouvidos de Levine. E Elizabeth Petrovna, com mão trêmula, dava palmadas nas costas dessa criaturinha.
- É verdade, mãe? - perguntou Kitty. Responderam-lhe apenas os soluços da princesa. E no meio do silêncio que se fez, como que resposta indubitável à pergunta da mãe, ouviu-se uma voz diferente de todas as vozes que falavam baixo no quarto contíguo. Era o vagido, penetrante, atrevido, que não atendia a razões e não se sabia de onde vinha, do novo ser humano. Se momentos antes houvessem dito a Levine que Kitty morrera e que ele também morrera, que os seus filhos eram anjos e que todos estavam diante de Deus, não se teria surpreendida Mas agora, de regresso ao mundo da realidade, eram grandes os esforços mentais que fazia para compreender que Kitty estava sã e salva e que o ser que gritava tão desesperadamente era seu filho. Kitty estava viva e os seus sofrimentos tinham acabado. Uma ventura indescritível se apoderara de Levine. E, compreendendo- o, isso cumulava-o de felicidade. E a criança? Quem era?
Para quê e de onde vinha?... Parecia-lhe supérflua, que estar a mais. Por muito tempo não foi capaz de se acostumar a ela.
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Ana Karênina - Liev Tolstói (continuação)
RomanceAna Karenina é um romance tão extenso, que não pode ser publicado completamente em apenas um livro nesta plataforma, por isso, os capítulos finais encontram-se aqui. Boa leitura!