Capítulo 1 - O Ovo

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Jean já estava há mais de meia hora circulando o bairro sem ver sequer uma alma viva. "Tá que ainda são 6:21 da manhã, mas ninguém mora aqui?", pensou consigo mesmo. Mais adiante avistou uma senhora que vinha em sua direção, caminhando pela calçada e parecendo mancar de uma perna.

"Tem alguma Rua Sem Nome aqui por perto, dona'', gritou, enquanto se debruçava sobre a janela do passageiro de sua Kombi 1958 herdada de seu pai, era o tesouro da família.

"Siga em frente mais duas quadras e vire à direita", respondeu ela sem esperar que Jean retrucasse, "Tá, né", pensou, "Naquelas duas quadras que já passei mais de 100 vezes?". Seguindo em frente conforme indicado pela senhora manca, Jean percebeu uma placa informando a numeração das casas da rua a sua direita, ''Hmmm, da 25 à 51, é aqui mesmo''.

Virando à direita e um pouco mais a frente Jean se deparou com a casa tão procurada. "Finalmente!", pensou aliviado.

No dia anterior, enquanto comia sua marmita na Souza e Filho Ltda, empresa que herdou de seu pai, Jean recebera uma ligação requisitando um serviço. A voz rouca informara-lhe que gostaria de um orçamento à respeito do problema de infestação de baratas e que viesse o quanto antes. Jean mal conseguia entender o que o cliente falava, não obstante a rouquidão vocal, os ruídos de fundo também eram muito altos. "Oi, pode repetir?". Sem prestar atenção o cliente continuara. "Se não puder recebê-lo, deixarei a chave sob o tapete de entrada, pode entrar e realizar o orçamento". Jean entendera apenas metade da conversa, mas conseguiu anotar o mais importante. "O endereço é Rua Sem Nome, n°47", disse a voz rouca, desligando em seguida.

Se a Souza e Filho Ltda estivesse em seus melhores dias, como outrora, quando seu pai administrava, Jean nunca aceitaria um trabalho desse tipo. "Eu fora", certamente pensaria ele, talvez um dos motivos pelos quais a empresa jão mantivesse sua liquidez financeira. Infelizmente, com uns quilos a mais e alguns cabelos a menos, Jean não poderia se dar esse luxo. "Chegarei cedo para falar pessoalmente com essa pessoa", pensou ele antes de arrotar satisfeito e deitar na rede para a pestana habitual.

Ao descer da Kombi e encarar a casa, Jean sentiu imediatamente uma sensação de arrependimento. Aquela sensação advinda dum sexto sentido que só os sábios têm: o da preguiça; ela que informou todo o corpo de Jean, por meio do sistema nervoso, dando um arrepio na espinha, que o trabalho seria grande demais, e que os músculos cansariam muito, e que os pulmões ficariam ofegantes, e que o coração bateria forte demais, e que a pele ficaria muito suja, e que..., "Chega!", urrou mentalmente Jean, dirigindo-se à porta de entrada. De perto a situação parecia ainda pior. A casa tinha dois andares, era feita de madeira e, sinceramente, não parecia ter condições de abrigar alguém, pelo menos não em boas condições. O contraste da casa n° 47 com as outras do bairro era gritante. "Deveriam ter chamado um pintor, ou melhor, um pedreiro" pensou Jean. Ao procurar a campainha percebeu que não havia, bateu na porta e esperou. Nada. Bateu novamente. Nada. "Ô de casa", gritou Jean, enquanto batia mais forte. Nada. O motivo de acordar cedo e chegar cedo já havia ido por água abaixo, ninguém se encontrava em casa. Suspirou desapontado, abaixou-se e enfiando a mão sob o tapete encontrou a chave que lhe fora prometida. Removeu o boné velho, coçou a cabeça, tomou coragem, inseriu a, chave, "Vamo lá" pensou, e adentrou a casa.

Desde criança Jean sempre acompanhara seu pai, Carlos Souza, aos mais diversos lugares. Trabalhos fáceis ou difíceis, Carlos nunca recusara um sequer. Sendo assim, Jean não era leigo quando o assunto era mal cheiro, levar picada de inseto, andar em meio a lugares sujos e enfim, todo tipo de lugar que uma pessoa normal se recusaria a ir. De toda sorte, nada havia preparado Jean para a nuvem putrefata que invadiu suas narinas ao abrir a porta velha. Levou menos de 1 segundo para que seu cérebro compreendesse o horror pútrido que invadiu seu corpo e o fizesse correr para fora da casa, por pouco não resvalando no degrau de entrada. Tossindo como um tuberculoso ao mesmo tempo que tentava inspirar ar puro, tudo que se passava na sua cabeça era entrar na Kombi 1958 e ir embora. Mas não podia. A Souza e Filho Ltda estava a beira da falência e, tal qual seu pai, Jean não podia escolher trabalhos. Já quase recuperado e enquanto se dirigia novamente a porta, tirou um maço do bolso, colocou um cigarro na boca e quando foi acender com o isqueiro rapidamente mudou de ideia, "Melhor não, se duvidar um pouco isso é capaz de ser inflamável", pensou ele, se referindo ao fedor que emanava da casa e não querendo piorar ainda mais a situação. Guardou o cigarro no bolso com carinho, com certeza fumaria mais tarde, pensou. Como viera apenas para fazer um orçamento, havia deixado todo equipamento na Souza e Filho Ltda, isso incluía a máscara com filtro para cheiros fortes. Para alguém como ele, acostumado a cheiros fortes, isso era uma vergonha, mas era também o único jeito de mitigar um pouco o mau cheiro. Pegou a gola da camiseta, puxou para cima e cobriu o nariz. "Ainda bem que essa rua é deserta, se alguém me visse assim minha reputação iria pelo ralo". Foi então que percebeu algo que passara despercebido: as janelas estavam cobertas por sacos de lixo pretos, presos com fita adesiva. Todas. Não era de se estranhar esse mau cheiro, não havia ventilação alguma. A luz que entrava pela porta iluminava apenas um pequeno espaço do salão de entrada e quando Jean caminhou um pouco adiante ficou às cegas. Dando alguns passos mais a frente com as mãos estendidas e tateando as paredes a procura de um interruptor, Jean nada encontrou mas ouviu algo bater contra sua perna e quebrar, "Era só o que me faltava", pensou ele. Ao tirar o isqueiro do bolso e tentar iluminar o objeto quebrado aos seus pés ele se espanta: "É um ovo!?".

Casa da Rua Sem Nome, n° 47Where stories live. Discover now