Setenta e um anos... o decano do departamento recebe com bom humor a aposentadoria compulsória, acompanhada de uma festa de despedida na qual todos nós contribuímos. O ambiente é festivo, todos sabem que o professor Ferreira é apaixonado por suas pesquisas na área de filologia da língua latina, mas igualmente sabemos que ele vai devotar seus anos de aposentadoria para cultivar seu jardim e pequenas viagens a locais históricos da ocupação romana.
Ferreira é a uma unanimidade no departamento, ninguém consegue não gostar do simpático velhinho, de compleição miúda e olhar doce, cabelos branquinhos como paina e pele semelhante a pergaminho, incrustada com manchas hepáticas e as rugas naturais de sua idade e resultado de uma vida intensamente devotada aos estudos.
As piadas e cantigas alentejanas se misturam a gracejos barrocos, em um ambiente leve de camaradagem. Nem parece que o corredor pesadamente acarpetado da entrada do auditório costuma ser palco de ferozes lutas intestinas da política acadêmica. Há balões coloridos decorados com frases gregas e latinas, laboriosamente escritas pelas estagiárias. Uma mesa reúne salgadinhos e um bolo de chocolate com exatas setenta e uma velinhas, alvo de brincadeiras pelos colegas mais íntimos do professor Ferreira. É uma ocasião informal, ninguém se reporta a ninguém por seus títulos acadêmicos.
O próximo na lista da famigerada compulsória, o professor Zanetti pede atenção dos presentes e levanta sua taça de plástico para um brinde de Coca Zero. O Zanetti é o companheiro mais próximo de Ferreira, ambos entraram juntos na instituição, e foram famosos entre a legião de secretárias de pernas bonitas, ocultas por saias abaixo da linha dos joelhos e que se orgulhavam de seus trezentos e tantos toques por minuto no teclado de suas Olivettis e Remingtons manuais. Improvisando um pequeno discurso emocionado, relembra episódios picantes de seus anos dourados, entremeado de pesadas obscenidades provindos das cantigas de maldizer. Os olhos de todos, rasos de lágrimas, mas os lábios arreganhados em risadas altas. Dentre todos, o professor Ferreira é o que mais se destaca pelo bom humor, quem visse não diria que ele é o atingido pela aposentadoria.
Sua gargalhada é subitamente interrompida por um engasgo, os olhos castanhos do querido homem velho se arregalam, sua boca tenta articular palavras, mas uma série de engasgos e tossidas sufocadas se sucedem, ele cambaleia, o amparo antes que se choque contra a parede. Abraço o Professor Ferreira e seu impulso me desequilibra, apóio minhas costas contra a parede e ainda segurando seu corpo pequeno e frágil vou descendo cuidadosamente até estar sentado no chão. Todos que estavam rindo, ainda com seus copos de refrigerante nas mãos estão boquiabertos, Sandra se adianta para ajudar o professor.
Estou ainda sem reação, consigo apenas gritar que alguém chame o SAMU. Meia dúzia de aparelhos de telefone celular aparecem e são manuseados freneticamente. O idoso gargalha abafado, entrecortado de ruídos guturais e engasgos. Olho para ele e para Sandra, ela afaga a testa de Ferreira, fala-lhe suavemente, tenta lhe confortar, diz que o socorro está a caminho, todas aquelas coisas que tentamos impingir sobre as pessoas que estão esperando socorro.
A respiração do velho professor falha, ele em um último esgar buscando oxigênio para seus pulmões esboça uma surpreendentemente límpida gargalhada e deixa seu corpo relaxar, sua caixa toráxica cessa os movimentos, seu corpo relaxa, os músculos, antes retesados, pendem, como cordas que pendem frouxas. Sandra e eu nos entreolhamos, atônitos. Suas pernas, particularmente os pés executam uma curta dança, de passos desconexos, uma mancha molhada aumenta nas calças dele. Em poucos segundos, está terminado, apenas espasmos residuais no rosto e dedos informa que o corpo ainda fora recentemente habitado.
Sinto o minhas pernas molharem, a poça de urina que se forma sob o corpo chegou a mim. Peço a Sandra que me ajude a me levantar. Meio desequilibrado, apóio minha mão no chão molhado. Me levanto, Sandra se aconchega, já com os olhos marejados, em meus braços, tristemente olhamos para o professor, estendido no corredor acarpetado. Comento penalizado como foi bonita sua última risada. Nos juntamos a seu redor, respeitosamente, todos sabemos que quando a equipe de socorristas chegar nada restará para eles fazerem a não ser coletar dados para a Certidão de Óbito.
Um violento espasmo agita sua perna esquerda, e somos tomados de surpresa. Será que ele não está morto? Uma das estagiárias se abaixa e segura a nuca do professor, mas é inadvertidamente golpeada pelo punho do até então falecido pesquisador. Ela cai para trás, com o nariz machucado, começando a sangrar, ele se debate furiosamente, como que atingido por uma corrente de alta tensão. Uma voz gutural, como que vinda de uma profunda tubulação de esgoto balbucia em um arremedo do conhecido Si Bemol do professor:
- Deixe-me ir!!!
Estupefatos, observamos os membros do recém aposentado se contorcerem o corpo todo se agitar, as mãos golpeiam o tronco e umas às outras, como que desejando dilacerarem-se mutuamente. As pernas chutam o vazio, por vezes se chocam no ar. Os ruídos de ossos se partindo começam a se tornar distinguíveis. Sandra grita horrorizada:
Alguém faça alguma coisa, ele está se machucando!
O grito nos tira do transe atávico. Todos, homens e mulheres avançamos, tentando segurar o Ferreira, que já se parece com uma boneca de pano, desarticulada, mas ninguém consegue lograr imobilizar a massa agitada e quase disforme que se nos apresenta.
- Deixe-me ir... dei...xe-me... ir...
Todos tentam falar, acalmá-lo, mas ele sequer percebe nossa presença; os globos oculares fraturados se voltam indistintamente, arregalados, para vários lugares em rápida sequência. Sem saber exatamente porquê, começo a balbuciar o pater noster:
- pater noster qui est in caelis...
Uma agitação extra percorre o corpo do professor. Dir-se-ia que simultaneamente às primeiras palavras da oração.
- santificetur nomem tuum...advetiant regnum tuum...
Ele se contorce , claramente tentando se afastar de mim. Maquinalmente, ainda que horrorizado, continuo:
- fiat voluntas tua sicut in caelo et in terra...
A massa semi-destruída se afasta rapidamente, se contorcendo e ainda golpeando a si mesma, tentando sua auto-aniquilação. Ele adentra o auditório. Movido pela curiosidade mórbida acompanho, a passos largos, uma vez que o movimento dele é acelerado.
- ..xe.. me... ir...
- panem nostrem cotidianum da nobis hodie...
Entro no ambiente acarpetado do auditório, seguindo o rastro viscoso e sangrento professor Ferreira apenas para vê-lo impulsionar-se repetidamente contra a janela em um movimento penoso, hediondo aos olhos.
- d..eixe... me........iiiiiir...
Tento continuar a oração, mas minha língua deixa de responder, sinto-a enorme, grossa dentro da boca. Congelado, atônito, consigo apenas olhar, o corpo quase disforme está equilibrado na janela já aberta do auditório, o vento do trigésimo quinto andar agita os cabelos, agora impecavelmente pretos do professor Ferreira. A pele, profundamente lacerada dos ferimentos auto-inflingidos tem já, um aspecto fresco e elástico de uma pele de adolescente. Ele me olha e pronuncia guturalmente palavras que precedem o ato de projetar-se no vazio fora da janela:
- Eles jamais podem saber... Adeus...
Socorristas e polícia jamais encontraram o corpo, restou apenas o rastro de sangue e fluidos corporais até à janela e lá embaixo, na calçada, para impedir que fôssemos todos processados por havermos passado um trote nos serviços de emergência.